Civelli, uma família cinematográfica

Há herdeiros que destroem o patrimônio deixado pelos pais. Em compensação, há os que se desdobram para preservar a memória familiar. Este é caso da produtora Patrícia Civelli, herdeira do acervo da Multifilmes, empresa criada por seu pai, o ítalo-brasileiro Mario Civelli (1923-1993), e que contou com a ajuda de sua mãe, a crítica de cinema e roteirista Pola Vartuk (1927-1990), e de sua tia, a montadora e cineasta Carla Civelli (1921-1977), pioneira do cinema feminino no Brasil.

Patrícia, que conseguiu apoio institucional e empresarial para restaurar “Um Caso de Polícia”, de sua tia Carla, luta agora pelo restauro de “A Sogra”, comédia dirigida por Amando Couto. Neste filme, Procópio Ferreira vive Arquimedes, um chefe de estação de cidade do interior, que recebe a visita da mãe de sua esposa. Só que a sogra, rabugenta e mandona, como convém a uma comédia de costumes, interpretada por Maria Vidal, não veio só a passeio. Veio morar na casa do genro.

Além de buscar patrocínio para resgatar as rabugices da sogra, Patrícia Civelli produz, com parceiros, o longa-metragem “Rio da Dúvida”, de Joel Pizzini. Este filme, que soma sequências feitas com atores e imagens de arquivo (muitas registradas por um pioneiro do cinema brasileiro, o Major Luiz Thomás Reis), resgata, de passado centenário, o encontro entre o então Coronel Cândido Rondon (1865-1958) e Theodore Roosevelt (1858-1919). De dezembro de 1913 a abril de 1914, o Coronel, que se tornaria um dos mais respeitados indigenistas brasileiros, e o ex-presidente dos EUA, realizaram expedição científica (e aventureira) que atravessou regiões como o Pantanal, o Cerrado e a Floresta Amazônica.

Inquieta, a herdeira de Mario Civelli se impõe imenso desafio: recuperar, depois de “A Sogra”, mais sete filmes que o pai produziu (ou dirigiu). E promete produzir um longa documental sobre a história de sua família cinematográfica, exposição cinebiográfica com rico acervo de imagens deixado pelo trio Mario-Pola-Carla e livro com os melhores textos de sua mãe, que durante décadas atuou como crítica de cinema e repórter no jornal O Estado de S. Paulo.

Nunca é demais lembrar que uma das entrevistas de Pola Vartuk, publicada nas páginas culturais do Estadão, obteve significativa repercussão e difundiu a expressão “patrulhas ideológicas”, cunhada por Cacá Diegues, indignado com as críticas ao filme “Xica da Silva” (1976).

Por que o documentário “Rio da Dúvida” foi parar nas mãos da produtora Patrícia Civelli? Por razão muito especial: os direitos de imagem de Rondon pertenciam a Mário Civelli e, por extensão, agora pertencem à sua herdeira. Para viabilizar o filme, que traz a grifada assinatura de Joel Pizzini, documentarista dos mais inventivos (vide “Caramujo Flor”, “Glauces” e “500 Almas”), Patrícia (e sua produtora, a Memória Civelli) uniu-se a Cláudio Petraglia, da Barra Filmes, e buscou apoio da Casablanca, que entrou como coprodutora.

“Rio da Dúvida” está em fase de finalização. Patrícia conta que “nossa equipe percorreu todo o trajeto feito por Rondon e por Roosevelt, no começo do século XX”. O filme foi roteirizado pelo pesquisador e produtor Mário César Cabral Marques, apaixonado pela história de Rondon e pela experiência vivida por ele junto ao ex-presidente dos EUA (Mário César é autor do livro “Rio da Dúvida – O Centenário de uma Epopeia”). Idê Lacreta, parceira constante de Joel Pizzini, assina a montagem.

Enquanto aguarda a finalização de “Rio da Dúvida”, Patrícia Civelli busca, angustiada, patrocinadores para o restauro de outros longas produzidos por Mario Civelli. “São muitos e alguns estão em situação desesperadora”, avisa.

“O primeiro da fila” – relembra – é “A Sogra”. “Deste filme, cujos negativos originais desapareceram, existe somente uma cópia em 16 milímetros”. Por isto, “ele está na lista emergencial e só não iniciamos o processo de restauro por falta de patrocínio”.

O segundo, entre os que estão “em situação gravíssima”, é “O Destino em Apuros” (Ernesto Remani, 1954), “longa-metragem que marcou a estreia de Paulo Autran no cinema e primeiro filme colorido brasileiro”.

“O Craque” (José Carlos Burle, 1953) ocupa a vaga seguinte. “Trata-se” – explica – “de filme que traz o time do Corinthians, campeão do IV Centenário de São Paulo, roteiro de Alberto Dines e Eva Wilma no elenco”. E apresenta outro argumento: “só há um longa-metragem sobre futebol mais antigo que o nosso – “Alma e Corpo de uma Raça”, de Adhemar Gonzaga”. Este filme, “do Acervo da Cinédia, foi realizado em 1938 e restaurado graças aos esforços de Alice Gonzaga”.

Fecham a lista dos “necessitados de restauro urgente para não morrer”, os longas “O Homem dos Papagaios” (Armando Couto, 1953), “O Grande Desconhecido” (Mário Civelli, 1956), “Rastros na Selva” (Francisco Eichhorn e Mario Civelli, 1958), “Bruma Seca” (Mário Brasini, 1961) e “O Gigante” (Mário Civelli, 1968).

Em junho do ano passado, Patrícia apresentou, na CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto), cópia restaurada de “Um Caso de Polícia”, comédia escrita por Dias Gomes e realizada por Carla Civelli. Em tempos de valorização do cinema feminino, o filme ganha relevo por trazer a assinatura de uma pioneira (poucas mulheres dirigiram longas-metragens no Brasil, até a década de 1970).

“Um Caso de Polícia”, protagonizado por Glauce Rocha e Sebastião Vasconcelos, com participações notáveis de Renato Consorte e Cláudio Corrêa e Castro, foi realizado em 1959 e não conseguiu espaço no circuito exibidor. A presença feminina no comando de um longa-metragem, naquela época, não era tão bem vista (e desejada) quanto hoje. O tempo (ano que vem, o filme fará 60 anos) foi arruinando negativos e cópias do filme. Incansável, Patrícia conseguiu restaurar os precários materiais que encontrou, mas não com a qualidade desejada. Até que, com apoio da Oi e trabalho incansável do restaurador Francisco Sérgio Moreira (1952-2016), ela conseguiu chegar a ótima cópia. Retrabalhou o som e as imagens desta comédia ingênua, mas sedutora. O público que assistiu ao único longa-metragem de Carla Civelli, no centenário Cine Vila Rica, divertiu-se com a engenhosa trama urdida por Dias Gomes.

Por Maria do Rosário Caetano

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