Gramado apresenta “O Clube dos Anjos” de Verissimo e emociona-se com o vazio existencial de craque uruguaio
Foto: Equipe e elenco de “O Clube dos Anjos”© Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A segunda noite da mostra competitiva da quinquagésima edição do Festival de Gramado foi das mais ecléticas. Começou politizada, com protestos contra “o boicote oficial ao audiovisual brasileiro” e aplausos para “a esperança em tempos de mudança e valorização da arte, que hão de vir”.
E, como Gramado tanto aprecia, a noite foi dos atores, múltiplos em ficções brasileiras e platina. A começar por Marcos Palmeira, que recebeu o Troféu Oscarito por seus mais de 50 anos de carreira no cinema, teatro e TV (embora ele só complete 59 anos neste 19 de agosto). Integrante de família artística (filho do cineasta Zelito Viana, sobrinho de Chico Anysio e primo de uma penca de atores), Palmeira subiu ao palco grisalho (com o visual de Zé Leôncio, seu personagem em “Pantanal”), discurso sólido e amoroso. Contou que cresceu dentro de uma produtora (a Mapa Filmes de Zelito e Glauber Rocha), fez papeis ainda infante, mas pediu à mãe para brincar, correr, viver, enfim, antes de assumir o ofício 24 horas por dia. Foi viver no Xingu com indígenas e, em volta da fogueira, trocavam histórias. Ele falava do trânsito barulhento e de outros males da cidade grande. E os xinguanos o encantavam-se com suas histórias e visão cosmológica.
Não teve jeito. Adolescente, virou ator profissional, ganhou um Kikito por “Dedé Mamata”, fez centenas de filmes, telenovelas e peças de teatro. Sem nenhuma arrogância, o laureado, que é também militante ecológico e documentarista, resumiu sua vida profissional com talento e simplicidade. Foi muito aplaudido.
No campo do cinema propriamente dito, a noite foi das mais promissoras. Dois curtas chamaram atenção. Do Pará, da cidade de Bragança, veio o documentário “Benzedeira”, de San Marcelo e Pedro Olaia. Da soma de esforços de Pernambuco e Rio de Janeiro brotou “Último Domingo”, de Joana Claude e Renan Brandão. Este, baseado em obra literária (“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de Saramago), com elenco estelar. Mesmo caso do longa brasileiro “O Clube dos Anjos”, de Angelo Defanti. Sua origem é um romance de Luis Fernando Verissimo, publicado em 1998, dentro da coleção “Plenos Pecados” (Editora Objetiva).
A noite encerrou-se com “9” (Nueve), filme uruguaio ambientado no mundo do futebol, mas sem trocas de passe, já que seu foco é o drama de um jogador, Chris (Enzo Vogrincic), que aprontou ato desabonador e espera ser vendido para a Inglaterra, junto com a Espanha, a Meca dos futebol planetário. Não faltaram atores famosos no elenco do segundo competidor brasileiro.
“O Clube dos Anjos” uniu Otávio Muller, Marco Ricca, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Angelo Antônio, Augusto Madeira, César Mello, André Abujamra e o lusitano António Capelo numa coprodução Brasil-Portugal, realizada por diretor estreante no longa-metragem. Antes, Defanti, também roteirista, já adaptara crônica de Verissimo em formato curta. Ao comprar, em 2009, os direitos de romance do autor de “Os Sinos de Ouro Preto”, Defanti planejou um filme que pudesse dialogar com o público e que somasse elaboração formal. Fez várias versões do roteiro, até chegar à que foi filmada. Contou com a cumplicidade de seu elenco, em especial com Otávio Muller e Augusto Madeira, o Gugu, colega de escola e parceiro em outros projetos. Os outros atores foram agregando-se com o passar do tempo. O último a chegar veio de longe, de Portugal (António Capelo, o Ramos), assim como o fotógrafo Rui Poças, nome de grande prestígio na Europa.
André Abujamra, autor de trilhas sonoras de 70 filmes, e também ator (quem não se lembra dele como o pai-de-santo que atendia a torcedores corinthianos, em “Boleiros”?) queria atuar no filme, mas não “naquela base de coadjuvante de Millhem Cortaz” (risos). Defanti prometeu que ele desempenharia papel significativo. Abu aproveitou — contou no debate, sempre com marcação cerrada do amigo Otávio Muller — que, conquistado o papel de destaque, passou a “fazer pressão” para assinar a trilha sonora. Como se fosse preciso.
