Migliaccio – O Brasileiro em Cena
Por Maria do Rosário Caetano
“O filme ‘Os Mendigos’, com direção de Flávio Migliaccio e produção Satélite Filmes Ltda, é uma obra de grande importância para Flávio, mas não nos foi possível ter acesso ao filme, pois sua única fonte encontra-se fechada na Cinemateca Brasileira, onde não conseguimos nenhum contato para retirar e usar na obra sobre o Flávio”.
Este aviso, em forma de protesto, aparece nos letreiros finais de “Migliaccio – O Brasileiro em Cena”, longa documental que estreia nessa quinta-feira, 8 de julho, em cinemas de várias capitais brasileiras.
A trinca de diretores – Alexandre Rocha, Marcelo Pedrazzi e João Mariano, o Tuco – uniu-se a Marcelo Migliaccio, um dos roteiristas do documentário e seu produtor-associado, para explicar por que um longa-metragem que destaca trechos de 13 filmes deixou de fora justo “Os Mendigos”, marco da estreia do ator Flávio Migliaccio na direção cinematográfica.
O desabafo da equipe de “O Brasileiro em Cena” constitui o primeiro protesto impresso em letreiro cinematográfico contra os descaminhos da Cinemateca Brasileira. A instituição, criada por Paulo Emilio Salles Gomes e equipe, está paralisada desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República.
“Os Mendigos”, realizado em 1962, andava sumido até dos olhos de seu criador. Temia-se que não houvesse mais cópia. Mas poucos anos atrás, uma matriz foi encontrada e exibida para o próprio Flávio, que ficou felicíssimo em ver seu primeiro longa-metragem salvo do esquecimento.
A vida do ator, que nasceu em 1935 e morreu (optando pelo suicídio em seu sítio em Rio Bonito) em 2020, é registrada por sua trinca de diretores com muitas histórias, humor, picardia e um quê de desalento.
“Migliaccio – O Brasileiro em Cena” reúne lembranças divertidas, todas evocadas pelo ator, de viva voz, com seu humor particular e único. Uma delas aconteceu na Praia de Copacabana, defronte ao hotel de mesmo nome, durante as filmagens de “Fábula” (ou “Meu Lar é Copacabana”), de Arne Sucksdorff (1917-2001). Nessa produção internacional, Migliaccio atuou como uma espécie de braço direito, um “faz-tudo”, do realizador sueco.
A imagem de um turista alemão foi captada em complexa sequência de “Meu Lar é Copacabana”. Fez-se, então, necessário que ele e os outros frequentadores daquele trecho de praia aceitassem participar, com as mesmas roupas e nos mesmos lugares, das filmagens em dias seguintes. As crianças, protagonistas do filme, brincavam na praia e empinavam pipas. Para evitar “erro de continuidade”, o turista gastou seus dias de férias postado no mesmo lugar. Acabou se divertindo. Quando o filme foi exibido em Cannes, o alemão foi à Riviera Francesa para se ver na tela. O desfecho, revelado por Migliaccio, não foi dos mais animadores.
O segundo momento, divertido, mas de tom melancólico de “O Brasileiro em Cena” mostra a fama como uma droga pesada. Migliaccio relembra excessos dos fãs, quando ele protagonizava, com Paulo José, o seriado “Shazan & Xerife”, na Rede Globo. Seu prestígio era tão grande, que um dia uma criança se agarrou, na praia, ao “Xerife” e não desgrudou mais. A quem devolvê-la? Não teve jeito: no final do dia deixou-a numa delegacia de Polícia.
Flávio conta que foi até “sequestrado” por alguns fãs. “Um dia, na Rua 25 de Março, um comerciante, meu fã, me agarrou e me colocou dentro de uma Kombi. Me levou para a casa dele, para que a família desfrutasse de minha companhia. O jeito foi passar o dia com eles, pois não me deixavam sair”.
