A arte de roubar

Fazer igual, só que diferente. Esse é um mantra que se vocaliza no meio audiovisual, especialmente em televisão. O que parece uma contradição é, na verdade, um paradoxo com raízes antigas.

Em “A Angústia da Influência”, o crítico literário Harold Bloom estabelece que a criação é sempre um combate entre a tradição de um lado e o poeta de outro. Um poeta forte tem, diante de seus antecessores, uma atitude de respeito e reverência: a grandeza dos versos que chegaram ao cânone paralisa e desafia suas mãos na hora de escrever. Uma luta entre o saber consolidado e a ruptura, cuja arena é o papel em branco. Romper com o artista por quem devotamos amor, daí nasce a angústia da criação.

De um jeito ou de outro, estejamos atentos ou não, a tradição se espalha como sombra a cada história a ser contada. Só quem tem uma biblioteca magra aposta todas as fichas na originalidade absoluta, como apregoa o crítico literário João Cezar Castro Rocha. Seu livro “Machado de Assis: por uma Poética da Emulação” trata, por outro ângulo, desse tour de force entre passado e presente. O personagem da saga é Machado de Assis, um escritor esforçado que se tornou um dos grandes em sua angústia diante de Eça de Queiros. Seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi concebido em atitude de respeito e raiva, devoção e despeito em relação ao consagrado escritor português. Daí para frente, a pena de Machado seria outra.

Emular era uma prática artística corrente desde a Antiguidade até o século 17. Não se trata de imitar, mas de tomar modelos referenciais e, de certa forma, rivalizar com eles. Encontrar o original a partir da cópia. Dessa forma, uma obra gera outra, em uma situação em que surrupiar temas, personagens, imagens e conceitos era a regra. O roubo era uma virtude.

Machado de Assis entra sorrateiramente na casa de Pascal, de Maistre, Shakespeare, Stendhal, Sterne, Swift para assaltá-los. Só que faz isso de forma gaiata, “anacrônica”, na definição de Castro Rocha. A poética da emulação machadiana atualiza as velhas práticas agora de uma forma transgressora, com total liberdade para se apossar de forma anárquica dos modelos anteriores, demonstrando que a cópia pode ser mais original que o original.

Existe um pouco do velho Machado em cada roteirista que tenta dar vida a uma nova série. O parricídio a se cometer se volta contra Tony Soprano, Walter White, Carrie Mathison e Don Draper. Nas salas dos escritores – local onde um grupo de abnegados tenta dar vida à próxima série de TV ou, pelo menos, falhar em comunhão –, tão logo surja uma ideia, de bate pronto alguém aponta que ideia semelhante já foi utilizada em outro programa. Um terceiro lembra que a mesma ideia foi usada com frequência no passado, e o literato do time explica que se trata de um tema corrente em literatura. As associações prosseguem, tornando evidente o fato de estarmos diante de um padrão. Dependendo da perspicácia dos membros da sala, uma ideia jogada na roda pode gerar uma rede de afinidades que recua até Homero. Os fracos de espírito desistiriam, por acharem que serão mais um elo de uma cadeia de plágios infinitos. Os que têm mais experiência narrativa sabem que estão diante de um modelo que ecoa por muitas narrativas, o que implica um alto grau de universalidade.

Fazer igual, só que diferente. Tarantino pegou a tradição de filmes de holocausto e acrescentou o molho da trama de vingança pop. Depois foi à tradição de histórias de escravidão e acrescentou o molho… da trama de vingança pop. “House” ambienta as tramas de investigação, em que todos estão mentindo e podem ser culpados, em um hospital, atualizando as velhas e bem aceitas séries médicas. “Sopranos” encaixa crise existencial no submundo mafioso, uma espécie de corte na jugular existencialista, um improvável encontro entre Freud e o Poderoso Chefão.

Poetas imaturos imitam, poetas maduros roubam. A frase não é de um poeta batedor de carteira, mas de T. S. Eliot, um dos maiores poetas do século passado. O cineasta Jim Jarmursch recomenda que se devore filmes antigos, filmes novos, fotografias, poemas, nuvens e sinais de rua, porque daí vai sair algo autêntico. Afinal, arte é furto. Frase que roubei de Picasso.

 

Por Ricardo Tiezzi, escritor e professor

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