O mórbido périplo do corpo embalsamado de Evita pelo mundo dá origem a série da Star+

Por Maria do Rosário Caetano

O alucinante e mórbido traslado do corpo embalsamado de Evita Perón (1919-1952) de Buenos Aires à Milão (e depois à Madri e de novo à capital argentina) deu origem, 27 anos atrás,  ao best seller “Santa Evita”, de Tomás Eloy Martínez. Agora chegou a vez do livro ganhar corpo em série televisiva protagonizada por Natália Orero.

Quem sintonizar os sete capítulos de “Santa Evita”, dirigidos por Rodrigo García e Alejandro Maci, no Star+, canal Disney, ficará espantado com a semelhança da atriz de “Infância Clandestina” (Benjamin Ávila, 2012) com María Eva Duarte Perón, a “patrona dos humildes”, segunda mulher do caudilho Juan Domingo Perón, o mais famoso (e controverso) dos políticos argentinos de todos os tempos. Natália não chegou aos 37 quilos que Evita tinha quando o câncer, por metástase, dilacerou seu corpo e forças. E matou-a aos 33 anos. Ela sonhava em ser vice-presidente da Argentina, na chapa do General (e marido) Perón, mas a saúde a impediu. Mesmo assim, a beleza das duas mulheres, os vestidos sofisticados, os cabelos penteados fio por fio e a maquiagem desenhada com rigor fazem da série deleite para amantes de refinadas direções de arte.

O corpo embalsamado de Evita constitui um caso à parte. Transforma-se em obscuro objeto de desejo de dois militares (o Coronel Moori Koenig e o Tenente Arancibia), personagens que parecem, de início, por demais caricatos, mas que, com o desenrolar da história, vão ganhando alguma complexidade.

Na nossa imaginação febril começam a surgir, ao longo dos capítulos, fragmentos de filmes como “El” (“O Alucinado”, Buñuel, 1953), “Vertigo” (“Um Corpo que Cai”, Hitchcock, 1958) e assemelhados. Sentimos que fomos arremessados num pesadelo. Seremos cúmplices de machos loucos? O que querem estes homens, tão desequilibrados, com o corpo dessa mulher embalsamada? Assisti-los, em seus desvarios, nos tornam cúmplices? Ou pelo menos voyeurs?

Por sorte, há um personagem que a tudo vê com distanciamento. E ele é o jornalista Mariano Vásquez (Diego Velásquez), que recebe, em 1971,  a incumbência de checar se é verdade que o General Perón, no exílio em Madri, receberá, finalmente, o corpo embalsamado da esposa, que teria sido enviado (pela CGT – Central Geral dos Trabalhadores?) para Milão, na Itália, e finalmente devolvido a ele. Mariano não mostra, de início, nenhum interesse no assunto, pois entende que Perón não irá atendê-lo ao telefone. O editor insiste tanto, que ele liga para o ex-presidente. Este confirma que prometeram, sim, devolver o corpo embalsamado de Evita (nestas alturas ele está casado com Izabelita e vive sob influência do ‘brujo” José López Rega).

Num dos capítulos da série, o jornalista –  já apaixonadamente mergulhado na investigação do intrincado caso do corpo embalsamado de Evita e suas réplicas –  irá entrevistar o Coronel Moori Koenig (Ernesto Alterio, às vezes em namoro explícito com os tipos malucos de filmes de horror B). O militar fôra ajudante de ordens de Evita e tornara-se obcecado por ela – tudo segundo a ficção de Eloy Martínez. Está mergulhado na bebida e em pesadelos, delira, sente-se dono de boa parte da história de Evita. O jornalista (e, por extensão, o ator Velazquez) dá um show de sobriedade.

O romance de Eloy Martínez (1934-2010) é uma soma de pesquisa histórica, delírio, alucinação e morbidez. Muita morbidez. Tem respaldo na louca paixão dos peronistas pela “patrona dos humildes”, mas tem muito (muito mesmo) de ficção. Em especial na invenção das três réplicas que teriam sido feitas do corpo embalsamado, por mentes alopradas, para despistar (detratores?) da mulher de Perón. Para os militares que derrubaram o General, em 1955, o presidente era “o Ditador”, e ela, sua ambiciosa esposa, ex-atriz e filha bastarda, a “Égua”, a “Prostituta”, a “Devassa”.

Nos sete capítulos de “Santa Evita” – apesar da morbidez e das invenções de Eloy Martínez – aprenderemos muito da história argentina. Cenas documentais nos mostrarão comícios de Perón e de Evita, que mobilizavam milhares (milhões?) de pessoas. E o enterro dela? Uma catarse coletiva. O filme recorre, também, a falsos documentários (em preto-e-branco, mas com os atores se fazendo passar pelo General Perón, por Eva Duarte e outros personagens. A opção por Dario Grandinetti, de 63 anos, para interpretar Perón, dos 49 (ele conheceu Evita com esta idade, ela tinha 25) até os 76 anos resultou problemática. O cabelo muito preto do caudilho parece sempre ridículo, o que já impõe, de saída, carga negativa ao personagem.

As cenas do show biz argentino, de onde veio Maria Eva Duarte, são encantadoras. O mundo do rádio, onde ela começou, o amor do casal Perón-Evita pelo tango, os filmes de então, dos quais ela participou, tudo ganha relevo para mostrar as origens da “égua” e filha bastarda de um fazendeiro, que tinha sua família oficial e uma “sucursal” (Eva e mais quatro filhos). Aos 17 anos, a adolescente ambiciosa, com incentivo da mãe, foi tentar a sorte em Buenos Aires. Aos 25 anos, depois de conhecer Perón numa emissora de rádio, envolveu-se com movimentos sociais (e nos lençóis do então Secretário do Trabalho) para viverem matrimônio que durou sete anos. O câncer interrompeu a carreira dela. Segundo o filme, ela implorou ao marido que não deixasse que a esquecessem. Ele jurou que tudo faria para que não fosse “olvidada”. Conseguiu. Ela forma, junto com Che Guevara e Maradona, a trinca de estrelas mais cintilantes do país platino. Que o diga Madonna. E, agora, Natália Orero.

Santa Evita
Série em sete capítulos (de 50 minutos cada, em média)
Direção: Rodrigo García e Alejandro Maci
Produção: Salma Hayek
Fotografia: Felix “Chango” Monti
Elenco: Natália Orero, Dario Grandinetti, Ernesto Altério, Diego Velázquez, Francesc Orella, Julieta Vallina, Diego Cremonesi, Guilherme Arengo, Diego Alonso, Damián Canduci, Eugenia Alonso, Frank Gerrish
Programa extra, de meia hora, traz entrevistas de atores e diretores da série, incluindo a produtora mexicana Salma Hayek
Onde: Star+

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