“Jair Rodrigues: Deixa que Digam” conta a história de um homem feliz

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Rubens Rewald lança, nessa quinta-feira, 27 de abril, seu sétimo longa-metragem – o documentário “Jair Rodrigues: Deixa que Digam”. E o faz um mês depois de ver chegar às telas seu sexto longa, o ficcional “Segundo Tempo”. Na verdade, os dois filmes estavam prontos para lançamento, mas foram atropelados pela pandemia.

Rewald, que é professor de cinema na ECA-USP, escola que o formou, e também dramaturgo, roteirista, agitador e interventor cultural – vide os filmes que realizou com Bernardet (#eagoraoque) e Ab’Saber e Aranda (Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa) – espera que a trajetória de Jair Rodrigues, o astro da música popular brasileira e protagonista absoluto de seu novo filme, arranque o público de casa.

De saída, ele garante que o espectador das capitais e do interior irá se deparar com a “história de um homem feliz”. Tanto assim, que encerrou sua narrativa citando o poeta soviético Vladimir Maiakovski: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”.

Jair Rodrigues, o menino preto, filho de canavieiros, que nasceu em 1939, em Igarapava, passou por Nova Europa e São Carlos. Mais tarde, depois de radicar-se na capital paulista, virou ídolo popular, vendeu milhões de discos e cantou no Olympia de Paris. E, mesmo assim, continuou fazendo molecagens, ‘plantando bananeira’ e sorrindo desbragadamente. Não se incomodava com nenhum apelido. O “Cachorrão” tirava de letra.

“Quando comecei a fazer o filme” – confessa Rewald, de 58 anos – “busquei o conflito, pois sabia que filme sem conflito não tem razão de ser”. E mais: “sabemos que todo mundo tem zonas de sombra, problemas escondidos, sofrimentos não revelados”. O cineasta buscou entre dezenas de entrevistados – divididos em três blocos (familiares amigos, músicos/acompanhantes e estudiosos da MPB) – quem revelasse uma face sombria do cantor.

“Tive que me conformar”, brinca Rewald, “pois havia realmente encontrado o homem feliz de Maiakovski. Todos, sem exceção, me disseram que ele podia até se aborrecer, mas que o aborrecimento durava um instante; podia ficar triste, mas logo se recuperava; podia ficar preocupado, mas logo encontrava solução e voltava a sorrir, plantava bananeira e festejava a vida”.

Parece piada, mas a equipe do filme jura que é verdade. Um dia roubaram o carro do Jair. Ele foi à TV e lamentou: “mas como é que pode, vocês levaram meu carro!!! Logo o meu!!! Não estou acreditando!!! Pois não é que devolveram o carro dele e com pneus novos!!!”

Até morrer, em 2014, aos 75 anos, Jair foi feliz com Claudine (sua esposa por 41 anos), com os filhos (Luciana e Jairzinho), com os netos, amigos e com os músicos que o acompanhavam. E com o Chávez.

O presidente da Venezuela? Não. Com o cômico mexicano. Claudine conta que ele vivia cantando, saltitante e feliz, pela casa. Mas que parava tudo “na hora do Chávez”. Aí os sorrisos eram dedicados inteirinhos ao mexicano, de quem era fã juramentado.

A vida do moleque preto e pobre foi dura. Trabalhou na roça desde pequeno, cortou cana, foi engraxate e conviveu com o padrasto e a mãe, Dona Conceição, sempre de forma harmoniosa. Cantou no coral religioso. Já rapazinho, a mãe o encaminhou para a máquina de costura. Seria alfaiate. Se deu bem no novo ofício.

O irmão Jairo foi para São Paulo, tornou-se militar. Prometeu ao irmão mais novo que, quando se casasse e tivesse alguma segurança material, buscaria o irmão. Dito e feito. O jovem Jair queria ser cantor. Conseguiu os primeiros bicos canoros. Um dia, o irmão — muito do certinho! — foi procurá-lo no local onde ele costumava cantar. Como o empregador não estava pagando o cachê devido, Jair foi tentar a sorte em outro local. Jairo não o encontrou no palquinho do bar costumeiro.

Ao ser informado de que o mano tinha ido ganhar uns trocados num cabaré na General Osório, o esporro foi federal: “você deixou a casa da nossa mãe e veio para São Paulo para virar artista ou bandido? Aqui você não pode ficar”.

