Almodóvar no streaming

Por Maria do Rosário Caetano

“Mães Paralelas”, o mais novo longa-metragem de Pedro Almodóvar, chegou aos assinantes da Netflix, no último dia 18 de fevereiro, acompanhado de dez títulos do festejado cineasta, o mais midático da história da Espanha. Mais famoso que Luis Buñuel e Carlos Saura.

No dia 27 de março próximo, ele e sua estrela, Penélope Cruz, estarão em Hollywood, para, ao lado do músico Alberto Iglesias, disputar dois Oscar – o de melhor atriz e melhor trilha sonora.

Para completar a glória do cinema espanhol, que vive ótima fase, Javier Bardem, companheiro de Penélope e astro maior do poderoso “Carne Trêmula”, concorrerá, também, ao Oscar (de melhor ator), embora em filme norte-americano (“Apresentando os Ricardos”). E há um curta de animação madrilenho na disputa – “El Limpiaparabrisas”, de Alberto Mielgo, produção de Leo Sánchez.

Além dos onze títulos disponibilizados pela Netflix, quase todos os longas-metragens de Almodóvar, 72 anos, estão nas listas de ofertas de diversas plataformas digitais – Belas Artes à la Carte, Prime Video, Mubi, Claro Vídeo, Apple TV, Google Play, Microsoft e HBO Max (ver tabela).

O novo e emocionante filme de Almodóvar (“Mães Paralelas”) é um drama de afetos e dores políticas, protagonizado por Janis (Penélope Cruz), uma fotógrafa, filha de mãe hippie, que a batizou com o nome da cantora Janis Joplin.

Depois de um magnífico filme no masculino – o autobiográfico “Dor e Glória”, com Antonio Banderas na pele de um cineasta homoafetivo – o autor de “Tudo sobre minha Mãe” voltou às personagens femininas. Além de Janis, duas outras mães – a jovem Ana (Milena Smit) e a mãe desta, Teresa, de profissão atriz (Aitana Sanchez-Gijón) – dominam a cena. O único personagem masculino com alguma importância na trama é Arturo (Israel Elejalde), antropólogo forense, que prospecta fossas onde a ditadura franquista arremessou milhares de corpos de republicanos, sem que fossem identificados.

Javier Bardem, em "Carne Trêmula"

Janis, que nasceu numa pequena aldeia, busca o corpo do bisavô, pois quer que seus restos mortais sejam identificados por teste de DNA e enterrados com dignidade. Esse pano de fundo histórico (e explicitamente político) causou estranhamento em quem se acostumou a ver Almodóvar apenas como o cineasta dos sentimentos exacerbados e da sexualidade transgressora. Por sorte foram poucos. Outras (atenção para o feminino), aí em número bem reduzido, conseguiram ver “misoginia” (sim: misoginia!) no cineasta que tanto ama as mulheres. Que as coloca na tela como personagens complexas, com qualidades e defeitos, forças e fraquezas. Que o digam as protagonistas de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (Carmem Maura, pronta para a maternidade solo), de “Tacones Lejanos” (a mãe e filha em conflito vividas por Marisa Paredes e Victoria Abril), “Tudo sobre minha Mãe” (Cecília Roth, que perde o filho adolescente), “Volver” (a Raimunda de Penélope Cruz), entre tantas outras.

A Política com “P” maiúsculo, épica, vista como acontecimento histórico que afeta a milhões de pessoas, nunca foi, realmente, priorizada por Almodóvar. Mas em suas últimas entrevistas ele vem mostrando imensa preocupação com os rumos do mundo. Este mundo em transe, que passa por graves retrocessos devido ao triunfo da extrema-direita em vários países. Inclusive os EUA, tidos como a pátria por excelência da democracia representativa, por quatro anos comandado por Donald Trump. Líderes conservadores se elegem e partem para o cerceamento dos direitos civis, conquistas no campo moral e da liberdade religiosa, pelos quais Almodóvar tanto lutou.

Nos anos loucos da Movida Madrileña – como bem lembrou Alessandro Soler, na Revista do Globo (13/02/22) – o jovem manchego, além de trabalhar como telefonista e realizar filmes em Super-8, integrava a banda punk Almodóvar & McNamara. Em febris festejos noturnos, aqueles que se seguiram ao fim da longeva ditadura do Generalíssimo Franco, “caudillo de España pela gracia de Diós”, marcada pelo conservadorismo moral-religioso e pela repressão política, a banda cantava “Voy a Ser Mamá”, um de seus hits. Ou melhor, berrava, com bruta ironia, a favor do aborto: “Sí, voy a ser mamá/ No quiero abortar/ Rechazo la espiral/ Tiene derecho a vivir/ Le llamaré Lucifer/ Le enseñaré a criticar/ Le enseñ aré a vivir de la prostituición/ Le enseñaré a matar/ Sí, vou a ser mamá”.

