Festival de Brasília aplaude de pé o longa “Torre das Donzelas”

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

A mostra competitiva do 51º Festival de Brasilia do Cinema Brasileiro começou fervendo. O público que lotou o Cine Brasília aplaudiu de pé e demoradamente o longa documental “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira.

Depois de abertura morna, para convidados, na sexta-feira, o festival reviveu noites históricas como as que consagraram “Martírio”, “Nunca Fomos Tão Felizes”, “Eu me Lembro”, “Baile Perfumado” e “A Hora da Estrela”. Ao debater o longa “Domingo”, convidado da noite inaugural, o codiretor Fellipe Barbosa fez curiosa comparação entre a sessão no Festival de Veneza, onde o filme estreou, e a brasileira. “Em Veneza, a projeção foi mais fria e os aplausos, ao final, mais calorosos, aqui a sessão foi mais quente e houve menos aplausos”.

A noite de sábado, 15, a primeira da mostra competitiva foi feminina. Três dos quatro filmes exibidos são criações de mulheres: “Boca de Loba”, curta-metragem da jovem cearense Bárbara Cabeça, assumidamente, feminista e protagonizado por performático time de mulheres, e os longas “Los Silencios”, da paulistana Beatriz Seigner, e “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira. O quarto título da noite, o black movie “Kairo”, é uma criação do paulistano Fábio Rodrigo, mas traz (em sua lacunar e alusiva narrativa) personagem feminina muito forte, Sônia. Representada pela atriz Vanessa Oliveira, a personagem, assistente social, deve desincumbir-se de difícil missão: contar algo muito complexo a um menino de sete anos, estudante numa escola da periferia paulistana.

A presença, na plateia do Cine Brasília, de ex-presas políticas que participam do filme “Torre das Donzelas” potencializou a recepção consagradora. E o público, ao contrário dos convidados da noite de abertura, era formado por universitários e pelos espectadores tradicionais do festival candango. Ou seja, gente progressista, que, além de gritar por “Lula Livre”, fez questão de aplaudir Dilma Roussef em projeção aberta e muitas vezes. Há, registre-se, dissonância. Quando os gritos de Lula Livre se fazem ouvir, algumas vozes reafirmam “cadeia nele”.

A presidente deposta não prestigiou a sessão. A equipe artística e técnica do filme achou correto ela não vir, já que está em campanha pelo Senado, por Minas Gerais. Sua presença poderia transgredir a Lei Eleitoral. E mais: colocar o foco na ex-presidenta, em detrimento de suas colegas de cela no Presídio Tiradentes (na virada dos anos 1960 para os 70). No debate, a diretora Susanna Lira fez questão de lembrar que realizou “um filme horizontal”, ou seja, “com espaço igual” para as duas dezenas de ex-presas políticas que deram seus testemunhos e participaram do filme.

Apenas duas das ex-detentas (Dilma Roussef e Dona Ilda, viúva do guerrilheiro Virgilio Gomes da Silva) prestaram testemunhos individuais, ou seja, fora do dispositivo criado para recebê-las: uma reprodução da torre do Presídio Tiradentes, desenhada brechtianamente em estúdio, de forma semelhante à utilizada por Lars von Trier em “Dogville”.

Susanna justificou a ausência das duas ex-detentas no presídio-estúdio: “Dilma Roussef vivia o auge do processo do impeachment, quando filmamos, e Dona Ilda estava doente”. Quem comunga da ideia defendida pelos colunistas políticos brasileiros de que Dilma é (foi) uma governante desarticulada, incapaz de concatenar ideias lógicas, vai surpreender-se com a lucidez e o humor de suas falas. São dela as intervenções mais brilhantes do filme. E, por isto, ela foi aplaudida várias vezes e calorosamente. E fez rir. Em especial, quando contou que detestava trabalhos manuais e aulas de culinária. Fracassara redondamente ao tentar, com uma amiga, fazer uma sopa de quiabo, e que preferia quinze dias jogando voleibol a fazer tricô, crochê ou bordado.

“Torre das Donzelas” começou a ganhar a plateia quando a marcha “A Internacional” encheu a sala com seus acordes e versos revolucionários. E fez alguns chorarem com “Suíte dos Pescadores”, de Dorival Caymmi, cujo estribilho “Minha jangada vai partir pro mar…” era cantado pelas presas para despedir-se de colega que ia partir (para outro presídio ou para a liberdade). O debate foi marcado por depoimentos de ex-presas políticas sentadas à mesa (Rita Sipahí e Ana Bustin Miranda) e outras sentadas na plateia (em especial, Marlene Socas). E por respostas claras da realizadora.

Susanna Lira acrescentou à citada influência de “Dogville”, outro filme com o qual dialogou: “César Deve Morrer”, dos Irmãos Taviani. Neste filme, presos comuns representam “Júlio César”, de Shakespeare, no presídio. Um crítico, Carlos Alberto Mattos, lembrou que a diretora conseguiu se equilibrar entre a importância da sororidade (a fraternidade que uniu as presas políticas e permitiu que fizessem do cárcere espaço de convivência e aprendizado) e as infelicidades do arbítrio ditatorial (afinal, elas foram submetidas a torturas e outros sofrimentos).

