Marisa Paredes, do Almodovariano “Tacones Lejanos”, e Chema Prado encantaram Gramado
Por Maria do Rosário Caetano
Em 1992, o Festival de Gramado do Cinema Brasileiro, atormentado pela seca cinematográfica da era Collor (a produção caíra de 80 longas anuais para cinco ou seis) realizou sua primeira edição internacional. O recorte escolhido foi, inicialmente, ibero-americano. Depois, latino.
Na competição daquele ano de estreia de novo formato, filmes que falavam espanhol somaram-se aos de língua portuguesa, sendo um (somente um!) brasileiro. Pois, há que se lembrar, a situação era tão desesperadora, que não havia filmes para abastecer o festival gaúcho e o candango (o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro).
Para não disputar, em clima beligerante, as cinco ou seis produções de longa-metragem disponíveis (verdadeira loteria), o comando de Gramado reuniu filmes da Colômbia (“Técnicas de Duelo”, de Sérgio Cabrera), do México (“Meu Querido Tom Mix”, de Carlos García Agraz), de Portugal (“Nuvem”, de Ana Lúcia Guimarães), da Argentina (“El Viaje”, de Fernando Solanas), do Peru (“A Língua das Raposas”), etc.
O filme-sensação da competição foi “Tacones Lejanos” (“De Salto Alto”), de Pedro Almodóvar. O manchego não foi à Serra Gaúcha, mas mandou para representá-lo uma de suas mais famosas “chicas” – Marisa Paredes.
A diva loira, alta e elegante, então com 46 anos, devidamente montada em ‘tacones lejanos’, chegou a Gramado com o marido, o galego José Maria Prado, o Chema, fluente tanto no espanhol quanto no português. O cinema corria nas veias dos dois. Ele era diretor da Filmoteca da Espanha, que, à época, armazenava 30 mil títulos (hoje, o número é bem maior).
Marisa fizera com Pedro Almodóvar o louquíssimo “Entre Tenieblas” (“Maus Hábitos”), da fase underground. Quanto ele estourou com “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” e fez de Carmen Maura sua estrela máxima, Marisa esperou a hora de também atuar em filmes mais, digamos, estruturados, “palatáveis” ao mercado internacional. Veio “Tacones Lejanos”. Depois, em 1995, protagonizaria o belíssimo “A Flor do meu Segredo”, fotografado pelo brasileiro Affonso Beato. Quatro anos depois, coprotagonizaria, com Cecilia Roth, aquele que muitos consideram a obra-prima do espanhol, “Tudo sobre minha Mãe” (também fotografado por Beato). Apareceria, ainda, em “Fale com Ela” (2002) e “A Pele que Habito” (2011).
O casal Marisa-Chema chegou a Gramado vindo direto do Festival de Locarno, na Suíça, onde ela representara outro filme, “Hors Saison”, de Daniel Schmid. Depois de breve descanso, um bom banho e sessão de toalete, os dois estavam prontos para ir ao cinema. Faziam questão absoluta de assistir ao filme da amiga lusitana Ana Lúcia Guimarães (“Nuvem”). Se Marisa não fosse amante do cinema, não teria se tornado atriz, nem se casado com um curador de cinemateca. Pois os dois eram cinéfilos empedernidos e tornaram-se assíduos nas sessões do Cine Embaixador, que seria rebatizado pomposamente de Palácio dos Festivais. Mas, com sua alma de diva, Paredes ia ao cinema vestida e penteada como uma estrela. Nada de vestidinhos simples ou sapatos sem saltos. Preferia os “tacones lejanos” que valorizavam ainda mais seu porte esguio.
A atriz espanhola já conhecia o Brasil, pois, tendo o casal Suzana de Moraes e Affonso Beato como anfitriões, visitara o Rio de Janeiro. O entusiasmo fora tamanho, que o casal brasileiro a levou para conhecer a Amazônia (Belém e Manaus) e a Bahia (Salvador). No ano seguinte voltou para passar o Revéillon no Rio. A Serra Gaúcha era, para ela, uma novidade. “Minha primeira viagem ao sul do país”, contou.
