“A Mulher de um Espião” coloca Kurosawa nos cinemas
Por Maria do Rosário Caetano
Parte da prolífica produção do cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, de 66 anos, chega, essa semana, aos cinéfilos brasileiros. Primeiro com a estreia do thriller histórico-psicológico “A Mulher de um Espião”, que a Zeta Filmes coloca nos cinemas, a partir dessa quinta-feira, 31 de março. Para completar, cinco filmes nipônicos (dois dele, de Kurosawa) estreiam na programação do Sesc Cinema em Casa, serviço de streaming cujo acervo compõe-se somente com produções de empenho cultural.
Na plataforma, gratuita e acessível em todo território nacional, serão exibidos “Creepy”, o mais badalado e eletrizante filme do realizador japonês (sem nenhum parentesco com o ilustre Akira “Rashomon” Kurosawa), e o fascinante “O Fim da Viagem, oComeço de Tudo”, parceria com o Uzbequistão, antiga República Socialista Soviética.
Registre-se que o Sesc Cinema em Casa exibirá mais três filmes de dois nomes ‘da hora’ no cinema oriental contemporâneo: Ryûsuke Hamaguchi, de 43 anos, que acaba de conquistar o Oscar de melhor filme internacional com o grifado e imperdível “Drive my Car”, e Hirokazu Kore-eda, de 59 anos, Palma de Ouro em Cannes com obra-prima incontornável, “Assunto de Família”. Do oscarizado Hamaguchi, a plataforma exibirá “Asako I & II”, muito bom e sintético (apenas 119 minutos, pouco para quem fez “Drive my Car” durar três horas e “Happy Hour”, cinco). De Kore-eda, serão exibidos “Pais e Filhos” (Grande Prêmio do Júri, em Cannes), outro título obrigatório, e “O que Eu Mais Desejo” (2011), idem.
Kiyoshi Kurosawa é autor de quase 30 longas-metragens. Seu prestígio foi construindo-se sem pressa e dentro das regras do cinema de gênero (o filme fantástico, de terror, o policial e o thriller). Ou seja, dentro da produção de mercado. Chamou atenção, primeiro, com “A Cura”, em 1997. E estourou com “Creepy”, em 2016. Como um cinema de atmosfera fantástica, povoado por duplos e figuras intangíveis, ele foi alcançando moderada receptividade nos festivais. Nunca estourou, mas dois anos atrás ganhou o Leão de Prata de melhor diretor em Veneza. Além de realizador prolífico e roteirista, Kurosawa é professor na Universidade de Artes e Cinema de Tóquio, e teve entre seus alunos, o agora consagrado Ryûsuke Hamaguchi. Que, aliás, assina o roteiro de “A Mulher de um Espião” em parceria com o mestre e com outro de seus discípulos, Tadashi Nohara.
O trio construiu narrativa intrigante e envolvente, clássica só na aparência. A trama ambienta-se na cidade de Kobe, no ano de 1940. O Japão já estabelecera, àquela altura, sólida aliança com a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini. Não entrara, ainda, na Segunda Guerra, mas já estava tomado pelo militarismo e pelo ultranacionalismo.
É nesse ambiente que transita o casal Satoko (a linda Yû Aoi, um verdadeiro bibelô) e seu marido, o elegante empresário Yasuko Fukuhara (Issey Takahashi). Eles são modernos e descolados, vestem-se à moda ocidental. Vivem numa casa maravilhosa e recebem amigos para sessões de cinema. Na tela doméstica, são exibidos filmes também domésticos protagonizados pela linda anfitriã.
Ao perceber a escalada autoritária que toma conta de seu país, Yasuko se sente muito incomodado. Um amigo norte-americano é preso e, depois de solto sob fiança, resolve deixar o país oriental. O empresário decide empreender viagem à Manchúria, parte do território chinês ocupado pelo Japão desde 1932. Lá descobre algo terrível (um filme que registra o trabalho vil da Unidade 731, que realizava experimentos biológicos com prisioneiros, deixando muitas vítimas fatais). De posse de tal material (perigoso e secreto), Yasuko e um jovem, antimilitarista como ele (seu sobrinho Fumio/Ryota Bandô), resolvem correr todos os riscos necessários à luta contra a escalada autoritária.