De um lado, o excesso dos fãs. Do outro, a falta dos aplausos, autógrafos e mimos. Migliaccio lembrou que, no auge do sucesso, resolveu dar um tempo numa praia deserta. Queria descansar. Mas aí, naquele mundo esquecido, só com pescadores e pessoas que não sabiam quem ele era, veio a carência. Queria ser festejado, abraçado, beijado, “sequestrado”.
O ator conhecia a complexidade do ser humano. Já octogenário, escreveu e protagonizou a peça “Confissões de um Senhor de Idade”, na qual estabeleceu duro diálogo com Deus. Revendo sua própria trajetória, Migliaccio fazia seu acerto de contas e perguntava ao Todo Poderoso por que deixara acontecer a Peste Negra, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, o atentado às Torres Gêmeas.
Trechos da peça compõem a narrativa do filme de Alexandre, Pedrazzi e Tuco. E somam-se a muitas conversas com o ator, fios condutores bem urdidos ao longo de 86 minutos, realizadas em cenários que têm tudo a ver com ele. Seja uma mesa despojada (Flávio esfarelando pão assado na chapa), seja no aprazível sítio em Rio Bonito, seja em diálogo chapliniano com a estátua de Carlos Drummond de Andrade, à beira-mar. E, para dar dinamismo ao documentário, editou-se farto material de arquivo, fruto de pesquisas de Antonio Venancio, a maior autoridade brasileira no assunto.
O filme nos leva a perguntar: o que teria levado Flávio Migliaccio, aos 85 anos, a recorrer ao suicídio? O fez por encontrar-se no ostracismo? Esquecido pelos meios de produção cultural? Abandonado pelo público?
De forma alguma. O ator continuava requisitado e presente em elencos da Globo (depois do hilário Seu Chalita, de “Tapas e Beijos”, desempenharia muitos papéis, até sua derradeira novela, “Os Órfãos da Terra”). Continuava fazendo o público rir de seus personagens compostos com humor, muitas das vezes, dolorido ou patético.
O longa documental, que estreia nessa semana, teve entre seus roteiristas o filho do ator, Marcelo Migliaccio. E não se dedica a tema tão difícil quanto o suicídio.
Flávio reflete sobre a vida e a morte. E sobre Deus, que ele, cético, acredita estar na natureza. Nas entrelinhas – em especial nas sequências ambientadas no sítio, construído pelo ator ao seu gosto e por longos anos – o espectador não encontrará respostas, mas sugestões, muito sutis, de seu trágico gesto final.
O menino Flávio Migliaccio, nascido no Brás paulistano, no seio de família italiana, apenas remediada, cresceu junto a onze irmãos e viu suas inquietações manifestaram-se muito cedo.
Os pais, muito católicos, mandaram o adolescente para um colégio de padres, para ver se os religiosos conseguiam educá-lo com o rigor devido e afastá-lo de maus caminhos. “Nossa casa era uma bagunça” – relembra no filme –, “um verdadeiro teatro. Imagine aquele mundo de gente na hora de comer o pouco que tínhamos. Meu pai fazia mímica, dizia que não estava achando a boca. Era Neo-Realismo puro”.
Migliaccio pensou em ser padre, mas mudou de ideia quando “um deles pegou na minha perna”. Sem profissão, sem rumo e sem dinheiro, acabou encontrando abrigo (e sua razão de viver, a arte da representação) no Teatro de Arena. Com raro sabor, ele lembrará que caberia, dali em diante, a ele e a Milton Gonçalves representar “o povo”, enquanto Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri eram os intelectuais do grupo e outros atores assumiam papéis mais diversificados.
Em 1964, o Arena sofreu um baque com o golpe militar. “Eu estava no prédio da UNE (União Nacional de Estudantes), em chamas, ao lado do Arnaldo Jabor. Leon Hirszman chegou e colocou uma faixa com o símbolo da Cruz Vermelha no meu braço”. E avisou: “você vai prestar assistência a quem necessitar”. Ao que o jovem Migliaccio retrucou, de pronto: “pois eu sou o primeiro necessitado de socorro”.