Obediente, Jair tomou prumo. Conseguiu emprego como crooner. Em 1963, conseguiu gravar disco na poderosa Philips. Ganharia o Troféu Roquette Pinto de Sambista Revelação.

Rewald, que dirigiu Jair Rodrigues no longa ficcional “Super Nada” (2012), fez questão de dedicar ao artista um documentário musical. “Sim, com muita música, uma espécie de filme karaokê”. Por isso, os fãs do intérprete ouvirão sambas, números sertanejos, serestas, boleros, enfim, tudo que saiu da garganta do eclético cantor.

“Embora” – lembre o cineasta – “ele tenha ficado famoso com um mega-sucesso de festival (“Disparada”, de Geraldo Vandré e Theo de Barros), e com muitos sambas, não podemos esquecer a fase ‘Sabiá’ dele”. Ou seja, “o imenso sucesso de ‘Sua Majestade, o Sabiá’, de Roberta Miranda, que se transformou em um dos principais cartões de visita dele”.

Jair Oliveira, o Jairzinho, filho de Jair e Claudine, reconhece “o ecletismo musical” do pai e faz questão de lembrar que, além de “sambas e músicas sertanejas, ele gravou dois belos discos de serestas, que devem ser colocados entre os melhores de toda sua trajetória artística”.

Rewald lembra, também, que “Jair gravou samba-enredo num momento em que não era comum cantores buscarem repertório em escolas de samba”. O exemplo mais sucedido dessa busca foi “Samba para um Rei Negro”, do Salgueiro, um estouro sensacional.

Os dois melhores momentos de “Jair Rodrigues: Deixa que Digam” são, como não poderiam deixar de ser, os que ligam o cantor à sua mais famosa partner, Elis Regina, e a seu maior sucesso, “Disparada”.

Jair era um rapazinho elétrico e cheio de vitalidade, quando foi convidado para dividir com Elis Regina (a “Hélice Regina” do megassucesso “Arrastão”) o comando do programa “O Fino da Bossa”, na TV Record. Pela primeira vez, um artista negro comandaria um programa na televisão brasileira. O sucesso foi estrondoso e renderia três discos gravados ao vivo. Um deles, “Dois na Bossa”, seria o primeiro elepê brasileiro a superar a marca de um milhão de exemplares vendidos.

As imagens de Elis e Jair cantando e dançando são maravilhosas, arrebatadoras. Pena que incêndios destruiram muitos registros visuais da dupla. Mas o que restou serve de termômetro para que tenhamos ideia do que acontecia na emissora, sob o comando de Manoel Carlos, de 1965 a 1967. O Cachorrão e a Pimentinha apresentavam química formidável, eram donos de alegria e energia contagiantes.

O trecho mais longo e elaborado do filme de Rewald se refere, como não poderia deixar de ser, ao maior dos sucessos (“Disparada”) da história do profissional de Jair Rodrigues, o espalhafatoso. Em 1966, o paraibano Geraldo Vandré e o carioca Theo de Barros compuseram uma toada, com versos elaborados e sonoridades rurais. E, como era de bom tom na época, com alta intensidade política.

Ao deparar-se com o potencial da canção, Solano Ribeiro, o bam-bam-bam da era dos festivais da Record, achou por bem entregar a composição a Jair Rodrigues, intérprete que estava na crista da onda, bombando ao lado de Elis Regina no “Fino da Bossa”. Vandré, também já bastante conhecido, não gostou da ideia. Para ele, Jair era muito avacalhado, bagunceiro, não ia dar certo. A música exigia certo tom solene. Solano promoveu reunião entre eles para aparar as arestas. Jair prometeu se comportar.

Zuza Homem de Mello, que assistiu a tudo de perto, dá seu testemunho ao filme. O impacto foi imenso. Jair Rodrigues levou sua missão a sério, cantou meio “de banda” (prestem atenção!), acompanhado pelo Trio Marayá (entre os instrumentos, uma queixada de burro). Foi apoteótico.

Resultado: o júri queria “A Banda”, de Chico Buarque como vencedora. O público politizado urrava por “Disparada”. Dizem que Chico Buarque, sempre ele, em pessoa, pediu que o prêmio fosse dividido entre os dois. Seria mais justo no entendimento do filho de Sérgio Buarque.