Para transformar o filme em realidade que consumiu mais de uma década, além da cumplicidade do elenco (uma confraria ‘matadora”, que fez graça durante todo o debate), Angelo Defanti agiu como habilidoso profissional: reuniu sua produtora carioca, a Sobretudo (representada por sua irmã Bárbara Defanti), à Dezenove paulistana, comandada por Sara Silveira. E mais: Sara buscou parceria com Pandora da Cunha Telles, produtora lusitana com quem mantém sólida cumplicidade. Os portugueses entraram com 20% dos custos do filme. E os brasileiros com 80% (num total de R$4,7 milhões).
O profissionalismo de “O Clube dos Anjos” salta aos olhos. Requinte técnico, desempenhos dos atores (todos) de primeira linha, roteiro burilado, montagem ritmada, trilha sonora de ponta (arrematada com canção na voz de Caetano Veloso) e trama envolvente. Uma comédia negra (“noir”), espirituosa e fincada na gula, o pecado que coube a Verissimo no projeto “Plenos Pecados”. Se fincado na gula, fincado, óbvio, na culinária, outra paixão humana ancestral.
O “Clube do Picadinho” (paixão dos comensais), que pode fazer boa carreira nos cinemas, não é banal. Seu diretor usou de recursos vindos do teatro, mas conseguiu fazer um “filme de cinema”. Embora a maior parte da ação transcorra num mesmo cenário (em volta de uma mesa, suporte de delícias que alucinam os instintos do “Clube do Picadinho”), a trama não resulta em teatro filmado. Há soluções inventivas (e divertidas) como personagem que sai de um banquete direto para um caixão (em corte temporal inusitado), a transformação de meninos glutões em adultos pantagruélicos (outra quebra temporal de ótimo efeito), um temporal que se constrói no desenho de som e uma trilha que acentua o diálogo do filme com a comédia sofisticada. Que ninguém espere os excessos de “A Comilança” (Marco Ferrari, 1973), nem a delicadeza de “A Festa de Babette” (Gabriel Axel, 1987). O que Defanti construiu (e que Augusto Madeira definiu como “belíssimo primeiro longa-metragem”) foi uma comédia sem grosserias, nem apelações. Realmente, uma estreia promissora. Um tipo de filme que busca o diálogo com o público, mas sem abastardamento de inteligências alheias.
“9” é um título que não diz a que veio. Mas seus diretores, os uruguaios Martín e Nicolás acreditaram na força boleira de seu pequeno país, duas vezes campeão mundial. No Brasil, a camisa dez é sinônimo de craque (vide Pelé). No Uruguai, o número mágico é o “Nueve”, o de Luiz Suarez, o craque que mordeu a orelha de jogador italiano na Copa do Mundo de 2014, sediada em nosso país. Aquela de triste memória, a do 7 a 1.
O concorrente uruguaio ao Troféu Kikito conta a história de um jogador uruguaio, um craque. Ele cometeu ato impensado (terá feito algo similar a Suárez?) e está pagando as consequências. Seu pai (e manager), interpretado pelo ótimo ator argentino Rafael Spregelburd, não mede esforços para vendê-lo a um clube inglês. Enquanto cuida das tratativas, ele isola o filho numa mansão milionária. O rapaz, Chris (Enzo Vogrincic) treina sem descanso, para não perder a forma. Quebra, com ajuda de um “cuidador” (o “gigante”Horacio Camandules) a dieta rigorosa imposta por nutricionistas. Empanturra-se de batata frita e outras guloseimas ultracalóricas. As negociações não andam bem com os britânicos e o pai busca outro comprador. Enquanto isto, o atleta tenta amadurecer entre cenas de sexo (calientes e bem-filmadas), uma balada lisérgica e desconhecida (ele nunca dançara), alguns goles e até o prazer de fumar um “porro” (maconha).