A presença (discreta) de jovens atrizes que representam, no filme, as hoje idosas senhoras que estiveram presas no Tiradentes foi explicada por Susanna: “não quis, de forma alguma, fazer docudrama, pois em nenhum de meus filmes recorri a este recurso. Elas estão ali, as atrizes, de forma muito reduzida, apenas para evocar a juventude daquelas mulheres que tinham 20 e pouquinhos anos, uma delas tinha apenas 18″.

Sequência em que uma das presas políticas analisa sua vagina num pequeno espelho foi a mais difícil de realizar. Susanna diz que “uma amiga jornalista e feminista se voluntariou para atuar naquela sequência”. E mais: “pedi a Guida, a ex-presa política que rememorara aquele procedimento dos dias de cárcere, que a dirigisse”. Foi “muito importante expor este órgão feminino tão temido e bloqueado”.

Ao final do debate, Susanna dedicou a sessão a duas ex-presas políticas que partiram depois de participar do filme: “Maria Luíza Belloque e Dulce Maia”. Dulce — contou emocionada — estava muito doente, já em fase final. Mas encontrou forças para ir ao estúdio-presídio conviver com as amigas e dar seu testemunho.

“Los Silencios”, segundo longa-metragem de Beatriz Seigner (de “Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano”, 2009), ocupou longa e empenhada jornada da cineasta. O primeiro tratamento de roteiro foi escrito em 2009 e tinha Manaus como cenário. Ali, a diretora realizaria sua aventura cinematográfica, na qual somaria elementos realistas, ou neorrealistas (em diálogo aberto com o documentário), e fantasmagóricos (em diálogo assumido com o cinema asiático, em especial Apichatpong Weerasethakul). O passar dos anos, até viabilizar esta coprodução entre Brasil, Colômbia e França, que estreou na Quinzena de Realizadores, em Cannes, Beatriz foi enriquecendo seu roteiro.

O cenário acabou se transferindo para Letícia, município colombiano, próximo à brasileira Tabatinga e à peruana Santa Rosa. Nesta tríplice fronteira, ela situou a história de uma mulher de 40 anos, Amparo (a colombiana Marleyda Soto), que foge dos conflitos armados em seu país e busca o status de refugiada. Ela é mãe de dois filhos, Núria, de 12 anos, e Fábio, de 9. O marido Adão (interpretado pelo brasileiro Enrique Diaz) teria desaparecido em circunstâncias misteriosas, junto com a filha. A burocracia exige que Amparo comprove tal desaparecimento. O que veremos, daí em diante, é uma história misteriosa e ambígua, fotografada com imensa poesia por Sofia Oggioni, que nos conduzirá a um ambiente mágico e místico: a Isla de la Fantasia.

No debate do filme, Beatriz contou que tal ilha tem existência real e situa-se nos arredores de Letícia. E que passa quatro meses embaixo das águas e, portanto, só é habitável por oito meses. Nela vivem imigrantes e “fantasmas”. A maior parte do filme foi rodada neste cenário mágico.

Muitos dos atores do filme foram escolhidos entre os moradores da região e dão imensa autenticidade ao filme, falado quase inteiro em espanhol. Alguns deles, caso da “abuelita” Dona Albina e do Presidente, o líder da comunidade, ajudaram nas pesquisas de Beatriz Seigner, que ouviu centenas de testemunhos para compor seu roteiro. Isto num filme em que imagens e sons são essenciais e os diálogos bastante reduzidos (até para fazer jus ao enigmático título “Los Silencios”).

Filmar na Amazônia que se estende do Brasil à América Hispânica não é fácil. O produtor brasileiro de “Los Silencios”, Leonardo Mecchi, confessou que, “em 15 anos de carreira, nunca me defrontei com produção tão complexa”, tão sujeita às intempéries da natureza. Contou, ainda, que permaneceu no hotel, em Letícia, “como uma espécie de refém”, até que chegassem os recursos para saldar as dívidas da equipe. Mas Beatriz, por sua vez, lembrou a cumplicidade da comunidade, que se entregou com tamanho entusiasmo ao filme, que numa sequência prevista para mobilizar 12 canoas, foi brindada com 50 embarcações. Todas “fruto da vontade e entrega dos moradores de Letícia”. Brincando, ela contou: “nos sentimos em nosso momento Ben-Hur”.

A cineasta, que vem do teatro, iniciou-se no cinema em uma das Oficinas Kinoforum, “a primeira, 17 anos atrás”. Por isto, ela ficou entusiasmada em ter como parceiro de mesa de debates (e de sessão) o cineasta Fábio Rodrigo, que realizou “Kairo” com financiamento de Edital Inclusivo da Spcine e formou-se nas mesmas Oficinas Kinoforum. Antes de encerrar o debate, Beatriz Seigner sugeriu que “Kairo” e “Los Silencios” façam dobradinha no circuito comercial. Ou seja, que sejam lançados juntos.

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