Escritora Prêmio Nobel visita Chile, Albânia e URSS em “Os Anos Super 8”

Por Maria do Rosário Caetano

Quem diria que a jovem Annie Ernaux, hoje com 82 anos, nascida em meio proletário francês, chegaria tão longe? Aos 23 anos, ela enfrentou, praticamente sozinha, as dificuldades para realizar aborto na França católica do começo dos anos 1960, quando tal prática era proibida por lei. Hoje, atinge notoriedade poucas vezes alcançada por uma mulher. E uma mulher madura, octogenária.

Nos últimos anos, série de acontecimentos vem colocando a escritora, nascida na Normandia e formada pela Universidade de Rouen, no centro do mundo cultural. Primeiro, seus livros, em maioria curtos, bem-escritos e confessionais, começaram a fazer sucesso no mundo inteiro. Um deles – “O Acontecimento”, sobre sua dura experiência com o aborto proibido – transformou-se em filme dirigido por Andrey Diwan e protagonizado por Anamaria Vortolomei (com Sandrine Bonnaire em papel de destaque) – e conquistou o Leão de Ouro em Veneza/2021.

Outro de seus vinte livros, “Uma Paixão Simples” (1991), foi transcriado em filme dirigido por Danielle Arbid e lançado na França em 2020 (segue inédito no Brasil, ao contrário de “O Acontecimento”, que depois de exibido nos cinemas, está disponível no streaming).

Mês passado, Annie Ernaux entrou para a galeria dos laureados com a mais cobiçada premiação editorial do mundo, o Nobel de Literatura. E passou, ela mesma, a ver sua tocante estreia na direção cinematográfica – “Os Anos Super 8”, longa documental que realizou com o filho Davi Ernaux-Briot, de 54 anos – ganhar o merecido destaque no circuito de festivais.

O filme, que estreou na Quinzena de Realizadores de Cannes, meses atrás, é uma das atrações da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E constrói-se com registros familiares captados entre 1972 e 1981, pelo então companheiro da escritora, Philippe Ernaut-Briot (o nome de solteira de Annie é Duchesne).

Na época das filmagens domésticas, ela era uma jovem professora de Literatura e escrevia seus primeiros livros. Mas o reconhecimento só chegaria bem mais tarde. De formação marxista, militante de esquerda (“a luta de classes está em mim”, já declarou diversas vezes), mãe na ocasião de dois meninos, ela e o marido faziam questão de conhecer o Chile da Unidade Popular, comandada por Salvador Allende, a curiosa Albânia de Enver Hoxha, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, os ibéricos Portugal pós-Revolução dos Cravos e Espanha pós-Franco.

As imagens, muito bem preservadas (mesmo que captadas em frágil super-8, bitola que não dispõe de negativo), são líricas e delicadas. E ilustram de maneira singular frase de Ortega y Gasset, destacada por “Os Anos Super 8”: “A única história que temos é a nossa e ela não nos pertence”.

Parte das 200 páginas de “Os Anos”, livro que Ernaux publicou em 2008, servem à narrativa do filme, enunciada por ela de forma seca, portanto livre de qualquer apelo retórico, no que vem sendo chamado de “autobiografia impessoal” para definir o estilo da autora Prêmio Nobel.

Quando Annie e o filho David decidiram transformar as viagens e registros domésticos filmados por Philippe Ernaux em longa documental (de enxutos 61 minutos), a escritora entendeu que aqueles arquivos não continham “apenas imagens familiares, mas um testemunho dos passatempos, estilo de vida e aspirações de uma classe social na década pós-1968”. Por isso, ela quis “incorporar essas imagens silenciosas” (não há som direto no filme, só a voz subjetiva e a posteriori da escritora) em “uma história que combinasse o íntimo com o social e com a História, para transmitir o gosto e a cor daqueles anos”.

O resultado é fascinante e serve como eficiente introdução ao universo literário da escritora, que acaba de ganhar o Nobel, e permitiu a Audrey Diwan ser uma das três realizadoras a – no curtíssimo espaço de um ano – conquistar os três principais prêmios cinematográficos dos maiores festivais do mundo, ao lado de Julia Ducournau (Palma de Ouro, com “Titane”), em Cannes, e a espanhola Carla Simón (Urso de Ouro, com “Alcarràs”), em Berlim.

 

Os Anos Super 8 | Les Annés Super 8
França, 61 minutos, 2022
Direção: Annie Ernaux e David Ernaux-Briot
Roteiro: Annie Ernaux
Fotografia: Philippe Ernaux-Briot
Montagem: Clement Pinteaux
Música: Florencia Di Concilio
Produção: Les Films Pelleas
Sessões na Mostra: dia 26 (Cinemateca Brasileira, às 21h20), dia 27 (Cine Marquise, às 14h), dia 28 (CineSesc, às 15h50), dia 30 (Frei Caneca, às 20h40)

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