Os primeiros filmes do jovem Almodóvar eram desmedidos, exagerados, satíricos, coloridíssimos, iconoclastas. Ele não poupava as instituições (a Igreja, então!) e aproveitava a liberdade que viscejava nas noites madrilenhas para exorcizar décadas de repressão e carolice. Reuniu time de colaboradores (ou melhor, cúmplices) que incluía a experiente Carmen Maura, Julieta Serrano, o belo malaguenho Antonio Banderas, o mano Agustín Almodóvar (hoje seu sólido produtor), Chus Lampreave, Marisa Paredes, a picassiana Rossy de Palma, a argentina (exilada na Espanha) Cecília Roth e Verónica Forqué. Esta, que protagonizaria “Kika” (em 1993), suicidou-se em dezembro do ano passado, vítima de depressão profunda.

Kika

“Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Monton”, “Labirinto de Paixões”, “Que He Hecho Yo Para Merecer Esto?” e “Entre Tenieblas”, realizados entre 1980 e 1984, são povoados por freiras lésbicas, drogaditos, traficantes, estupradores, príncipes exilados, travestis punks, cafetões e ninfomaníacas sensíveis. Ao somar tantos personagens, Almodóvar foi apurando sua rara capacidade de construir diálogos ágeis e febris. E começava a adensar suas tramas, sempre aparentadas com o melodrama e a comédia.

Com os filmes de sua segunda fase criativa, o cineasta chegaria aos festivais, inclusive brasileiros. Depois de “Matador”, protagonizado por Antonio Banderas e Assunta Serna, o jovem Almodóvar causaria furor no FestRio (Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro), comandado por Ney Sroulevich, com o alucinante “A Lei do Desejo”. Além de excelentes críticas, o filme rendeu, em 1987, o troféu Tucano de melhor direção ao manchego.

Cinco anos depois, Marisa Paredes receberia, em Gramado, o Kikito de melhor atriz por “Tacones Lejanos”, no qual interpreta a mãe-atriz que deixa a filha (Victoria Abril) em segundo plano. A diva espanhola, que encontrava-se na Serra Gaúcha, acompanhada pelo marido Chema Prado, diretor da Cinemateca de Espanha, subiu ao palco, com porte de rainha, para apanhar seu troféu, e também o Kikito de melhor diretor, atribuído ao ausente Almodóvar.

E por que Almodóvar não foi a Gramado?

Porque um ano depois do prêmio no FestRio, ele conheceria a glória na meca do cinema (Hollywood). A comédia “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” – protagonizada por sua mais bem-sucedida musa (até então), Carmen Maura (hoje com 76 anos) – concorreria ao Oscar de melhor filme estrangeiro e transformar-se-ia em sucesso de público no mundo inteiro. Quem não se divertiu com aquele táxi decorado como penteadeira de puta, que tantos fãs conquistou e tão sonoras gargalhadas arrancou?

“Mujeres” transformou-se em um filme para grandes plateias, com diálogos cortantes e desconcertantes, uma atriz em estado de graça. Carmen Maura atuava pela sétima vez sob a direção do grande amigo. Ela só não esperava que ele lhe aprontasse uma falseta.

Na hora de escolher companhia para a festa hollywoodiana, Almodóvar optou por Antonio Banderas, coadjuvante no filme, e deixou sua protagonista em Madri. Carmen Maura, aos 41 anos, atriz reconhecida na Espanha e em processo de descoberta mundial, não aceitou a desfeita. Rompeu relações com o cineasta. Só voltaria a trabalhar sob seu comando 18 anos depois (em “Volver”, 2006). Mas declarou, sem arrependimento, que o fazia profissionalmente, como se trabalhasse sob ordens de um diretor qualquer. Não de um velho amigo. Passaram-se, já, 16 anos e não repetiram a experiência profissional.

Outras “musas” – todas efêmeras – passaram pelos sets de Almodóvar. A mais duradoura tem sido Penélope Cruz, que com “Mães Paralelas”, chega ao sétimo título (um a menos que Carmen Maura). Mas os filmes com Penélope são produções da fase mais elaborada e internacional de Almodóvar, aquelas que frequentam Cannes e Veneza.

Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos

Penélope já ganhou uma Coppa Volpi (solo), láurea máxima do festival veneziano e agora está indicada ao Oscar, uma latina cercada de estrelas anglo-saxãs. Carmen Maura ganhou – como parte do elenco de “Volver”, liderado por Penélope – a Palma de Ouro em Cannes. Mas foi um prêmio coletivo.