A bela Satoko, tão bela quanto ingênua, recebe um amigo de infância, Taiji Tsumori (Masahiro Higashide), cada vez mais envolvido com as forças militares e ultranacionalistas. Ela está preocupada com a demora do marido, que atrasa seu retorno da Manchúria. Começa a desconfiar que ele a está traindo. Aí começará, para valer, história que somará espionagem, segredos, sensualidade, dúvidas e reviravoltas. E, claro, uma camada em que a imagem – impressa no celulóide dos filmes ficcionais-domésticos do empresário e, também, no documentário macabro da operação Unidade 731 – desempenhará papel importante.
O híbrido de Kurosawa resulta bem mais interessante do que indicam suas primeiras imagens. Ninguém verá mais um filme de guerra, como tantos outros, nem mais um filme de espionagem. O júri de Veneza, que premiou “A Mulher de um Espião” reconheceu com justeza os muitos méritos desse instigante filme do segundo Kurosawa japonês a fazer carreira internacional.
A Mulher de um Espião
Japão, 115 minutos, 2020
Direção: Kiyoshi Kurosawa
Roteiro: Ryûsuke Hamaguchi, Tadashi Nohara e Kurosawa
Elenco: Yû Ao, Issey Takahashi, Masahiro Higashide, Takashi Sasano, Ryota Bando, Yuri Tsunematsu, Minosuke, Chuck Johnson
Fotografia: Tatsunosuke Sasaki
Distribuição: Zeta Filmes
Sesc Cinema em Casa: Exibição gratuita no serviço de streaming do Serviço Social do Comércio de cinco filmes japoneses contemporâneos – “Creep” (130 minutos) e “O Fim da Viagem, o Começo de Tudo” (120 minutos), ambos de Kiyoshi Kurosawa, “Pais e Filhos” (120 minutos) e “O que Eu Mais Desejo” (128 minutos), ambos de Kore-eda, e “Asako I & II” (119 minutos), de Ryûsuke Hamaguchi.
FILMOGRAFIA
Kiyoshi Kurosawa (Kobe, Japão, 19 de junho de 1955) – Autor de quase 30 longas-metragens. Alguns destaques:
2020 – “A Mulher de um Espião” (Leão de Prata em Veneza)
2019 – “O Fim da Viagem, O Começo de Tudo” (parceria com o Uzbequistão)
2017 – “Antes Que Tudo Desapareça”
2016 – “Creepy” (seleção do Festival de Berlim)
2016 – “O Segredo da Câmara Escura”
2012 – “Shokuzai – Penitência”
2008 – “Sonata de Tóquio” (Prêmio Un Certain Régard, em Cannes)
2006 – “Vítimas de uma Alucinação”
2003 – “Doppelganger”
2001 – “Pulse” (Prêmio Fipresci em Cannes)
1999 – “Ilusões Estéreis”
1997 – “A Cura”
1995 – “Ajeite-se ou se Mate”
1983 – “Guerras Perversas de Kandagawa”
Hirokazu Kore-eda (Tóquio, Japão, 06 de junho de 1962)
2021 – “Broker” (Coreia do Sul)
2019 – “A Verdade” (França)
2018 – “Assunto de Família” (Palma de Ouro em Cannes)
2017 – “O Terceiro Assassinato”
2016 – “Depois da Tempestade”
2014 – “Nossa Irmã Mais Nova” (Cannes)
2013 – “Pais e Filhos” (Grande Prêmio do Júri em Cannes)
2012 – “O que Eu Mais Desejo”
2009 – “Boneca Inflável”
2009 – “Seguindo em Frente”
2006 – “Hana Yori Mo Naho”
2003 – “Ninguém Pode Saber” (Cannes)
2001 – “Tão Distante” (Cannes)
1998 – “Depois da Vida”
1996 – “Without Memory”
1995 – “Maborosi – A Luz da Ilusão”
Ryûsuke Hamaguchi (Kanagawa, Japão, 16 de dezembro de 1978)
2002 – “Drive my Car” (Oscar de melhor filme internacional)
2022 – “Roda do Destino” (Prêmio Especial do Júri em Berlim)
2018 – “Asako 1 & 2”
2015 – “Happy Hour”
2008 – “Paixão”