Como escrever o roteiro piloto de uma série de ficção?
Por Hermes Leal
Existem inúmeras formas e dicas para estruturar a escrita do roteiro de um “piloto” de uma série de ficção, o tão importante primeiro episódio, que servirá como espelho da série inteira. Por isso, ele requer uma grande atenção. O conhecimento que vamos introduzir não é uma dica, mas uma estratégica de estruturação da narrativa e dos personagens, gerada após décadas de estudos científicos na área da teoria da narrativa.
O que o difere dos demais, é que, no primeiro episódio, existe a função de armar os conflitos futuros, que se iniciam através de “contratos” entre os personagens para uma jornada, que determinarão os acontecimentos esperados e inesperados dos episódios seguintes. Neste sentido, o primeiro episódio, considerado como piloto, não tem uma teoria separada dos demais episódios em uma série, e só estará desenvolvido de forma satisfatória, quando a série estiver escrita até o seu último episódio.
Esse tipo de criação narrativa tem um “início” com a função de organizar a apresentação dos personagens e de suas jornadas, através de “contratos” com outros personagens, nem sempre por suas vontades ou interesses. Consideramos o contrato entre os personagens (como algo já definido por Aristóteles em uma lógica implicativa) uma necessidade, no plano da ação, de exercerem uma manipulação e arranjos, relacionados a este contrato, e uma sanção, no último ato, quando a verdade do contrato deverá ser revelada. O que acrescentamos agora são as paixões dos personagens neste contrato, que tem um caráter “concessivo”, de não previsão do que poderá acontecer com o futuro dos personagens. E que chegará imprevisível em forma de surpresas.
No roteiro piloto de “Game of Thrones” (HBO, 2011), as cenas estão bem distribuídas entre os personagens para atender aos principais contratos. A consumação do contrato de Daenerys Targaryen, a Rainha dos Dragões, com o senhor da guerra Dothraki Khal Drogo, em troca de um exército para conquistar Westeros e recuperar o Trono de Ferro, tem início e termina no primeiro episódio. O contrato de Jon Snow com a Patrulha da Noite também se inicia e se encerra no primeiro episódio, assim como a promessa de um contrato de casamento entre membros das famílias de Ned Stark e dos Lannister. Um contrato entre norte e sul.
O que está em jogo em um episódio piloto, relacionado ao contrato, é que ele é um tipo de contrato ilusório, nem sempre tem explícitas suas cláusulas, em que um personagem também nem sempre sabe o que está “assinando” neste contrato. Cada personagem deseja algo diferente do outro, quando estabelecem essa fase contratual, por isso, a tendência a surgir problemas mais à frente. Especialmente, quando este contrato é quebrado. Porque os contratos são regidos por “intenções passionais” dos outros personagens.
O contrato de Daenerys para sua longa jornada, ao se casar por interesse, inclui um nível do “sentir”, que trata da passionalidade da “vingança” que a afeta, e que virá à tona no último episódio da saga, quando é morta por Jon Snow, na sanção, em que a verdade precisava ser revelada. Já o contrato de Jon Snow para ser patrulheiro inclui o sentimento de ressentimento e mágoa por ser um bastardo, um sem-ninguém nos valores da série. Será a sua paixão da mágoa e rebeldia que o moverá para o contrato com a Patrulha.
O primeiro episódio de “Game of Thrones” dedica três longas sequências para mostrar o sofrimento como bastardo de Jon Snow; na divisão dos filhotes de lobos, quando é segregado da família durante a festa e na inesperada conversa com o anão Tyrion. Esse tipo de jornada contratual, que leva em conta o “agir” e o “sentir” dos personagens, está presente em qualquer série de qualidade.
É através desse “contrato”, que pode ser com um objeto ou com uma causa, que John Snow, se une à Patrulha da Noite, em razão de sua paixão da rebeldia, da amargura por ser um bastardo. Ele age e molda seu destino em razão desta revolta. O contrato afetivo entre Jon Snow e sua meia irmã Arya Stark é motivado por esta paixão da revolta e da rebeldia, em razão de se sentirem excluídos.
Todos os contratos serão postos em questão nos episódios seguintes, passando por uma fase de “arranjo” entre os personagens para que o contrato dê certo, quando os personagens manipulam os outros em razão deste contrato, e se fecha quando a verdade oculta no contrato vem à tona. Essa jornada, que vai do “contrato à sanção”, é uma jornada que vai “de uma ilusão a uma verdade”.
