O azarão “Coda” derrota “Ataque dos Cães” em noite de inclusão e “agressão” de Will Smith

Por Maria do Rosário Caetano

A nonagésima-quarta cerimônia de entrega do Oscar, presencial depois da pandemia, deverá ficar na história da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood por duas razões.

A primeira tem como protagonista o astro Will Smith, que estapeou o colega Chris Rock, na frente de milhões de espectadores. Está mais de acordo com a crônica policial que com o cinema. Vinte minutos depois ele ganharia sua primeira estatueta dourada.

A segunda razão é mais cinematográfica, mas igualmente desanimadora, pois prova que a Academia vem seguindo a máxima de Lampedusa (in “O Leopardo”): “tudo deve mudar para que nada mude”. Ou seja, a Academia renovou 40% de seus associados, mas sua essência segue a mesma. Grupos hegemônicos continuam com o poder seguro em suas mãos. Tanto que o complexo e vigoroso “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, o franco favorito, indicado em 12 categorias, saiu com uma única estatueta (a de melhor direção). Mais uma derrota para a Netflix, garfada poucos anos atrás com o belíssimo “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, preterido pelo esquecível “Green Book”.

Já “No Ritmo do Coração” (“Coda”), um melodrama inclusivo (da plataforma Apple), de imensa simpatia, com ótimos atores, mas tão olvidável quanto “O Livro Verde”, somava apenas três indicações. E triunfou nas três: melhor filme, roteiro adaptado e ator coadjuvante.

Para ser o grande vencedor da noite, o filme da realizadora estadunidense Sîan Heder, remake do melodrama francês “A Família Bélier” (Éric Lartigau, 2014), derrotou – além de “Ataque dos Cães” – outro longa-metragem de qualidades únicas e raras, o japonês “Drive my Car”, de Ryûsuke Hamaguchi. E, também, uma comédia encantadora de Paul Thomas Anderson, “Licorice Pizza”, fincada na história, no afeto e no comportamento de jovens e adultos doidões da indústria do cinema californiano.

Ninguém esperava que o Oscar principal fosse parar nas mãos dos produtores de “Drive my Car”, pois o filme japonês é complexo demais para os padrões de colegiado formado com quase 10 mil votantes. Uma narrativa de 180 minutos, soma três contos de Murakami (“Drive my Car”, “Sherazade”, “Kino”) e da peça “Tio Vanya”, de Tchekov, seria “biscoito fino” demais para o paladar de tamanha multidão acadêmica. Mas, pelo menos, que Hamaguchi e Takamasa Oe fossem laureados pelo roteiro adaptado, pois executaram trabalho da mais fina ouriversaria. Não reescreveram roteiro francês, adaptando-o a nova locação (ao invés de uma fazenda europeia, uma cidade litorânea dos EUA, onde vive e trabalha família de pescadores, composta de pai, mãe e filho surdos e uma filha falante e vocacionada ao canto).

O terceiro prêmio de “Coda” – melhor ator coadjuvante para Troy Kutsur – foi justíssimo. O ator, de 53 anos, surdo, é uma força da natureza. Seu Frank não é um pai que se comunica com os que o cercam com os olhos e gestos da piedade. Não! Ele é “profano e libidinoso” (palavras do próprio Troy), adota a vulgaridade da vida cotidiana, quando ela lhe ocorre natural e voluptuosamente.

O melhor diferencial do filme estadunidense é ter colocado nos papeis de surdos-mudos, atores surdos-mudos (no filme francês, atores comuns se passavam por portadores de tais deficiências). Marlee Matlin, de “Os Filhos do Silêncio” (Randa Haines, 1986), que foi mulher do ator Willian Hurt (e oscarizada), está no elenco do novo vencedor da Academia. E, no papel do professor de música da filha que sonha ser cantora profissional, está Eugenio Derbet, astro mexicano (protagonista e diretor do blockbuster “Não se Aceitam Devoluções”).

Antes de seguir com a lista de premiados, vale registrar – sem clima de conspiração à moda de Oliver Stone, mas com saudável “distanciamento brechtiano” – dúvida sobre o gesto do astro Will Smith, assunto que bombou nas redes sociais.

Com ponderação e depois de conhecer detalhes (e rever a cena registrada pelas câmeras de TV no grande palco hollywoodiano), vale questionar o gesto de Will Smith, 53 anos, que estapeou Chris Rock, de 57.

Havia rixa prévia entre os dois? O astro de “King Richard: Criando Campeãs” realmente perdeu o controle e agrediu o colega, também ator, diretor e showman?