O filme, de muitas qualidades, não é destinado a boleiros, nem mostra dribles ou partidas históricas. A dupla uruguaia quis realizar um drama sobre amadurecimento e paternidade tóxica. Sobre um jovem que viu-se de tal forma involucrado no mundo do futebol (pelo pai, um frustrado ex-jogador de terceira divisão), que não teve tempo de viver. De amadurecer.
Enzo Vogrincic, o protagonista de “9”, é o ator da hora no Uruguai. De origem eslovena, mas uruguaio de quatro costados, ele está aguardando o lançamento de “A Sociedade da Neve”, megaprodução da Netflix, sobre o trágico acidente de avião, ocorrido e 1972, na Cordilheira dos Andes. As vítimas integravam a seleção de rugby do país platino (e seus corpos técnicos e diretivos). Dezesseis pessoas sobreviveram ao infortúnio, mas, para tanto, tiveram que praticar a antropofagia. Ou seja, comer carne dos colegas mortos. Um documentário de imensa qualidade já foi feito por outro uruguaio, Gonzalo Arijón, com o mesmo nome (“A Sociedade da Neve”), grande vencedor do poderoso IDFA, o Festival de Amsterdã.
O curta-metragem paraense “Benzedeira” causou surpresa ao público gramadense por sua beleza e por sua personagem central e única – Manoel Amorim, a “bicha preta conhecedora das ervas” e benzedeira das mais conceituadas. Com o nome de Maria do Bairro (decerto emprestado da novela mexicana), Maria vive em fina sintonia com a natureza, preparando beberagens e cuidando da cura do corpo e da alma de quem busca seus serviços. Ela vive sozinha, é bem-articulada e ligada aos cultos afro-brasileiros.
Para contar a história de personagem tão singular, San Marcelo e Pedro Olaia, os dois diretores, apostaram nas imensas possibilidades do cinema documentário aparentado ao ensaio visual. Imagens de grande beleza nos inserem na atmosfera que cerca Maria do Bairro. A “bicha preta” aparece em seus afazeres, comenta sua vida, opina sobre solidão e sua profunda ligação com a natureza (ela vive numa ilha de mangue, em Bragança, cidade de mais de 400 anos e 125 mil habitantes). Os dois diretores planejavam cinco filmes sobre “Saberes Fundamentais da Amazônia”. A figura de benzedeiras seria recorrente na série. Mas ficaram tão satisfeitos com o mundo mágico de Maria do Bairro, que agora já direcionam seus interesses a outros personagens.
San Marcelo confessou que recebeu inúmeras sugestões para transformar o filme (de 15 minutos) em longa-metragem. Não abraçou a ideia, por entender que o essencial do que queria mostrar e narrar está impresso no filme. “Queríamos uma câmera contemplativa e conseguimos o que almejávamos”. Por isso, ele entende que “se transformarmos o amplo material que colhemos em um longa-metragem, nós quebraremos o encantamento que tanto nos envolveu”.
“Último Domingo” nasceu de um projeto do fluminense (de Volta Redonda) Renan Brandão. Ele estava em viagem a Cuba, para mostrar um curta no Festival de Havana. Sua leitura de bordo era “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de Saramago. Quando regressou ao Brasil, ligou para Pilar del Río, viúva do escritor e diretora da Fundação Saramago para saber se ela autorizaria adaptação de trechos do livro num curta-metragem brasileiro. “Liguei sem muitas esperanças”, contou ele no debate gramadiano. Pois a espanhola autorizou.
Em parceria com a diretora de arte pernambucana Joana Claude, Renan, autor também do roteiro, partiu para a criação do filme. Convocou o casal de protagonistas (Maria e José) — a atriz carioca Jéssica Ellen, da novela ”Amor de Mãe”, e o ator pernambucano Edilson Silva (“Mirador”). E, para os demais papéis, os veteranos Tonico Pereira e Everaldo Pontes e os jovens Ravel Andrade e Gunnar Borges. Fotografado em poético preto-e-branco, com cenários recriados no Quilombo São José (em Barra Mansa), Renan e Joana buscaram consultoria de Janaína Oliveira, estudiosa do cinema negro brasileiro, e estudaram com empenho a ambientação do filme. O resultado impressiona e deve agradar a quem se interessa pelas metáforas humanistas de José Saramago. A produção é tão cuidadosa, que o filme parece um longa-metragem comprimido em 17 minutos.