O Brasil marcou presença importante na melhor fase criativa de Almodóvar. E o fez com dois nomes – o do fotógrafo Affonso Beato e o do cantor Caetano Veloso. Beato, diretor de fotografia de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), que rendeu prêmio (em Cannes) de melhor direção a Glauber, assinou as belas imagens de títulos poderosos como “A Flor do meu Segredo”, um dos poucos filmes do manchego em que o vermelho cedeu vez ao azul, “Carne Trêmula”, com Bardem em um de seus maiores desempenhos, e a obra-prima almodovariana “Tudo sobre minha Mãe”.

Para a pré-estreia brasileira de “A Flor do meu Segredo”, Almodóvar visitou a capital paulista. O filme abriu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em sessão no vão livre do Masp. Um filme intimista e muito delicado, em espaço aberto, não poderia dar muito certo. No outro dia, em coletiva de imprensa no Maksoud Plaza, o cineasta estava intranquilo e reclamou muito. Mas a coletiva foi maravilhosa. E ele acabou se divertindo.

Com Caetano Veloso (e Paula Lavigne), Almodóvar desenvolveu sólida amizade. Nos seus anos mais festeiros, passou férias na residência baiana do casal e divertiu-se a valer. Utilizou música caetanística no belíssimo “Hable com Ella”, protagonizado por quarteto inesquecível – Javier Cámara, Leonor Waitling, Darío Grandinetti e Rosário Flores. Caetano aparecia cantando “Cucurucucu Paloma”, de seu magnífico álbum dedicado ao cancioneiro hispano-americano. Marco Zuluaga, o personagem do argentino Grandinetti, mostrava os pelos eriçados e comentava: “este Caetano me deja con los pelos en punta!”

A Flor do meu Segredo

Depois de atraído pela atriz britânica Tilda Swinton para o projeto “A Voz Humana”, média-metragem inspirado em Jean Cocteau (já filmado por Roberto Rossellini, com Ana Magnani), Almodóvar se prepara, agora, para sua estreia no longa-metragem em língua inglesa, protagonizado e coproduzido pela diva australiana Cate Blanchett, de 52 anos. O nome – “Manual da Faxineira” – é dos mais curiosos. E Blanchett está tão empenhada em trabalhar com o manchego, que, “vestida para matar”, compareceu à Festa do Goya, o “Oscar espanhol”, sorriu dadivosa aos fotógrafos e fãs e recebeu das mãos de Penélope e Almodóvar, um “cabeçudo” especial. Será que há um papel para Penélope Cruz no filme?

Veja na lista abaixo, onde encontrar – nas plataformas digitais – o(s) seu(s) Almodóvar preferido(s).

Primeira fase (La Movida Madrileña):

. 1980 – “Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Monton” (Belas Artes à la Carte)
. 1982 – “Labirinto de Paixões”
. 1984 – “Que He Hecho Yo Para Merecer Esto?” (Netflix) + Prime Video e Apple TV
. 1984 – “Entre Tenieblas” (Prime Video e Apple TV)

Segunda Fase:
Um mestre em formação

. 1986 – “Matador” (Belas Artes à la Carte)
. 1986 – “A Lei do Desejo” (Netflix) + Apple TV (R$7,90)
. 1987 – “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (Netflix)
. 1989 – Ata-me (Apple TV)
. 1990 – “Tacones Lejanos” (De Salto Alto) – (Netflix) + (Prime Video e Apple TV)
. 1993 – “Kika” (Netflix) + Mubi, Apple TV, Google Play

Terceira Fase:
O Mestre dos Sentimentos (exacerbados ou contidos)

. 1995 – “A Flor do meu Segredo” (Netflix) + Prime Video e Apple TV
. 1998 – “Carne Trêmula” (Netflix) + Prime Video, Apple TV, Mubi, Apple TV e Google Play
. 1999 – “Tudo sobre minha Mãe” – Prime Video, Claro, Mubi, Apple TV, Microsofth e Google Play
. 2002 – “Fale com Ela” (Netflix) + Mubi, Apple Tv e Google Play
. 2004 – “Má Educação” (Apple TV)
. 2006 – “Volver” (Netflix) + GloboPlay, TeleCine Play, Now, Apple TV e Google Play
. 2009 – “Abraços Partidos”
. 2011 – “A Pele que Habito” (Apple TV: aluguel a R$24,90)
. 2016 – “Julieta” (Apple TV)
. 2019 – “Dor e Glória” (Apple TV, aluguel a R$24,90)
. 2021 – “Madres Paralelas” (Netflix)
. 2023 – Manual da Faxineira (em produção)

Uma (frágil) comédia para os atores-amigos:

. 2013 – “Os Amantes Passageiros” (HBO Max e Apple TV)

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