Ou ambos, de comum acordo, fizeram um pequeno “show” para bombar o “ibope” (caídaço na última década) da cerimônia de premiação?

Por que um ator negro agrediria um colega, também negro, daquele jeito? Porque o “sem noção” (assim os EUA o definem!) Chris Rock dissera que Jada Pinkett Smith, esposa de Will desde 1997, iria — com seus cabelos raspados — repetir papel que fora de Demi Moore em possível sequência de “Até o Limite da Honra” (“G.I. Jane”, 1997), filme de Ridley Scott? Isso é motivo para uma agressão física?

Na hora, o público ficou atordoado. Não entendeu bem o que se passava. Mas as redes sociais deixaram os prêmios em segundo plano e só se referiam “ao soco que o Will Smith dera no Chris Rock”. Para tentar entender o gesto do ator que dali a pouco poderia receber sua primeira estatueta (por seu trabalho como King Richard, o pai “mala” das tenistas Venus e Serena Williams, tenistas de fama planetária), houve quem levantasse a hipótese de que Jada Pinkett estivesse em tratamento contra o câncer (daí os cabelos raspados). E que o marido tivesse se descontrolado, em momento de forte emoção pré-estatueta. Felizmente, a saúde da bela e elegante companheira de Will Smith vai bem. Ela sofre o incômodo da alopecia, queda de cabelos que provoca a calvice.

Preventivamente, resolveu cortá-los rente ao couro cabeludo. Dizer que ela, com aquele visual, faria a sequência de “G.I. Jane”, um filme do prestigiado Ridley Scott, seria motivo para uma agressão física?

Em sua trajetória no showbiz, o “sem-noção” Chris Rock, que ataca como rapper, apresentador, ator, diretor e, principalmente, comediante, notabilizou-se como um dos autores (e narrador) de sitcom chamada justamente “Todo Mundo Odeia o Chris”. A figura é, pois, ultraconhecida em terras hollywoodianas.

Nos EUA, a cultura da piada é patrimônio nacional. Até o presidente da República recebe jornalistas, em determinado dia, para ouvir gracejos e perguntas irreverentes. Na cerimônia do Oscar, o trio de apresentadoras (duas comediantes negras e uma branquela-gorducha) disseram que “estavam ali pois a soma do que receberiam seria suficiente para remunerar um único homem”, debocharam de “Apresentando os Ricardos”, um filme sobre uma comediante (Lucille Ball), que não faz ninguém rir. Os protagonistas Javier Bardem e Nicole Kidman receberam a “crítica” se desdobrando em risos. E assim se passou com outros diretores e atores que tiveram seus filmes como foco de deboche.

Frente ao gesto intempestivo do astro de “Homens de Preto” – que berrara “deixe o nome da minha mulher fora da porra da sua boca” – inserido em país que faz do showbiz a sua religião, só resta aos menos crédulos, colocar uma pulga atrás da orelha.

Para completar (e agravar), o bom mocismo do discurso (banhado em lágrimas) de Will Smith, paladino em defesa da família e da paz (usando como exemplo o sábio Denzel Washington, que o aconselhara a “não abraçar a soberba em momento de glória”) pareceu muito arrumadinho, prêt-à-porter.

Chris Rocker, o “sem-noção”, avisou que não recorrerá à Justiça contra a agressão de Will Smith. O show tem que continuar.

Voltemos ao cinema, que é realmente o que interessa. Louvores aos votos que elegeram “Drive my Car” o melhor filme internacional. O cinema japonês, que já nos deu Mizoguchi, Ozu, Kurosawa e outros mestres, é um dos maiores do mundo. Fiquem, pois, atentos à pequena mostra do Sesc Cinema em Casa (no streaming), com filmes de Kore-Eda, Kiyoshi Kurosawa (sem nenhum parentesco com Akira “Rashomon” K) e Hamaguchi.

Louvores também para a escolha de “Summer of Soul (… ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, de Quest Love, eleito o melhor longa documental. Justiça que tardou, mas chegou. O “Woodstook black” permaneceu por 50 anos nas gavetas. Ganhou a luz e botou seus astros (impressos no celulóide) para cantar e dançar. Cantemos e dancemos com eles.

O prêmio de melhor coadjuvante para a afro-latina Ariana DeBose foi merecidísimo. Ela rouba a cena em cada entrada que faz em “Amor, Sublime Amor”, a bela refilmagem de Steven Spielberg para o clássico de Robert Wise, passadas seis décadas. Nada contra remakes, desde que eles consigam trazer algo de novo. Spielberg conseguiu, embora sua protagonista (Rachel Zegler) não tenha nem metade do carisma da colega, atriz e bailarina, premiada. DeBose, que é homoafetiva, fez discurso enxuto e forte, e garantiu aos espectadores LGBTQ+: “prometo que há um lugar para nós”.