Medida salomônica que, afinal, foi tomada para alívio de Paulinho de Carvalho, o dono da emissora, que temia quebra-quebra por parte da plateia revoltada. Alívio também do júri e do país que amava os festivais como amava as partidas de futebol e os concursos de miss.

Tema recorrente no filme é a pouca (quase nula) militância política de Jair Rodrigues. Seria ele um alienado? Um indiferente às lutas da população afro-brasileira?

Todos os entrevistados concordarão que Jair Rodrigues nunca carregou bandeiras. De nenhum tipo. Mas que abriu picadas e caminhos, ao seu jeito. Muito particular. Gravou sambistas (como o baiano Ederaldo Gentil – “Perequetê” e “O Ouro e a Madeira”), sambas-enredos (quando o gênero estava restrito às escolas), foi precursor do rap (com “deixa isso prá-lá/ o que que tem/ eu não estou fazendo nada/ e você também/ que tal bater um papo com alguém…). E seus defensores nesse quesito são gente do calibre de Rapin Hood e Salloma Salomão.

Ninguém, ao que se saiba, guardou rancor de Jair. Quando Elis Regina morreu, vítima de overdose de cocaína, o amigo dos tempos do “Fino da Bossa” e da vida inteira lamentou. Condenou as drogas. Alguns lamentaram a postura moralista dele. Jair não se incomodou. Bom rapaz, família até mais não poder, daqueles que iam à missa todo domingo (“só faltava ao compromisso religioso se estivesse em excursão a trabalho”, garante Claudine), o intérprete de “O Conde” (Jair Amorim e Evaldo Gouveia) seguiu em frente, cantando para multidões ou sozinho, sorrindo seu riso imenso, plantando bananeira, mexendo com todo mundo.

“Fiz questão” – contou Rubens Rewald, em conversa com os jornalistas mediada pelo historiador Bruno Baronetti – “de registrá-lo cantando com seus discos de vinil rodando em sua vitrolinha doméstica. Era algo que ele fazia diariamente, quando estava em sua espaçosa casa. No filme ele pega um disco de Ataulfo Alves e canta junto, na maior alegria”. Uma alegria contagiante, que era tão dele, que Rewald — apoiado incondicionalmente pela família do artista, parceira em todos os momentos do filme – fez questão de imprimir no final de sua narrativa: “Escolhi, para terminar, ‘Jair Rodrigues: Deixa que Digam’, uma canção  cujo registro audiovisual nem estava tão bom, mas que era muito importante (“Choro Chorado”, de Billy Blanco), aquela que diz “O que dá pra rir/ dá prá chorar/ Questão só de peso e medida/ Problema de hora/ E lugar/ Mas tudo são coisas da vida/ O que dá pra rir, dá prá chorar”.

 

Jair Rodrigues: Deixa que Digam
Brasil, 2023, 98 minutos
Direção: Rubens Rewald
Produção: Rodolfo Moreno
Participação: Luciana Mello, Jairzinho Oliveira, Claudine Rodrigues, Jairo Rodrigues, Bruno Baronetti, Solloma Salomão, Rapin Hood, Roberta Miranda, Zuza Homem de Mello e Theo de Barros (in memoriam), Solano Ribeiro, Armando Pittigliani, Paulinho Daflin, Marcelo Maita, entre outros
Distribuição: Elo Studio
Circuito: Em cinemas de São Paulo, Rio, Brasília, Aracajú, Niterói, Salvador, Porto Alegre, BH e Palmas. No interior (Araraquara, Jundiaí, Indaiatuba e Sorocaba)

 

FILMOGRAFIA
Rubens Rewald (São Paulo/SP, 12 de abril de 1965)

2023 – “Jair Rodrigues: Deixa que Digam (doc)
2023 – “Segundo Tempo” (ficção)
2022 – “#eagoraoque” – Parceria com Jean-Claude Bernardet (híbrido)
2017 – “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa” – Com Thales Ab’Saber e Gustavo Aranda (doc)
2012 – “Super Nada” (ficção)
2010 – “Esperando Telê” (doc)
2007 – “Corpo” – Parceria com Rossana Foglia (ficção)

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