Selfiementary
O que mais me fascina nas artes audiovisuais contemporâneas é a nova qualidade da relação do artista com a realidade, proporcionada tecnicamente pelo avanço da comunicação digital. É na zona do que ainda é classificado genericamente como Documentário que acontecem os procedimentos mais inovadores, as ousadias mais explícitas no que se refere à invenção de linguagens, à busca de novos códigos, de novos preceitos. Digo classificado genericamente como Documentário, porque as narrativas, os processos, os contingentes que estão resultando dessa nova conexão, ou vínculo, ou analogia entre homem e máquina, são tão diversificados que não cabem em uma só palavra.
O termo foi cunhado na década 1930 pelo escocês John Grierson durante a agitação da escola inglesa de documentário, movimento financiado pelo governo juntando cineastas de várias partes do mundo, entre eles Robert Flaherty, Basil Wright e o brasileiro Alberto Cavalcanti. E também os animadores Norman McLaren e Len Lye, já que o movimento fazia experiências com animação em seus docs. Não havia uma denominação para os filmes não ficcionais, a não ser a antiga acepção “vistas”. Mas “vistas” ou “paisagens” não correspondiam à ação política e as ousadias formais do cinema que aqueles jovens estavam fazendo.
Ninguém gostou da palavra documentário. Cavalcanti achou que sugeria poeira, tédio e museu e sugeriu a denominação Neo-Realismo, antecipando-se ao cinema italiano do pós-guerra. Grierson, que tampouco gostava da palavra (“pouco elegante, desajeitada”), mas era o produtor geral, fechou a questão: “eu negocio com o governo, com políticos, e a palavra documentário os impressiona, dá a sensação de algo sério”. Pois, o cinema não-ficcional foi batizado Documentário para que seus produtores conseguissem recursos do Estado.
Intimidade e expansão
Hoje, com a velocidade tecnológica acelerando os processos de criação, cada um que procure seu nicho no universo do “documentário criativo”, para muitos um conceito redundante. Para não falar na meninada, que está mandando ver e ouvir; entre esses muitos, estão veteranos como Agnès Varda, 90 anos, com seus espelhos, praias, rostos e vilarejos cruzando-se em uma trapaça com o real e com a sensação do real. Refiro-me à poesia de “Les Plages d’Agnès” e “Visages, Villages”. O processo de criação, o ser ou o não ser, a dualidade real/imaginário? Vejam “O Último Romance de Balzac”, de Geraldo Sarno. Ou vamos visitar Orson Welles nos anos 1970 e seu “F for Fake” (“Verdades e Mentiras”).
A questão é que realidade e imaginário estão relacionados, o concreto e o abstrato se complementam, memória e imaginação se misturam. Meu primeiro entusiasmo com essas novidades foi o documentário de animação. Com a possibilidade de o cineasta contar suas próprias experiências de vida acontecidas ou acontecendo sem se prender à materialidade do real. A possibilidade de você mesmo narrar a sua infância, por exemplo, sem necessidade de material de arquivo ou entrevistas mnemônicas de parentes.
Recentemente, estive envolvido com três modalidades dessa nova atitude audiovisual: one-to-one, webdoc, selfiementary. O one-to-one envolve apenas o cineasta e uma personagem, ou uma pessoa, ou um entrevistado. Apenas o cineasta e sua câmera digital, seu objeto de foco e a relação entre esses elementos. O one-to-one que mais me tocou foi “La Ilusión”, da cubana Susana Barriga. Depois de muitos anos sem ver o pai, que abandonou Cuba, ela vai à Europa para encontrá-lo e tem uma enorme decepção. O webdoc é a expansão de um tema no ciberespaço. Quando é praticado por um grupo fechado, tipo WhatsApp, o que acontece é a realização de uma obra coletiva, com vários pontos de vista concordantes e discordantes, muitas histórias confluindo ou chocando-se. Se for praticado nas redes abertas (não sei se já foi), pode não acontecer nada ou viralizar, o que seria uma loucura.
As redes e as câmeras
O webdoc apareceu na minha zona de interesses assessorando um projeto de cinema e TV de Alice de Andrade. Em 1992, Alice filmou em Havana os casamentos de 40 casais de cubanos, 80 pessoas, e os filma até hoje, 25 anos depois. Esse lindo projeto já frutificou nos filmes “Lua de Mel” (1992) e “Vinte Anos” (2016) e na telessérie “Amores Cubanos”, em fase de produção. Trabalhando com ela, surgiu a pergunta de quando e como será a obra seguinte e a resposta óbvia é que o formato mais adequado é um webdoc. Com a participação de todas as personagens e seus descendentes e amigos, divórcios, novos acasalamentos, andanças, mudanças, a roda da vida. Alice já tem o título para o webdoc: “80 Destinos”.
É também pelo seu formato que o selfiementary está crescendo nesse nosso tempo de individualidades, violência, corrupção, preconceitos, manifestações populares, ódio e anseios de libertação. É a gravação de acontecimentos e emissão de informações e comentários com uma câmera pequena ou telefone, com o cineasta sempre presente na tela. Quem inventou o termo selfiementary e quem mais o utiliza e desenvolve é o cineasta e escritor venezuelano Carlos Caridad Montero, que há mais de um ano grava um diário sobre a crise em seu país e lança tudo na web. É um formato indissoluvelmente ligado à imagem, à voz e ao ponto de vista de quem antes ficava atrás da câmera e agora fica atrás e na frente. Informativo, reflexivo e também performático. Vejo tudo isso como manifestações de uma nova arte que está nascendo. Saudações a Dziga Vertov e a Eryk Rocha.
Por Orlando Senna, cineasta e escritor
Perfeito!