Ao logo de seis décadas de trabalho incansável, o ator desempenhou centenas de papéis. No teatro, no cinema e na TV. Começou em “O Grande Momento”, de Roberto Santos, agregou-se à turma do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE como corroteirista de “Pedreira de São Diogo”, e como intérprete (“O Favelado”), episódios do longa “Cinco Vezes Favela”. Foi Quim Recadeiro em “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos, e representou, como fazia no Arena, “o Povo” em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha. Com o amigo Eduardo Coutinho trabalhou no ficcional “O Homem que Comprou o Mundo”, ao lado de Marília Pera.
No pós-AI-5, a barra pesou. Migliaccio atuou, então, em uma série de comédias de costume com ingredientes picantes (“A Penúltima Donzela”, “Em Busca do Su$exo”, “O Donzelo”, “Prá Quem Fica, Tchau”, “Os Machões” e “Um Virgem na Praça”). Com o cineasta Ugo Giorgetti, ítalo-paulistano como ele, atuaria, bem mais tarde, em “Boleiros – Era uma Vez no Futebol” e “Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos”.
Com a primeira geração do Clã Farias (Roberto, Riva e Reginaldo), Migliaccio estabeleceu sólida amizade e fez muitos filmes. Dirigiu a trilogia infantil “Aventuras com Tio Maneco”, “O Caçador de Fantasmas” e “Maneco o Super Tio”. Manteve a parceria com a segunda geração do clã (Mauro, Lui, Maurício e Márcia Farias).
O letreiro que denuncia a falta de interlocutores capazes de atender às necessidades da equipe do filme (em nome da Cinemateca Brasileira) merece toda a atenção. Afinal, “Os Mendigos”, o longa de estreia do diretor Flávio Migliaccio se propunha a ser a “primeira comédia do Cinema Novo”, já que o movimento priorizava dramas sociais e épicos políticos.
O público não entendeu o espírito da coisa e a bilheteria foi reduzida e frustrante. Mas, visto hoje, “Os Mendigos” se apresenta como registro privilegiado de nomes que formaram a linha de frente da cultura brasileira na década de 1960. Caso de Ruy Guerra (também montador do filme) e Vanja Orico, os protagonistas. E dos cineastas Leon Hirszman e Eduardo Coutinho, do artista gráfico Ziraldo, do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, e dos atores Cecil Thiré, Renato Consorte, Fábio Sabag, Joel Barcellos e da irmã do diretor, Dirce Migliaccio (uma das Irmãs Cajazeiras da novela “O Bem Amado”). Houve espaço, até, para um dos principais teóricos do Centro Popular de Cultura, da UNE, Carlos Estevão. Enfim, um inventário de rostos de imenso valor, que merece urgente restauro.
Migliaccio – O Brasileiro em Cena
Brasil, 86 minutos, 2021
Cinebiografia documental do ator Flávio Migliaccio
Direção: Alexandre Rocha, Marcelo Pedrazzi e Tuco (João Mariano)
Roteiro: Marcelo Migliaccio, Fernanda Dannermann, Leonardo Menezes e Marcelo Pedrazzi
Produção: Afinal Filmes, em parceria com a Globonews, Canal Brasil e Rede Globo
Distribuição: Bretz
FILMOGRAFIA
do diretor Flávio Migliaccio (São Paulo, capital, 1935, Rio Bonito, Estado do Rio, 2020)
. 1962 – “Os Mendigos”
. 1970 – “Os Caras-de-Pau”
. 1971 – “Aventuras com Tio Maneco”
. 1971 – “Assalto à Brasileira”
. 1975 – “O Caçador de Fantasmas
. 1979 – “Maneco o Super Tio”
. 1989 – “Os Trapalhões na Terra dos Monstros”
Assisti, é só emoção! gostaria se possível, recuperar o monólogo com Drumond e se possível, esmiuçá-lo, com observações.