Cinema brasileiro perde Nelson Pereira do Santos
O cineasta Nelson Pereira dos Santos morreu, neste sábado, 21 de abril, Dia de Tiradentes e da inauguração de Brasília, cidade onde atuou como professor da UnB (Universidade de Brasília) e na qual filmou o curta “Fala Brasília”, parte significativa do longa “A Terceira Margem do Rio”, no Polo de Cinema de Sobradinho, que o teve entre seus artífices, e o longa “Brasília 18%”.
O mestre paulistano-carioca, primeiro cineasta a ter assento na Academia Brasileira de Letras, tornar-se-ia nonagenário em setembro próximo. Mas um câncer fulminante no fígado, detectado há 40 dias, impediu os festejos programados para comemorar seus 90 anos de vida, quase 70 deles dedicados ao cinema brasileiro. Ficam, como testemunho de essencial trajetória dedicada ao nosso audiovisual, seus filmes baseados em Graciliano Ramos (“Vidas Secas”, “Memórias do Cárcere” e um dos três episódios de “Insônia), seus experimentos da época de Paraty (“Fome de Amor”, “Azyllo Muito Louco”, “Quem É Beta” e “Como Era Gostoso o meu Francês”), sua kurosawiana recriação de “Boca de Ouro”, baseada em Nelson Rodrigues, sua Trilogia do Rio (aos seminais “Rio 40 Graus” e “Rio Zona Norte”, há quem acrescente “El Justicero”, espécie de “Rio Zona Sul”), seus diálogos com o amigo Jorge Amado (“Tenda dos Milagres” e “Jubiabá”), seus documentários (“Raízes do Brasil”, a partir de Sérgio Buarque de Hollanda, “Casa Grande & Senzala”, a partir de Gilberto Freyre, e o magnífico “A Música Segundo Tom Jobim”, que ele dirigiu com Dora Jobim).
Nelson manteve intenso diálogo com a literatura brasileira, mas não conseguiu realizar um de seus maiores sonhos: “Guerra e Liberdade – Castro Alves em São Paulo”, épico que teria Maria de Medeiros como intérprete de Eugénia Câmara, a grande paixão do poeta baiano. O ator protagonista que reviveria a história de Castro Alves (1847 – 1871) em sua passagem pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, onde ambos estudaram, variava muito. Nelson sempre lembrava a necessidade de contar com um jovem de 20 e pouquinhos anos (o poeta morreu aos 24) e que faria sua escolha na hora em que estivesse com a pré-produção engatilhada.
O diretor de “O Amuleto de Ogum”, seu diálogo com as religiões de matriz africana, foi também produtor (ou coprodutor) de filmes como “O Grande Momento” (de Roberto Santos,1958), “As Aventuras Amorosas de um Padeiro” (Waldir Onofre, 1975) e “A Dama do Lotação” (Neville D’Almeida, 1978).
Em 1998, quando todo país comemorou os 70 anos do mestre cinemanovista, o Cine Ceará prestou grande homenagem a Nelson. De longa conversa com ele, no hotel que hospedava os convidados do festival, transcrevo a parte referente a seu filme mais famoso: “Vidas Secas” (1963), considerado junto com “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (1964), e “Os Fuzis”, de Ruy Guerra (1965), a Santíssima Trindade do Cinema Novo. E vale lembrar que Nelson montou “Barravento”, o primeiro longa do jovem Glauber.
Você filmou Vidas Secas em 1963. Passados tantos anos, como vê o flagelo da seca, que tanto tormento traz ao sertanejo nordestino?
NPS – Vejo, hoje, pelo menos um ponto positivo: podemos conversar sobre o assunto livremente. Em 63, quando lancei o filme, o tema era subversivo. As autoridades diziam que nós, cineastas, queríamos denegrir a imagem do país no exterior. Quando mostrei favelas num Rio de Janeiro (“Rio 40 Graus”, 1955), no qual os termômetros marcavam 40 graus, um chefe de polícia disse que eu mentia. Que no Rio não se conhecia tal temperatura. Ver a seca atormentando o país, em pleno final do século XX, é terrível. Outro dia, vi uma imagem de Dom Pedro II, em 1860 e pouco, assistindo ao embarque de caixotinhos que levavam comida para os flagelados da seca. Hoje, a TV mostra caminhões carregados de mantimento sendo conduzidos ao Nordeste. As pessoas assistem e acham que o problema está resolvido. O embarque as deixa feliz e elas esquecem que a solução é muito mais profunda.
O que o levou a escolher Vidas Secas para filmar?
NPS – Minha paixão pela realidade brasileira e por Graciliano Ramos. Não fiz quase nada ao transpor o livro para o cinema. Só fiz transcrever Graciliano, com sua sabedoria, simplicidade e experiência de vida, para o campo das imagens. Me orgulho de saber que ajudei a divulgar o livro dele. Quando levei Vidas Secas ao cinema, o romance estava na terceira edição. Vamos supor que cada uma tivesse vendido dois milheiros. Eram 6 mil exemplares. Hoje, milhares e milhares de brasileiros já leram o livro.
