Belas Artes lança superprodução sobre vida da cantora Dalida

Por Maria do Rosário Caetano

“Dalida” (lê-se dalidá), superprodução francesa de 15 milhões de euros, chega ao Brasil via streaming, em lançamento do Belas Artes à la Carte. O filme, que acompanha a trajetória da cantora egípcio-franco-italiana, detentora de discos de prata, ouro e diamante por 140 milhões de unidades vendidas, pretendia repetir o sucesso de “Piaf” (Olivier Dahan, 2007). Mas, apesar de algumas de suas qualidades – em especial sua protagonista, a modelo Sveva Alviti, de beleza hipnotizante –, “Dalida” não repetiu o sucesso de “Piaf”. Este alcançou tamanho êxito, que fez de sua protagonista, Marion Cotillard, laureada com o Oscar, uma das mais requisitadas estrelas do cinema europeu. Já a longilínea Sveva Alviti, de 36 anos, ainda não conseguiu firmar-se no mundo das imagens.

“Dalida”, dirigido pela cineasta francesa Lisa Azuelos (de “Meu Bebê”, com Sandrine Kiberlain), foi lançado em 2017. Não convenceu a crítica, alcançando a modesta média de três estrelas. Sua protagonista, porém, a todos encantou. Um fã da cantora nascida no Egito, no seio de família italiana, sintetizou: “Sveva Alviti é a verdadeira reencarnação do mito Dalida”.

A revista Positif foi o único veículo de prestígio a atribuir 4 estrelas ao filme, enquanto o Libération não fez por menos (uma mísera estrela), Le Monde deu 2 e Les Inrock, 3. Cahiers du Cinéma ignorou. Para a bíblia dos cinéfilos, cinebiografias de recorte tradicional não merecem atenção.

O público, que elevara “Piaf – Hino ao Amor” à condição de blockbuster (quase 5 milhões de espectadores na França), foi mais contido na recepção à cinebiografia de Iolanda Cristina Gigliotti, a Dalida. O número de ingressos não chegou a 800 mil.

As novas gerações nem imaginam quem foi Dalida. Mas a cantora e atriz tornou-se, em seu tempo, em ícone europeu do tamanho de Madonna (ou Lady Gaga). Em nome da precisão, há que se lembrar que ela foi estrela de três pátrias. Nasceu cairota, em 1933. Elegeu-se Miss Egito aos 21 anos. Sua beleza estonteante fez dela modelo e atriz. Trabalhou em vários filmes egípcios, o primeiro deles com elenco encabeçado por Omar Sharif (“José e seus Irmãos”, 1954). A badalação no Cairo natal a levou a tentar a sorte em Paris. Tornou-se cidadã francesa, sem esquecer sua língua materna (o italiano) e a Península onde nasceram seus avós e pais. Cantou, também, em italiano e causou sensação no Festival de San Remo, quando este era o evento musical mais badalado do mundo. Aliás, fez questão de cantar em muitos idiomas – no árabe que aprendera em seus 21 anos vividos no Egito, em espanhol, inglês, alemão e, até, em japonês.

O cinema sempre fez parte da vida de Dalida. Além do filme de Lisa Azuelos, ela teve sua vida narrada no documentário “Dalida pour Toujours” (1977) e no telefilme ficcional “Dalida, o Filme de sua Vida” (2005), cuja protagonista, Sabrina Ferilli, não dispunha do carisma de Sveva Alviti.

Entre as produções ficcionais em que atuou, a mais famosa – e melhor – é “O Sexto Dia”, de Youssef Chahine, o Rosselini (ou o Nelson Pereira dos Santos) do Egito. O cineasta, nascido em Alexandria em 1926 (morreu no Cairo em 2008), deu a Dalida papel de imensos desafios. Semelhante ao que Pasolini ofereceu a Maria Callas em “Medéia” (1969).

Dalida interpreta Sadikka, uma lavadeira e avó de 43 anos, que conserva imensa beleza, apesar da vida cercada por dificuldades (vive num porão). Em 1947, o cólera grassa entre a população pobre do Egito. Infeliz com o marido paralítico, ela dedica imenso amor ao neto e sonha com vida amorosa satisfatória. Um dia, chega à sua humilde casa um jovem, Okka (Moshen Mohiedine), que vive de malabarismo pelas ruas, tendo um macaco amestrado como partner. Com ele, está o netinho de Saddika, fascinado por Okka. O menino contrai o cólera. A avó, já envolvida passionalmente com o malabarista, decide fugir com o neto (apoiada por Okka). Eles tomam um barco, rumo a Alexandria. Os esforços de Sadikka para salvar o neto contaminado serão muitos e arriscados.

“O Sexto Dia” baseia-se em romance realista e ganhou, na adaptação chahiniana, diálogo com o musical hollywoodiano (mas adaptado ao Terceiro Mundo). Por causa dos fascinantes números de dança malabarística de Okka, o cineasta dedicaria o filme a Gene Kelly (1912-1996). Papel mais desafiador que o de Dadikka, Dalida não encontraria. Até porque, um ano depois do filme de Chahine, ela recorreria ao suicídio (tinha 54 anos).

O suicídio, aliás, acompanharia a trajetória da cantora. Três dos homens que ela amou colocaram um ponto final às suas vidas. O caso mais tempestuoso envolveu o cantor e compositor Luigi Tenco (1938-1967). O jovem piemontês tinha fama de talentoso e perturbado. No filme, ele aparece na cama com a bela namorada (Dalida), sempre acompanhado de livros do filósofo Heidegger. Para a décima-sétima edição do Festival de San Remo, Tenco compôs “Ciao, Amore, Ciao”. Combinou com Dalida que ela defenderia a canção.

