Sandra Kogut reflete sobre a distribuição de “filmes de arte”
A cineasta Sandra Kogut saiu da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que promoveu a première brasileira de seu novo longa-metragem, “Três Verões”, direto para dois festivais de cinema, um na Holanda, e um na Turquia. Este atribuiu a Regina Casé, protagonista absoluta do filme, o troféu de melhor atriz.
Ao regressar, a cineasta dirigiu à Revista de CINEMA, reflexões sobre o lançamento de seus dois primeiros filmes de ficção, “Mutum” (2007), sobre um menino míope, baseado em textos literários de Guimarães Rosa, e “Campo Grande” (2015), também com personagens infantis no centro da narrativa. Ela estreou no cinema com um longa documental, “Passaporte Húngaro” (2001), realizado depois de alguns curtas, dos quais o mais conhecido é “Lá e Cá” (1995), protagonizado, como “Três Verões”, por Regina Casé.
Depois de saber que o tema do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio, responsável pelo ingresso dos estudantes aprovados em universidades públicas), foi “A democratização do acesso ao cinema no Brasil”, Sandra entendeu que suas reflexões “tornavam-se ainda mais atuais”.
Segue a carta que ela encaminhou à Revista de CINEMA e à jornalista Maria do Rosário Caetano:
Primeiro, muito obrigada pela tua crítica ao meu novo filme, ‘Três Verões’, publicada na Revista de CINEMA (20/10/2019). Fiquei feliz em lê-la. Teria um monte de coisas a dizer sobre o filme – pra mim “Três Verões” é acima de tudo um retrato do pesadelo neoliberal que vivemos – um mundo onde tudo se tornou mercadoria, onde pobres e ricos só falam em dinheiro, onde os laços sociais estão desaparecendo, e a cada um só resta se virar como puder. Esse é o mundo que vem se desenhando pra gente, com as consequências que conhecemos. E esse é o mundo do filme. Mas escrevo pra comentar o que é dito no texto sobre distribuição. Esse é um tema tão importante, que toca em algo profundo sobre o acesso ao cinema, e que muitas vezes abordamos superficialmente.
Queria contar duas historinhas sobre meus filmes anteriores (“Mutum” e “Campo Grande”) que, como você bem diz no teu texto, não tiveram bilheterias expressivas. Quando lançamos “Mutum”, o filme já começou sua carreira condenado a ser para poucos, porque já chegou aos cinemas com a etiqueta de ‘filme de arte’ (por ter estreado em Cannes, rodado um monte de festivais, ganhado prêmios etc). Além disso, era uma adaptação do Guimarães Rosa. Essas etiquetas sufocam os filmes. Aí, aconteceu uma coisa inesperada: as comunidades no sertão mineiro que tinham participado do processo de preparação e filmagem (ficamos um ano e meio pesquisando, procurando as pessoas, os lugares, fazendo oficinas) se organizaram e por iniciativa própria começaram a promover sessões por lá. Eram sessões na zona rural, onde o público vinha de longe, dirigindo às vezes por horas em estradinhas de terra, para conseguir chegar.
O filme era projetado na parede da Igreja, ou na escola da cidade – já que nesses lugares não existem cinemas. As sessões ficavam lotadas. Vinham famílias, senhoras, vaqueiros, crianças. Todo mundo concentrado, mergulhado no filme. Depois da sessão, os debates eram sensacionais. Vivos, intensos.
Me lembro de pensar algumas vezes : será que se existisse acesso ao cinema no interior do Brasil, “Mutum” não poderia ter sido um filme popular? Afinal, o que define um filme popular? Quão autoritário é o modelo de distribuição que não permite às populações fora dos grandes centros acesso a filmes que fogem do padrão comercial?
Quatro anos depois, lançamos meu filme “Campo Grande”. Um filme urbano, rodado no Rio de Janeiro, em grande parte neste bairro da Zona Oeste da cidade de onde tiramos seu título. Na época do lançamento, eu quis que o filme chegasse aos cinemas de Campo Grande, mas todos foram categóricos: era impossível. Ali, só tem cinemas de shopping, que só programam blockbusters. Era verdade. Mas aí aconteceu uma história parecida, inesperada: os próprios moradores de Campo Grande começaram um movimento na internet, espontâneo. Criaram uma página chamada “Campo Grande quer se Ver na Tela”. Nela, pediam que as pessoas mandassem mensagem para os exibidores do shopping pedindo que programassem o filme. Tanto fizeram que o exibidor cedeu.
“Campo Grande” entrou em cartaz lá, no cinema de shopping. E a mobilização não parou por aí. Pessoas postavam fotos das filas em diferentes horários. O cinema ficava cheio, lotado. As pessoas queriam provar que tinham razão. Que tudo era uma questão de acesso, de oportunidade. Ou seja, mais uma vez surge a mesma pergunta: o que define um filme popular? Muita gente na periferia não tem acesso à outros tipos de cinema”.