Por que “Parasita” (não) poderia ser feito no Brasil?
O que existe de verdade em “Parasita” que não temos no cinema brasileiro, como a densidade de seus personagens, que o transformou em um fenômeno mundial?
Por Hermes Leal
Desde que “Parasita” ganhou o Oscar de melhor filme em 2021, um feito inédito de um filme estrangeiro vencer o cinema americano, o Brasil passou a perseguir também essa chance de um dia ter um cinema e séries com características globais.
Durante o Rio Market, encontro de ideias e mercado que ocorreu em outubro no Festival do Rio, realizei uma clínica rápida em dezenas de roteiros de séries e filmes, no intuito de mostrar como tornar um projeto global através dos personagens. Neste evento pude comprovar que a maioria dos roteiros possuía o gênero “dramédia”, uma maneira que encontramos de transformar nossas comédias chanchadescas em obras com uma profundidade no drama, revelando que temos também uma grande vontade de escrever um filme como “Parasita”.
Esse mesmo tipo de tendência ocorreu durante o Encontro de Ideias da última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em que o tema em destaque foi um debate sobre o sucesso do cinema coreano, com o título “Poderia o filme ‘Parasita’ ser produzido no Brasil?”, com a presença de cineastas, pesquisadores, produtores brasileiros e uma especialista no audiovisual coreano, que demonstrou que “Parasita”, além de um grande investimento na produção, também contou com uma boa história e personagens cativantes, e uma boa dosagem de drama com comédia.
Os debatedores não mostraram todas as contradições entre o cinema coreano e o brasileiro. Tivemos abordagens de que não temos técnicos nem especialistas para realizar “Parasita”, o que não é verdade. Assim como também se discutiu a ideia de que os festivais discriminam nossos filmes. A culpa seria do mercado e dos festivais e não de nossas obras.
E ainda foi sugerida mais uma desculpa para nos livrarmos da comparação, a de que, ao invés de perseguirmos o Oscar, deveríamos produzir para outros mercados, como o da África. Mas o fato mais importante, que transformou “Parasita” em um sucesso global, não foi debatido, o de que esse sucesso se deve a uma boa história, um bom roteiro e bons personagens. Por que nunca (nunca mesmo) observamos esses aspectos internos das obras?
O debate não levou em consideração, em relação ao cinema brasileiro, a qualidade de conteúdo (história, personagens e roteiro) de “Parasita”. Nem de longe se tocou no assunto que mais deveria ser discutido, comparando nossa produção, como narramos nossas histórias e geramos as densidades existenciais de nossos personagens, com a existente em “Parasita”. E que esse aspecto interno é o que faz o sucesso de séries que misturam comédia e drama, como “Ted Lasso”, “Fleabag” e “The White Lotus”, séries de comédia dramática (e não dramédia) mais premiadas e engajadas atualmente. Discutir o conteúdo do cinema e das séries brasileiras tem sido um tabu. Nunca se discute a “qualidade globalizante” do roteiro de nossos filmes. O que nos impede de colocarmos esse tema em discussão?
Em relação à “Parasita”, mais uma vez, não se tocou no assunto. Simplesmente, porque não conseguimos escrever uma história como esta, e porque somos criticados, mundo afora, por não termos personagens com profundidade emocional. Falou-se até que o cinema brasileiro só tem um gênero, o “nacional”, por não sabermos fazer aventura, terror e, principalmente, drama. Mas, mesmo assim, não se observou a construção da obra, jogando a culpa nos aspectos técnicos e financeiros.
Mas, se o Brasil não tem personagem, por outro lado, é um dos cinemas mais temáticos do mundo. E tem gênero sim. Ao menos três. Comédia, Favela/Prisão e Sexo. O cinema explora mais o gênero comédia chanchadesca, enquanto as séries, os gêneros de favela/prisão e sexo. É só fazer as contas. A questão aqui colocada diante de “Parasita” é outra, não está no gênero, mas na forma como construímos nossos personagens, especialmente como agregamos “valores” e “passionalidades” a eles.
