Longa que mergulha na violência policial em favelas cariocas é o grande vencedor do É Tudo Verdade

O contundente “Autos de Resistência”, longa-metragem dirigido por Natasha Neri e Lula Carvalho, sagrou-se o grande vencedor da competição brasileira do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários de São Paulo. A escolha do júri – formado pelos cineastas Betse de Paula, Tyrell Spencer (vencedor, ano passado, com “Cidades Fantasmas”) e Fernando Gronstein – foi certeira. Dos oito concorrentes, todos de qualidade, o mais ousado e o que causou maior impacto foi mesmo o eleito.

“Autos de Resistência” é fruto da inquietação de uma jovem defensora dos Direitos Humanos (a estreante Natasha) e do domínio técnico de seu companheiro, o experiente diretor de fotografia Lula Carvalho (de “Tropa de Elite” e uma dezena de títulos brasileiros e internacionais). A dupla poderia ter feito mais um filme sobre a violência nas favelas, se não contasse com três parceiros fundamentais: as mães de jovens assassinados, juízes e advogados preocupados com o extermínio da juventude preta e pobre de nossas periferias e, de forma surpreendente, a tecnologia. Sob o argumento de que mata apenas os que “são criminosos” e “oferecem resistência”, a Polícia segue (o filme ajudará a mudar este quadro?) engordando estatísticas aterradoras.

O que dá força especial ao documentário é um inusitado registro de imagens captadas com aparelho celular. Tal registro pôde provar o contrário do que diziam os policiais em um dos casos levados a julgamento. Dois adolescentes gravavam conversas banais, quando foram atingidos por tiros. Se não fosse por tal registro apresentado à Justiça, os policiais teriam, mais uma vez, sido inocentados. O documento visual comprovou que os jovens nada tinham a ver com crime de roubo de carga, justificativa dos policiais para matar um deles e balear no peito o outro. O sobrevivente pôde dar seu testemunho e apresentar a prova (as conversas banais sob a saraivada de tiros). Se só contasse com seu depoimento verbal seria a palavra do jovem preto e pobre contra a dos policiais.

O melhor documentário internacional, o dinamarquês “O Distante Latido dos Cães”, também fez por merecer o grande prêmio. Seu diretor, Simon Wilmont, realizou denso e poético mergulho na guerra que antagonizou, dois anos atrás, russos e ucranianos. Ao invés de registrar, em primeiro plano, ataques de mísseis e contra-ataques aéreos, o cineasta preferiu mostrar o que acontecia na região de Donesk, pelo olhar de uma criança órfã, o menino Oleg. Ele vive o cenário da guerra, vê os mísseis cruzando os ares, aprende sobre a vida em abrigos anti-bomba, convive, em condições franciscanas, com a avó, que cuida dele desde a perda dos pais. Oleg brinca com um primo e com um amigo, Yarin. Brinca, inclusive, de guerra.

O documentário dinamarquês (parceria com Finlândia e Suécia) tinha concorrentes significativos como o argelino-francês “A Batalha de Argel – Um Filme com História”, de Malek Besmail, e o germano-brasileiro (parceria com a Grifa) “The Cleaners”, de Hans Block e Moritz Riesewieck. Mas “O Distante Latido dos Cães” foi o longa documental que mais ousou e alcançou atmosfera poética.

Na categoria “internacional”, o júri atribuiu Prêmio Especial a “Naila e o Levante”, da brasileira (radicada nos EUA) Júlia Bacha. Atribuiu, ainda, menção honrosa a “The Cleaners” e seu mergulho na vida de limpadores (majoritariamente, filipinos terceirizados) de “mensagens incômodas” (pedofilia, pornografia etc.) nas redes sociais.

