O Acontecimento

Por Maria do Rosário Caetano

De maio do ano passado até abril deste ano, os três últimos grandes festivais mundiais de cinema – Cannes, Veneza e Berlim (e o Oscar) – foram vencidos por filmes dirigidos por mulheres. “Titane”, de Julia Ducornau triunfou em Cannes, “O Acontecimento”, de Audrey Diwan, em Veneza, “Alcarràs”, de Carla Simón, em Berlim, e “No Ritmo do Coração”, de Siân Heder, em Los Angles (no Oscar).

Estariam os festivais e até a Academia de Hollywood se penitenciando por, ao longo de quase um século, terem ignorado o cinema no feminino? Estariam premiando filmes de qualidade inferior aos comandados por varões assinalados?

Quem viu “Titane”, pode até não ter gostado, mas será incapaz de negar que o filme é ousado, criativo, potente e desconcertante. Uma ficção científica como há muito não se via. O vencedor de Berlim – o espanhol “Alcarràs” – ainda não estreou em nossas telas. Quem assistiu ao triunfo do melodrama “No Ritmo do Coração” sobre o new-western “O Ataque dos Cães”, de Jane Campion, ficou perplexo. O filme da realizadora neo-zelandesa era infinitamente melhor. Restou a ela contentar-se com a estatueta de melhor direção. Mas foi um duelo entre diretoras.

Quem, a partir desta quinta-feira, sete de julho, for aos cinemas assistir ao vencedor do Leão de Ouro veneziano, sairá convicto de que o júri fez a coisa certa. Certíssima. Audrey Diwan fez de “O Acontecimento” (L’Événement”) um verdadeiro acontecimento. Melhor ainda que antecessores de excelente qualidade como o romeno “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, de Cristian Mungiu, o estadunidense “Nunca, Raramente, às Vezes, Sempre”, de Eliza Hittman, o chadiano “Lingui”, de Mahat-Saleh Haroum, e o francês “Um Assunto de Mulheres”, de Claude Chabrol (com Isabelle Huppert).

O filme de Audrey Diwan, francesa de origem libanesa, baseado em livro de mesmo nome da escritora Annie Ernaux, fundamenta-se em experiência pessoal. Em Angoulême, província que deu origem ao protagonista Rubampré das “Ilusões Perdidas” de Balzac, a jovem Anne Duchenne estava, em 1963, concluindo o curso colegial e preparando-se para cursar Literatura na Universidade. Aluna brilhante e muito estudiosa, destacava-se como a grande esperança do professor Bornec (Pio Marmaï). E dos pais (Sandrine Bonnaire e Eric Verdin), de origem humilde e pouco estudo, que viam orgulhosos a filha às portas da universidade.

Na França católica da década de 60, a jovem se vê, inesperadamente, grávida. Isto num país onde a prática do aborto era proibida e se fazia acompanhar de graves sanções legais para médicos, enfermeiros e para quem se submetia a ele (a legalização só aconteceria em 1975).

Anne está decidida a continuar seus estudos. Por isso, resolve enfrentar sozinha os tabus e barreiras impostos a quem ousasse confrontar os rigores da lei. Ninguém pense que o filme é difícil de se ver. De forma alguma. Audrey Diwan, que realizara, antes, apenas um longa-metragem (“Mais Vous Êtes Fous”), dirige roteiro preciso, de maneira realista, com sobriedade, próxima (e cúmplice) de seus personagens, como os irmãos Dardenne e Ken Loach. E tem atores magistrais. Mãe (a senhora Gabrielle Duchenne/Sandrine Bonnaire), filha (a protagonista Anne, uma força da natureza corporificada em Anamaria Vartolomei) e a Sra. Riviére, a aborteira (Anna Mouglalis) são mulheres que parecem estar a nosso lado, com suas angústias e deveres, ofícios e necessidades. Até o galã Pio Marmaï, de comédias digestivas, representa um professor de Literatura contido, rigoroso, mas também afetuoso (o ator, finalmente, tem chance de mostrar talento).

Além de documentar o absurdo do Estado legislar com poder draconiano sobre o corpo (e os desejos) da mulher, o filme constrói sufocante corrida contra o tempo. A cada dia que passa, maiores são as angústias de Anne. A barriga cresce, os recursos para o aborto tornam-se cada vez mais difíceis, as ajudas de terceiros (as amigas Brigitte e Olivia, o ambíguo Jean) cada vez mais complicadas. Praticamente sozinha ela tem que enfrentar a tudo e a todos.

O título de Ernaux, de alcance aberto, foi mantido por Diwan. Mas, em sua narrativa, ela registra o poder arrasador do calendário, o mesmo presente nos filmes de Cristian Mungiu e de Eliza Hittman. O romeno recorreu aos meses-semanas-dias da implacável folhinha. A estaduniense às repetitivas perguntas-questionários a que são submetidas as jovens que buscam interromper a gravidez, depois de enfrentar angústias e obstáculos. E ver o tempo passando.

Nesse momento em que a Suprema Corte dos EUA promove grave retrocesso na legislação do país que se vangloria de ser a maior democracia do mundo e em que o Brasil vive sob o obscurantismo da extrema-direita, ver “O Acontecimento” é passar menos de duas horas diante de um filme não-dogmático, que nunca recorre à catequese das centenas de narrativas publicitárias (disfarçadas em formatos fílmicos) colocadas na internet. Quem defende o aborto, só o faz para que ele seja praticado por quem não enfrentará problemas de consciência. Ninguém o defende como prática obrigatória a todas as mulheres. Vale a redundância: ele será exercido como opção por quem dele necessitar e, por vontade própria. E, redundância das redundâncias, sem ferir princípios religiosos ou dramas de consciência.

 

O Acontecimento | L’Evénément
França, 100 minutos, 2022
Direção: Audrey Diwan
Roteiro: Audrey Diwan e Marcia Romano (baseado no livro de Annie Ernaux)
Elenco: Anamaria Vartolomei, Luana Bajrami, Louise Orry-Diquero, Kacey Mottet Klein, Louise Chevillotte, Pio Marmaï, Sandrine Bonnaire
Fotografia: Laurent Tangy
Montagem: Géraldine Mangenot
Música: Evgueni Galperine, Sacha Galperine
Censura: 16 anos

A diretora: Audrey Diwan (1980), cineasta francesa de origem libanesa. Antes de tornar-se diretora, trabalhou como jornalista e roteirista. Ela é membro do Collectif 50/50, ONG francesa que promove a igualdade entre homens e mulheres na indústria cinematográfica. Seu primeiro longa foi “Mais Vous Êtes Fous”, de 2019.

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