Cinema em Conexão: Entrevista

Existem muitas maneiras de se articular uma coprodução internacional desde os primeiros rascunhos de um longa-metragem. Uma delas é por meio dos laboratórios de desenvolvimento de projetos, que ocorrem em vários países, estimulando a aproximação entre os profissionais e os seus potenciais parceiros na elaboração do próprio roteiro até a comercialização do filme pronto. Alguns dos maiores festivais de cinema do mundo, como o de Cannes (França) e o de Torino (Itália), há muitos anos, fomentam essa integração por meio de ateliês e residências, nos quais os realizadores desenvolvem os seus roteiros e os apresentam posteriormente para agentes do mercado internacional dispostos a conhecerem e a investirem em novos talentos.

Aqui no Brasil, desde 2011, o BrLab, que acontece em São Paulo, no segundo semestre, é a plataforma que incentiva não apenas projetos brasileiros, mas também dos vizinhos da América Latina e da Península Ibérica, encorajando a coprodução com todos os países da região, focando na circulação internacional. Nos últimos oito anos, dezenas de projetos foram aperfeiçoados nesse encontro anual, com olhares de produtores, distribuidores e agentes de vendas, analisando os pontos fortes e fracos de cada um deles.

Nesse catálogo, destacam-se obras como “O Lobo Atrás da Porta” (Fernando Coimbra, 2013), “Depois da Chuva” (Cláudio Marques e Marilia Hughes Guerreiro, 2013), “Sinfonia da Necrópole” (Juliana Rojas, 2014), “A Sombra do Pai” (Gabriela Amaral Almeida, 2018), “Temporada de Caça” (Natalia Garagiola, 2017) e “As Herdeiras” (2018), do cineasta paraguaio Marcelo Martinessi, que concedeu uma entrevista para esta coluna, contando a sua experiência no laboratório e como isso potencializou a coprodução do seu filme.

Antes de adentrarmos no seu relato, vale lembrar que “As Herdeiras” é uma coprodução do Paraguai com outros cinco países, incluindo o Brasil. De acordo com os dados do Centre National du Cinéma et de l’Image Animée (CNC), o Paraguai detêm 30% das responsabilidades financeiras e artísticas do filme, sendo o país majoritário. Os demais sócios são Uruguai (20%), Brasil (20%), Alemanha (19%), França (7%) e a Noruega (4%).

“As Herdeiras” teve première internacional no Festival de Berlim de 2018, no qual foi premiado com o Urso de Prata de Melhor Filme e de Melhor Atriz para Ana Brun. No Brasil, a obra desembarcou no 47º Festival de Gramado e lá arrebatou os principais prêmios na categoria de longa-metragem estrangeiro: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Filme do Júri Popular e do Júri da Crítica, Melhor Roteiro e Melhor Atriz para o trio Ana Brun, Margarita Irun e Ana Ivanova. A estreia ocorreu logo depois, no dia 30 de agosto de 2018 (em 25 salas, pela distribuidora Imovision) e o público total foi de 22.587 espectadores, segundo a Ancine. Na França, “As Herdeiras” estreou em 28 de novembro e vendeu 15.144 ingressos, o que é um bom número para um filme majoritariamente latino-americano e falado em espanhol.

Confira a entrevista de Marcelo Martinessi para a Revista de CINEMA:

Revista de CINEMA – Poderia contar como foi a sua experiência em um laboratório como o BrLab? O que foi dito sobre o seu projeto naquele momento? 

Marcelo Martinessi – Como nunca antes havíamos estado em um estágio de capacitação como esse, toda a experiência foi muito intensa e enriquecedora. De um lado, porque nos deu a oportunidade de conhecer melhor as possibilidades de produção que tínhamos na região e no mundo. Mas, por outro, porque foi possível obter diversos olhares sobre o projeto, seus potenciais, assim como suas dificuldades. Foi uma avalanche de sensações e saímos dali com a distância necessária para poder rever – e inclusive redescobrir – o que estávamos fazendo, através de novas análises e comentários. E saímos também com um montão de pessoas que agora são como uma família, com as quais nos encontramos uma vez ou outra em diversos lugares.

Revista de CINEMA – Quais percepções de mercado internacional ficaram mais claras?

Marcelo Martinessi – Nos ajudou muito, porque nos introduziu a conceitos e formas de trabalho que não conhecíamos, vindos de um país com uma cinematografia emergente, que não tem instituto e nem desenvolvimento real nas indústrias culturais e criativas. Lembro-me das conversas sobre fundos de fomento e workshops, sobre mecanismos de distribuição de filmes latino-americanos e também sobre as formas de relacionamento entre os produtores e as empresas de vendas internacionais. Aprendemos muito.

Revista de CINEMA – “As Herdeiras” é uma coprodução do Paraguai com Alemanha, Uruguai, Noruega, França e Brasil. Como você chegou à coprodutora brasileira? 

Marcelo Martinessi – O BrLab foi fundamental não apenas nisso. Ali, foi possível armar toda a coprodução do lado sul-americano. Além da Julia Murat (por meio da sua produtora Esquina Filmes/Brasil, com quem eu já tinha tido contato antes), em São Paulo o projeto teve o primeiro olhar e interesse da Agustina Chiarino (Mutante Cine/Uruguai), que acabou se tornando coprodutora também. E, além delas, várias etapas internacionais em que o projeto participou tiveram a sua origem no BrLab. Tudo isso foi levando, pouco a pouco, à realização do filme.

Revista de CINEMA – Quais são as vantagens e os problemas de ter tantos coprodutores envolvidos? 

Marcelo Martinessi – Aprendemos que o crucial não é o número de coprodutores envolvidos. Se não fôssemos seis, poderíamos ter sido três ou dez. O fundamental é que cada produtor tenha um compromisso verdadeiro com a história que vamos contar juntos, e que todos entendam esse roteiro e o percebam como se fosse seu. Com alguma frequência, podem surgir conflitos e problemas, mas, quando todos têm o mesmo objetivo, é muito mais fácil de resolver qualquer inconveniente e seguir adiante.

Revista de CINEMA – Depois de pronto, o filme foi exibido e premiado na Berlinale. Como o festival abriu as portas internacionais para as vendas a outros países?

Marcelo Martinessi – Enviamos para Berlim uma versão que, tecnicamente, se chama work in progress. Ou seja, o filme ainda estava inacabado naquele momento. Por isso, para além da alegria da própria seleção, era urgente acelerar os processos da edição final, correção de cor e mixagem de som para poder chegar ao festival com o filme totalmente finalizado. A Berlinale é uma plataforma de muita visibilidade para um filme como o nosso, produzido em uma “escala humana”, em contraposição a outras produções de grandes estúdios, que também estavam na competição.

Revista de CINEMA – Além dos países coprodutores, em quais territórios ele já foi lançado?

Marcelo Martinessi – Depois do Festival de Berlim, o filme teve uma trajetória inesperada. Fiquei responsável por levá-lo a vários festivais: Austrália, Romênia, Coreia do Sul, Egito, e a outros países que talvez não tivesse sido fácil conhecer de outra forma. Ele já foi vendido para uns 30 territórios, com lançamentos já ocorridos em salas de cinema da Inglaterra, França, Itália, Suécia, Estados Unidos, Espanha, México, Argentina… No Brasil, além do circuito comercial, ele foi muito bem no Festival de Gramado.

 

Por Belisa Figueiró, autora do livro “Coprodução de Cinema com a França: Mercado e Internacionalização” (Editora Senac São Paulo, 2018).

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