Se acertou no longa internacional, a opção do júri (formado pela estadunidense Pamela Yates, a brasileira Renata Almeida e o equatoriano Alfredo Mora Mazano) para a categoria “documentário latino-americano” resultou questionável. O vencedor, o chileno “Roubar a Rodin”, de Cristobal Valenzuela, seria mais potente se tivesse a duração de um média-metragem. Ao registrar a performance de jovem e rebelde artista plástico chileno que furtou, por uma noite, obra do mestre francês, Valenzuela pecou pela redundância. Tinha dois rivais bem mais potentes: os uruguaios “A Flor da Vida”, de Claudia Abend e Adriana Loeff, e “Não Viajarei Escondida”, de Pablo Zubizaretta (parceria com a Argentina).

“A Flor da Vida”, que fez jus a Prêmio Especial do Júri, debate a questão da velhice com vigor e grande originalidade. E sem piedade. História dura e fascinante.

“Não Viajarei Escondida” trabalha no fio da navalha (o que é verdade, o que é mentira, o que é construção, o que é fabulação?) ao compor narrativa sobre personagem intrigante. Uma mulher, a poeta uruguaia Blanca Luz Brum, correu mundo, foi discípula do marxista Mariátegui, esposa do muralista mexicano Siqueiros (comunista assumido), colaboradora de Juan Domingo Perón e acabou, pasmemos, apoiando a ditadura Pinochet. De forma reflexiva, Zubizaretta mostra o quão próximas são a verdade e a mentira. O filme, aliás, inicia-se com cortante depoimento da crítica de arte Raquel Tibol, conhecedora profunda da obra de Siqueiros: “esta mulher (Blanca Luz Brum) é uma grande mentirosa. E a filha (que relembra momentos da história materna) é mais mentirosa ainda”.

O melhor curta documental brasileiro – para o júri oficial e para a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) – foi o pernambucano “Nome de Batismo – Alice”, de Tila Chitunda. O filme ganhou, ainda, o Prêmio Mystica, no valor de R$8 mil (em serviços de laboratório). Realizadora negra, nascida em Pernambuco, onde sua família angolana se exilou, Tila vai à África, terra de seus pais, para reencontrar parentes, em especial a avó, a quem devia o prenome (Alice). Um filme cheio de vida, que destacou-se em ótima seleção.

O melhor curta estrangeiro foi “Ressonâncias”, do libanês Nicolas Khoury. Ao longo de 27 minutos, o cineasta revela varredura sem fim feita em campo de refugiados sírios, em Bekka, no Líbano, para revelar histórias surreais.

O longa documental paulistano “Elegia para um Crime”, de Cristiano Burlan, conquistou dois troféus: o ABD (Associação Brasileira de Documentaristas) e o Prêmio EDT (Associação Profissional de Edição Audiovisual). Fecho de Trilogia do Luto, de Burlan, o filme sequencia “Construção” (2007), sobre o assassinato do pai do cineasta, e “Mataram meu Irmão” (premiado pelo É Tudo Verdade em 2013) sobre o assassinato de seu irmão, Rafael.

Na categoria curta-metragem brasileiro, o Prêmio ETD coube a “Inconfissões”, poético e ousado retrato do ator Luiz Roberto Galizia (1952-1985) realizado por sua sobrinha, Ana Galízia. Este filme fez jus, também, a menção especial do Júri e ao Prêmio da Crítica, atribuído pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Na área do longa-metragem, o Júri Abraccine escolheu “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi.

O Canal Brasil premiou o curta pernambucano “Mini Miss”, de Rachel Daisy Ellis. O curta gaúcho “Catadora de Gente”, de Mirela Kruel, assim como “Inconfissões”, recebeu menção honrosa do júri oficial. Um filme instigante. Quando ele começa, supomos que veremos mais um filme sobre a dura vida de catadores de lixo. Mas, à medida em que a diretora avança no retrato de Maria Tugira Cardoso, que há 30 anos cata resíduos em lixão de Uruguaiana, vamos nos deparando com uma grande – e muito articulada – contadora de histórias. Uma mulher de discurso complexo, vivenciado e envolvente.

Um registro final: os curtas “Nome de Batismo, Alice” (Brasil) e “Ressonâncias” (Líbano) estão habilitados a participar da seleção da Academia de Cinema de Hollywood que definirá as produções que disputarão o Oscar de melhor curta documental em 2019.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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