Marisa estava feliz com a receptividade dada ao cinema espanhol naquele momento. Afinal, além de Almodóvar, dois realizadores conseguiam, naquele momento, juntar-se a Carlos Saura (hoje com 90 anos e no batente), e colocar seus filmes nos cinemas de muitos continentes – Vicente Aranda (1926-2015) e Bigas Luna (1946-2013). Antonio Banderas, o mais famoso “chico” de Almodóvar fazia sucesso internacional e partia para os EUA, disposto a entrar na indústria hollywoodiana, sem esquecer Madri e sua Málaga natal.
“Tacones Lejanos” ia ampliando o impacto de Pedro Almodóvar nos cinemas. Hoje, ele é o cineasta de língua espanhola mais conhecido no firmamento cinematográfico planetário. Respeitadíssimo nas festas do Oscar, em Cannes e Veneza. Aos 70 e poucos anos, o manchego segue carreira produtiva e densa. E seus filmes estão disponibilizados em muitas plataformas de streaming, com número de acessos notável para um autor que faz carreira em Madri, não em Hollywood.
Sobre sua personagem em “De Saltos Altos”, Marisa Paredes contou, em entrevista ao Jornal de Brasília, num começo de fria manhã gramadiana: “Becky del Páramo é uma personagem maravilhosa, uma cantora egocêntrica, totalmente convencida de que sabe desempenhar bem o seu ofício. Ela vive conflito com sua filha Rebecca (Vitoria Abril), que casa-se com um homem que fora seu amante (dela, Becky). No final, porém, ela se redime. Almodóvar é um grande retratista da alma feminina. Ele considera que a mulher é mais capaz dramaticamente que o homem. Ele tem seus sentimentos à flor da pele e os expressa com mais garra”.
Como organizar arquivos é, no Brasil, algo problemático, foi impossível localizar negativos e cópias das fotos que Paulo Cabral fez, para o Jornal de Brasília, da passagem do casal Marisa Paredes-Chema Prado por Gramado, em 1992. Depois de conversar com o fotógrafo, ele lembrou-se da deliciosa estada na Serra Gaúcha, mas mostrou-se triste por não ter com ele sequer uma singela cópia em papel das muitas fotos realizadas em Gramado. E, para agravar, ouvira dizer que os negativos do Jornal de Brasília teriam sido, em grande parte, perdidos.
O jeito foi apelar para a organizadíssima Biblioteca do Senado Federal. O bibliotecário Osmar Carmo Arouck Ferreira localizou na coleção, o Jornal de Brasília de 19 de agosto de 1992. Na chamada de capa, foto de Marisa Paredes e de Chema Prado abraçados. Na capa do caderno cultural, entrevista da estrela espanhola.
Gramado, que realizou ano passado sua edição de número 50, mantém, em seu cinema, o Museu do Festival. Mas também não encontrou fotos da passagem do casal Paredes-Prado por sua primeira edição internacional. Há alguns anos, o tradicional e badalado festival gaúcho mantém importante troféu (o Kikito de Cristal) criado para valorizar astros e diretores latinos. Já foram premiados os argentinos Soledad Villamil, Cecília Roth, Jean-Pierre Noher, Fernando Solanas, Natália Oreiro, Juan José Campanella, a chilena Paulina García, o uruguaio Cesar Troncoso, entre outros. Hora de trazer Marisa Paredes, hoje com 76 anos, para que a deusa platinada madrilenha receba um transparente e luminoso Kikito de Cristal. Não??
Quem sabe desta vez Pedro Almodóvar se disponha a fazer companhia a ela! E receba, também, um troféu cristalino. Já imaginaram o manchego fabricando o Kikito de Cristal — aquele que será entregue no ano seguinte ao novo laureado — nas forjas da Cristal de Gramado?