A melhor atriz poderia ter sido a espanhola Penélope Cruz, por seu notável desempenho em “Madres Paralelas”, de Pedro Almodóvar. Mas a Academia preferiu Jessica Chastain, que passa por diversas transformações para interpretar uma tele-evangelizadora, coprotagonista de “”Os Olhos de Tammy Faye”. O filme não tem as qualidades das mães almodovarianas, mas o trabalho de Chastain se enquadra no figurino que encanta a Academia.

O papel consumiu horas e horas da atriz com próteses, maquiagem, perucas, implantes e outros artifícios para interpretar a pastora eletrônica do auge de sua carreira até os anos de decadência (do marido, envolvolto em falcatruas e, por conquência, dela). O filme ganhou, ainda, o Oscar de melhor cabelo/maquiagem.

A avalanche de prêmios técnicos para “Duna”, ficção científica do canadense Denis Villeneuve, era esperada. Seis estatuetas: fotografia, efeitos especiais, montagem, design de produção, som e trilha sonora original. Outro blockbuster, “007 – Sem Tempo para Morrer”, ganhou um Oscar por canção original. Aliás, empenhada em reconquistar o público, a Academia apostou na música, com shows e mais shows. Até com megaprodução de Beyonce, apresentada por Serena e Venus Williams, numa quadra de futebol, com centenas de músicos e bailarinos, todos vestidos em sonolento verde-água.

No frigir dos ovos, a gente se pergunta: Hollywood endoidou? Trocar filmes como “Drive my Car”, “Ataque dos Cães” e “Licorice Pizza” por “Coda” não é um desatino? Cadê o cosmpolitismo prometido? Por que dos dez indicados a melhor filme, nove eram de origem anglo-saxã? Por que a Netflix continua sendo rejeitada, se tem apresentado filmes da grandeza de “Roma” e do new-western de Jane Campion? Por que um roteiro original e inventivo como o de “Licorice Pizza”, de PTA, perde para “Belfast”, agradável e evasiva rememoração de um tempo de guerra civil e religiosa na Irlanda, de Kenneth Branagh, visto pelos olhos inocentes de uma criança?

Essas perguntas ficarão sem resposta. Ou com respostas frouxas. E ano que vem começaremos tudo de novo. A cerimônia da Academia, ainda capaz de atingir um bilhão de espectadores pelos mais diversos meios de comunicação de massa, segue poderosa e ultramidiática. Mesmo que, em nossos tempos, a instituição enfrente imenso impasse. Vive para promover o glamour, a alta costura, as joias caras, os rostos e corpos perfeitos. Mas os “fora do padrão” hegemônico querem ter vez e voz. E estão cobrando!

Confira os premiados:

“No Ritmo do Coração” (“Coda”), de Siân Heder (EUA/França) – melhor filme, roteiro adaptado (Siân Heder) e ator coadjuvante (Troy Kutsur)

“Ataque dos Cães” (EUA/Inglaterra/Nova Zelândia) – melhor direção (Jane Campion)

“Os Olhos de Tammy Faye” (EUA) – melhor atriz (Jessica Chastain) e melhor cabelo/maquiagem

“King Richard: Criando Campeãs” (EUA), de Reinaldo Marcus Green – melhor ator (Will Smith)

“Drive my Car”, de Ryüsuke Hamaguchi (Japão) – melhor filme internacional

“Summer of Soul (… ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, de Quest Love (EUA) – melhor documentário

“Encanto”, de Byron Howard e Jared Bush (EUA) – melhor longa de animação

“Duna”, de Denis Villeneuve (EUA/Canadá) – melhor fotografia (Greg Fraiser), montagem (Joe Walker), som (Mark Mangini e Theo Green), design de produção (Patrice Vermette & Zsuzsanna Sipos), trilha sonora original (Hans Zimmer), efeitos especiais

“Belfast” (Inglaterra/Irlanda) – melhor roteiro (Kenneth Branagh)

“Amor, Sublime Amor” (EUA), melhor atriz coadjuvante (Ariana DeBose)

“007: Sem Tempo para Morrer” (Inglaterra/EUA) – melhor canção original “No Time to Die”, de Billie Eilish e Finneas O’ Connell

“Cruella” (EUA) – melhor figurino (Jenny Beavan)

. “The Long Goodbye” – melhor curta-metragem

. “A Sabiá Sabiazinha” – melhor curta (animação)

. “The Queen of Basketball” – melhor curta documentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.