Sua afinidade com Graciliano é muito grande. Você voltou a ele em Insônia e Memórias do Cárcere…
NPS – Vou lhe confessar uma coisa. Eu fiz uma verdadeira apropriação de Vidas Secas. Li o livro tantas vezes, que chegava a achar que fora eu que o inventara (risos). Me coube fazer uma síntese da obra, pois cinema é uma indústria que acha que tudo deve se resolver em hora e meia. Como eu contaria aquela história num filme de 90 minutos? Descobri que a palavra era a chave de tudo, mesmo que os personagens de Graciliano falassem pouco. No cinema, a imagem concreta é a base de tudo. No livro, Fabiano vai aparecendo aos pedaços. No filme, eu precisava de um ator, um homem de verdade, que entrasse em cena de uma vez. Precisava de Sinhá Vitória, do menino mais velho e do mais novo, da cachorra Baleia, de um papagaio, uma casa, da caatinga, do soldado amarelo. Tomei algumas liberdades, mas respeitei, in totum, o espírito do autor e sua postura diante da vida.
Que influência o livro teve na sua geração?
NPS – Uma influência imensa. Não só em nós, cineastas, mas também em cientistas sociais. Graciliano tinha um pensamento muito próximo da ciência. Quando ele escreveu o livro, a ANL (Aliança Nacional Libertadora) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro) acreditavam que o povo se revoltaria e faria a reforma agrária. Hoje, o que a experiência e os estudos científicos nos mostram? Que enquanto houver migração, não haverá revolução. E por que? Porque são os homens válidos que se vão. Os que ficam são os homens sem saúde, as mulheres, as crianças. A migração, portanto, permite a perpetuação da seca. O sul se industrializou com a massa de mão-de-obra vinda do nordeste. E a região assolada pela seca seguiu mandando Fabianos para fora de seu território.
O filme é pura imagem. Há pouquíssimos diálogos. Graciliano é seco. Você foi mais seco que ele. Impressionante o radicalismo estético do filme.
NPS – Eu quis transformar a palavra, matéria-prima de Graciliano, em imagem. No começo do filme, reina o silêncio. Ao fundo, ouve-se apenas o ranger de um carro de boi (N.R. o filme não tem trilha sonora). Quando os retirantes (a família de Fabiano) chegam a uma casa, os diálogos aparecem em off. São subjetivos. Cada um fala à sua maneira. Cada um (Fabiano ou Sinhá Vitória) expressa a alegria de estar sob um teto. No final, há alguns diálogos entre os dois. O livro é narrado em terceira pessoa. Por um narrador tão poderoso e onipotente, que ele entra até na cabeça da cachorra Baleia. No final, transcrevo frase de Graciliano: “E o sertão continuará mandando para a cidade gente bruta como Fabiano…”
Vidas Secas é seu quinto longa. Você tinha, portanto, boa experiência. O que o motivou a levar para o sertão de Alagoas um fotógrafo estreante como Luiz Carlos Barreto? Afinal, ele tinha experiência como repórter fotográfico da revista O Cruzeiro. Nunca tinha fotografado um filme.
NPS – Barreto tinha ideias fundamentais sobre fotografia. Não corri nenhum risco ao convidá-lo. Sabia do que ele era capaz. Em 1961, eu tentara, na região de Juazeiro, na Bahia, realizar Vidas Secas. A chuva me impediu. Como estava com toda a equipe na região, resolvi fazer um filme, Mandacaru Vermelho, que nasceu ali, de um improviso (N. R. Nelson é, ainda, o principal ator do filme). Hélio Silva fez a fotografia e buscou dar o clima árido da região. Mas domávamos a luz intensa do sertão com filtros amarelos. A influência, naquela época, vinha do mexicano Gabriel Figueroa, com suas nuvens recortadas do céu. Um dia, conversando com Glauber e Barreto, trocamos ideias sobre a luz brasileira. Barreto argumentou que tínhamos que nos inspirar em Cartier Bresson, cuja influência chegara ao Brasil através de Jean Manzon, uma das estrelas da revista O Cruzeiro. Bresson falava na lente nua, na luz do rosto. Então, Barreto foi fotografar Vidas Secas com um conceito amadurecido em nossas discussões. Não havia risco nenhum em levar um fotógrafo estreante para Alagoas, cenário real do filme. Até porque nossa equipe incluía José Rosa, um chefe-operador dos mais experientes. A combinação dos dois resultou na fotografia do filme.
Que aliás continua causando sensação muitas décadas depois.
NPS – Mas nem sempre foi assim. Na época, tivemos que brigar muito com o laboratório. O marcador de luz não queria seguir nossa orientação. Achava que estava tudo errado. Queria nos corrigir. Nos ensinar.
FILMOGRAFIA
Nelson Pereira dos Santos nasceu em São Paulo, capital, em 22 de outubro de 1928. Realizou vários curtas (Juventude, Fala Brasília, Meu Compadre Zé Kethi), médias (A Missa do Galo) e mais de 20 longas-metragens: 1955 – Rio 40 Graus; 1957 – Rio Zona Norte; 1961 – Mandacaru Vermelho, 1963 – Boca de Ouro, 1963 – Vidas Secas; 1966 – El Justiceiro, 1968 – Fome de Amor; 1969 – Azyllo Muito Louco; 1972 – Como Era Gostoso o meu Francês; 1973 – Quem É Beta?, 1975 – O Amuleto de Ogum; 1977 –Tenda dos Milagres; 1979 – A Estrada da Vida; 1983 – Memórias do Cárcere; 1987 – Jubiabá; 1994 – A Terceira Margem do Rio, 1995 – Cinema de Lágrimas, 2000 – Casa Grande & Senzala (Gilberto Freyre), 2004 – Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Hollanda), 2007 – Brasília 18%, 2009 – Português, a Língua do Brasil, 2012 – A Música segundo Tom Jobim, 2013 – A Luz do Tom.
Por Maria do Rosário Caetano