Neste aspecto deixado de lado nos debates está a maior de todas as diferenças entre nosso cinema e a comédia “Parasita”, o drama “Roma” ou a aventura “Coringa”, onde nossos personagens são ocos e, na imensa maioria das vezes, fazem dramas gritando ao invés de “sentirem” emoções que façam sentido na vida.
Negacionismo nos personagens
Já publiquei um artigo (https://revistadecinema.com.br/2022/09/raizes-do-negacionismo-no-brasil) explicando como o brasileiro tem uma imagem de negacionista que não aceita, rejeita, em que troca o valor da “verdade” pelo da magia e da religião, busca por uma “cura” nas jornadas dos personagens e não pelo valor da “verdade”, como existe nos personagens de “Parasita”.
Essa troca de “valor” que o brasileiro faz com a verdade, e que está presente nas telenovelas como característica de “negar” o sofrimento dos personagens, se reflete também em toda a nossa ficção. É nosso jeito e nossa imagem refletindo nos personagens de nossos filmes, que não se parecem com os de “Parasita” ou com personagens que “sofrem”, como em “Fleabag”, “Ted Lasso” e “The White Lotus”.
O que caracteriza os personagens em todas essas séries citadas são suas jornadas internas de “sofrimento”, que são oriundas de danos físicos ou na alma, ou de paixões adquiridas, como a “culpa” e o “ódio”, ou de paixões endógenas, de origem genética, como a “melancolia” e a “ambição e avareza”.
No cinema brasileiro, em especial em nossas séries, os personagens não são afetados desta forma, mas com uma invenção e achismo do sentido da vida, que não corresponde ao sentido universal. Nos personagens de nossas telenovelas, assim como no pensamento do brasileiro, que agrega muito valor ao mundo “mágico” e da “cura”, toda paixão é uma “loucura”, como se ainda estivéssemos na Idade Média, sem as descobertas da ciência.
Um exemplo de como podemos ter filmes e séries com aceitação no planeta, como “Parasita”, é o filme “Bacurau”, que esteve na mostra principal de Cannes com os melhores filmes do mundo e com possibilidades de se candidatar ao Oscar, exatamente porque furou essa bolha dos personagens sem sentido. O principal motivo para o filme chegar ao caminho do mercado global não foi apenas pelo tema explorado, mas porque os personagens tinham “sentimentos universais”, um sentido da vida que se entende em qualquer língua e cultura do mundo.
Já fiz uma análise de “Bacurau” (https://revistadecinema.com.br/2020/12/as-estrategias-narrativas-de-bacurau) revelando como os personagens agem com suas paixões e astúcia, e como a cultura e o folclore brasileiro viram armas para vencer o poderio dos gringos do primeiro mundo, eles no duelo e nós com a “tocaia”. O filme ganhou compreensão global especialmente pelo uso correto das paixões nos personagens, com a “raiva” de Lunga, o “ressentimento” de Domingas e a forte paixão da melancolia dominando o corpo e a alma de Teresa.
Também escrevi um extenso estudo de “Parasita” (https://revistadecinema.com.br/2020/02/a-estrutura-invisivel-do-roteiro-de-parasita) revelando como funcionam as camadas profundas de seus personagens, e como existe um arco de transformação do senhor Kim em razão de seu “cheiro”, em que seu patrão atinge sua existência ao criticar seu odor de “esgoto”, de perdedor. Há um modelo universal em toda boa obra, que faz o público ser impactado, neste caso, pelo arco afetivo do personagem, que vai de um senhor calmo a um sujeito violento.
Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e documentarista. É mestre em Cinema pela ECA/USP e doutor em Linguística e Semiótica pela FFLCH/USP, com a tese “As Paixões na Narrativa” (2017), na Coleção Estudos da Editora Perspectiva.