A curva que se fecha no final está relacionada à jornada iniciada com o contrato neste primeiro episódio. No plano afetivo, John Snow precisa fechar sua ferida passional, seu ressentimento por ser um bastardo precisará ser liquidado no futuro.
No piloto da minissérie “Chernobyl” (HBO, 2019), os eventos no plano da ação, relacionados ao acidente nuclear, refletem a tensão dos personagens em razão dos contratos entre eles que estruturam a narrativa e a jornada interna de ao menos dois personagens principais: de Lyudmilla Ignatenko com o bombeiro Vasily Ignatenko, que funciona como ferramenta para o roteirista mostrar o “sofrimento” dos personagens atingidos pela radiação. O contrato de Lyudmilla, neste primeiro episódio, tem a função de mostrar o sofrer dos personagens, em meio à busca pelo marido nos episódios seguintes.
O outro contrato, no primeiro episódio, ocorre entre o cientista Valery Legasov (Jared Harris) e o burocrata Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), que abre e fecha o episódio, iniciando com uma gravação da verdade antes do suicídio e fechando com sua ligação conflituosa com Shcherbina, que será mostrada em forma de
“arranjo” entre os dois personagens nos próximos episódios, para que possam se ajustar um ao outro. O contrato com o burocrata existe em razão da revelação da verdade (na sanção), no último episódio, quando vem à tona esta verdade, gravada no primeiro episódio, de que o estado comunista soviético tentou esconder sua culpa e responsabilidade.
Todas as personagens, no primeiro episódio de “Big Little Lies” (HBO, 2017), agem em torno de um contrato com outro personagem, especialmente as quatro esposas com seus maridos. O primeiro episódio tem, no plano da ação, o reencontro de mães e amigas buscando seus filhos na porta de uma escola. E se fecha, à noite, com todas aquelas personagens agindo em razão dos contratos, em insônia e insatisfação, sem dormir, como se todas tivessem uma culpa em sua alma.
O primeiro episódio é para mostrar as passionalidades dos personagens, armar as intrigas e o suspense sobre o culpado ser uma daquelas mulheres. Sabemos quem é de fato a estressada Madeline (Reese Witherspoon), quando ela discute o seu contrato com o ingênuo marido, Ed (Adam Scott), revelando, no plano da paixão, o quanto ela é insegura e ele, imaturo.
O piloto serve para estruturar o contrato principal da série, entre duas personagens mulheres, a popular Madeline e a sofredora Jane (Shailene Woodley), que foi estuprada no passado, resultando em um filho, agora com seis anos, e quer descobrir quem lhe causou este dano e se vingar. É através do contrato de casamento de Celeste Wright (Nicole Kidman) que o drama se torna violento, e que a vencedora Renata Klein (Laura Dern) revela sua arrogância e intolerância, quando o marido não lhe dá ouvidos.
Enquanto que, no plano da ação, existe um “dano” causado à Jane, que tem um filho de seis anos, fruto deste estupro, que precisa ser liquidado nos demais episódios, porque neste primeiro episódio é a personagem que mais passa sentimentos de ódio, raiva e abre o sentido que fechará a série, quando se revelará quem foi morto, e quem foi a assassina. O contrato entre Madeline e Jane permitiu essa construção narrativa bem organizada para o fechamento do programa narrativo de cada personagem, iniciado no primeiro ato.
E a novidade também é que, nesta teoria, está incluso, na jornada da ação, o “sentir” dos personagens e sua jornada interna, incerta, sofredora e cheia de imprevistos. Jane tem essa fratura a liquidar, como todas as outras mulheres também têm as suas. Será a busca pela verdade, com relação ao pai de seu filho, e as acusações de que ele é violento, que moverá as tensões passionais dos episódios seguintes, e fechará os problemas “passionais” dos personagens que surgiram no primeiro ato.
Esta teoria do contrato é maior que esse resumo limitado ao plano da ação dos personagens, e pode ser melhor estudado e compreendido em um amplo estudo aplicado em filmes e séries, chamado “As Paixões nos Personagens”, que se encontra no site da Amazon, traduzido em três idiomas.
Dentro de nossa teoria da narrativa, podemos doar ferramentas necessárias para um roteirista desenvolver bem este primeiro episódio, mostrando a curva de um personagem para sofrer transformações. Para isso, é necessário que o arco de uma história, com um começo, meio e fim, seja operado por estas transformações obrigatórias dos personagens. Uma transformação no nível da “ação” que precisa também ocorrer no nível do “sentir” dos personagens.
Hermes Leal é escritor, jornalista e cineasta, autor do método para escrever roteiros screenwriteronline.com.