Em San Remo, no filme de Azuelo, os dois namoram, preparam-se para a competição, posam para os fotógrafos. Só que “Ciao, Amore, Ciao” não alcançaria a recepção esperada. Não se classificaria nem na repescagem. Desesperado, o atormentado Luigi Tenco se negou a comparecer ao jantar de confraternização das estrelas. Dalida iria sem ele. Ao regressar ao hotel, encontrou Tenco morto, com um tiro no ouvido. Ao lado, um bilhete definia seu gesto como “um protesto” contra o festival. Um mês depois, seria a vez de Dalida recorrer ao suicídio, tomando doses excessivas de barbitúricos. Passaria cinco dias em coma, mas escaparia.

O único homem com quem Dalida casou-se de papel passado, mesmo que por breves anos (1961-1962), foi o produtor Lucien Morisse. Ele recorreria ao suicídio em 1970. Outro namorado, o amalucado Richard Chanfray, ilusionista e prestidigitador que fazia sucesso em programas de variedades na TV, recorreria ao suicídio em 1983 (o faria na companhia de outra namorada). Nem Morisse, nem Chanfray viviam com Dalida quando recorreram ao suicídio. Mesmo assim, ela se angustiava e entrava em processo de depressão a cada vez que a morte pelas próprias mãos atingia alguém próximo.

Depois do papel de Sveva Alviti, a protagonista absoluta do filme de Lisa Azuelos, o personagem de maior destaque coube a outro italiano, o astro Riccardo Scarmacio. Ele interpreta Orlando, o irmão-empresário da cantora. Solteirão, o rapaz nos levará a perceber, com sutileza e sem recorrer a estereótipos, que é homossexual. Scamarccio, com seu desempenho, é um dos destaques do filme, no qual o elenco, como um todo, não destoa.

O que prejudica o filme é seu roteiro, por demais panorâmico. Lisa Azuelo peca pela quantidade de temas abordados (a cegueira temporária da menina Iolanda no Cairo, o bullying sofrido das colegas na escola cairota por usar óculos fundo de garrafa, os muitos amores, a ida para período de meditação na Índia, a relação com a família, a gravidez, o pavor de engordar, o repertório eclético, que vai de “Bambino” a “Je Suis Malade”, de “Bang Bang” a “Salma Y Salama”, passando pela fase “discotheque” (quando foi coreografada por Lester Wilson, de “Embalos de Sábado à Noite). E o tema do suicídio, no filme, acaba tratado com ligeireza. No caso de Luigi Tenco, fica no espectador a sensação de que ler Heidegger e ser derrotado em festival pode induzir ao ato extremo.

As contradições de Dalida também são exploradas com superficialidade. Ela sonha ser mãe. Ao relacionar-se com o jovem estudante italiano Lucio (Brenno Placido), de 22 anos (ela tinha 35), a cantora engravida. Seu “maior sonho” era ser mãe. Mesmo assim, Dalida resolve abortar, pois o namorado “era muito jovem”. Para completar, como se fosse uma adolescente, pede ao irmão Orlando que não deixe a mãe deles desconfiar de nada.

O que nos prende ao filme de Lisa Azuelos é o carisma de Sveva Alviti. A semelhança entre a intérprete e a personagem real é mesmo espantosa. Para conquistar o papel, a italiana derrotou candidatas fortes como a espanhola Penélope Cruz e a francesa Laetitia Casta. E aprendeu francês (o filme é falado em italiano, francês e, às vezes, poucas, em árabe). Demonstrando seu amor pelo cinema, Lisa Azuelos dedica bons minutos às filmagens de “O Sexto Dia”.

Não dá para saber se a belíssima Sveva tem talento e veio para ficar. O pouco que se passou na vida dela depois de “Dalida” não é muito encorajador. Os jornais contam que, certo dia, divulgando o filme na TV, Sveva sofreu ataque epilético num programa ao vivo (foi socorrida pelo irmão Orlando e pela diretora Lisa Azuelos). E que fora escalada para novo filme (“Love Adict”, do obscuro Kev Adams). Veio a pandemia do coronavírus e o audiovisual planetário entrou em transe. Sua carreira no cinema se viabilizará?

Da cairota Dalida, fica a imagem poderosa da vamp morena e, depois, da loura estonteante, que em seus dias de glória abarrotou o Olympia de Paris e outras grandes casas de espetáculo espalhadas pelo mundo. Gravou “Paroles, Paroles”, com o astro Alain Delon. Foi ícone da moda ao trajar vestidos de grife e coloridíssimos (afinal, cresceu no país dos faraós). E preferiu suicidar-se a envelhecer.

De Sveva Alviti, por enquanto, fica a perfeita (e arrebatadora) performance como Dalida. Quem assistir ao filme no streaming do Belas Artes, poderá até desgostar de seu resultado. Mas não negará que a atormentada Iolanda Cristina Gigliotti renasceu em cada gesto de Sveva “Dalida” Alviti.

 

Dalida
França, 124 minutos, 2017
Direção: Lisa Azuelos
Cinebiografia da cantora francesa Dalida, nascida no Cairo
Elenco: Sveva Alviti, Riccardo Scamarcio, Nicolas Duvauchelle, Alessandro Borghi, Jean Paul Rouve, Neels Schneider, Brenno Placido, Vincent Pérez
Lançamento em streaming pelo Beles Artes à la Carte

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