“Memória Sufocada” registra embate entre Gilberto Natalini e Brilhante Ustra
Por Maria do Rosário Caetano
O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (foto) foi o único entre os militares brasileiros a ser condenado por prática de tortura durante a ditadura instaurada em 1964.
Décadas depois, em 2016, no dia do impeachment de Dilma Roussef, a única mulher eleita e reeleita para governar o Brasil, o então deputado federal Jair Bolsonaro, mais tarde eleito presidente da República, exaltou o Coronel Ustra como “um herói”. E fez questão de dedicar a ele seu voto pró-impeachment, acompanhado do aposto “o terror de Dilma Roussef”.
Para refletir sobre esse complexo momento vivido pela história contemporânea brasileira, o documentarista Gabriel Di Giacomo lança, nessa quinta-feira, véspera do 31 de março, data oficial do golpe, o longa “Memória Sufocada”. Nunca é demais lembrar que o gaúcho Brilhante Ustra (1932-2015), coronel do Exército, comandou o Doi-Codi e era conhecido, nos porões da repressão política, pelo codinome Dr. Tibiriçá. Ele publicou dois livros com suas memórias – “Rompendo o Silêncio” (1987) e “A Verdade Sufocada” (2006).
Para realizar “Memória Sufocada”, no qual atua como diretor, roteirista, montador e coprodutor, Di Giacomo se propôs a sair “em busca da verdade”. Por isso, mergulhou – durante a pandemia – em exaustiva pesquisa audiovisual que lhe permitisse construir seu documentário. Foram meses e meses de buscas na internet para resgatar o passado e compará-lo com o presente (no caso, com os anos 2020 e 2021, quando o filme ficou pronto e participou da Mostra Internacional de Cinema de SP). Depois, foi a outros festivais como o de Málaga, na Espanha.
O Brasil vivia anos de angustiantes incertezas provocadas pela pandemia e, para agravar, o governo federal era comandado pelo extremismo do ex-capitão Jair Messias Bolsonaro, justo o admirador de Brilhante Ustra. A cada imagem do passado encontrada, Di Giacomo esbarrava com o tempo presente. Apesar da abundância de registros localizados nos mais diversos arquivos digitais, o cineasta e sua pequena equipe sentiram necessidade premente de filmar dentro do Doi-Codi de São Paulo.
“Fomos a primeira equipe de cinema a filmar no local”, assegura. E acrescenta: “nosso documentário olha a história da ditadura militar e a tortura no Brasil a partir da perspectiva do presente”. As buscas empreendidas na internet “agregaram narrativas distintas do passado, mas que iluminam os dias de hoje”.
Integrante da geração familiarizada com as redes sociais, Gabriel Di Giacomo lembra que “a informação e a desinformação estão, hoje, ao alcance de todos”, de forma que “muitos fatos são construídos nas redes sociais”. Se, na aparência, tal abundância parece facilitar a compreensão dos fatos, na essência, ela acaba por tornar “a realidade cada vez menos nítida”. E mais ilusória.
“Memória Sufocada” recorre a materiais audiovisuais produzidos por instituições (como o Ipes – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), que, durante o Governo João Goulart, ajudaram a preparar as bases para o triunfo do golpe civil-militar. Mostrará, também, propagandas difundidas pela AERP (Agência Especial de Relações Públicas da Presidência), dirigidas à família, com atenção especial às crianças. Numa delas, o filho pergunta ao pai: “o que é nacionalismo?” O genitor, dono de farto bigode, promete “desenhar” para o infante o significado do termo.
Di Giacomo vê as propagandas do período como resultantes de “uma mistura de inocência com perversidade, recheadas de mentiras”. Ele destaca uma delas, que trata da inflação: “assistimos a uma tentativa de responsabilizar a população pelo aumento inflacionário, pois uma voz assegura que a solução depende de todos. Basta pechinchar para os preços caírem. Na época, a inflação estava perto de 40% ao ano e o Governo tentava terceirizar a culpa do fracasso econômico repassando-o ao povo”.
O material histórico, produzido nas décadas de 1960 e 1970, em especial, será ao longo de “Memória Sufocada” editado lado a lado com imagens do tempo presente, em que seguidores do (então) presidente Bolsonaro, vão expondo, seja no Parlamento, seja nas ruas, seu pouco apreço pelos Direitos Humanos e pela democracia.
Depoimentos de ex-presas e presos políticos, que compareceram à Comissão Nacional da Verdade, são integrados ao filme. Mas os momentos mais impressionantes têm Brilhante Ustra como figura central. Ele, que compareceu à CNV para prestar seu testemunho, acabou não dizendo quase nada. A cada pergunta, respondia insistentemente: “está tudo escrito no meu livro”.
Nos momentos mais calorosos do documentário, o médico, ambientalista e então vereador paulistano Gilberto Natalini, que foi torturado por Brilhante Ustra no Doi-Codi, confronta o militar. Só neste momento o coronel (cujas filhas passaram a receber pensão como “herdeiras de marechal”, o posto mais alto do Exército Brasileiro), se digna a sair de seu mutismo (e de sua frase mais repetida — “está escrito no meu livro”) para gritar: “não faço acareação com ex-terrorista”. Ou seja, atribui a quem fez oposição ao regime militar, empoderado por golpe de Estado, a qualificação de “terrorista”. Natalini não aceita a qualificação e protesta, mas o moderador da sessão exige silêncio: “Ninguém fala!”
Destacam-se, também, em “Memória Sufocada”, os depoimentos da ex-presas políticas Maria Amélia Teles e Darci Miyaki.
O documentário de Di Giacomo mostrará que o discurso presente entre os que depuseram o presidente João Goulart, na década de 1960, continua sendo repetido por setores da população brasileira e pelas forças militares, já que acreditam ser necessário agir para evitar “o avanço comunista” e “proteger a pátria e a família”.
Quem, depois de assistir ao filme, quiser conhecer mais do amplo material (sobre o assunto) hospedado na internet, poderá consultar o website de “Memória Sufocada”, que contém as imagens e sons, que foram a base da construção do roteiro. Assim agindo – acredita Di Giacomo – “cada espectador poderá fazer a sua pesquisa e montar seu próprio filme, mesmo que seja apenas dentro de sua mente”. Para tanto, basta acessar o site https://memoriasufocada.
Memória Sufocada
Brasil, 2023, 76 minutos
Direção-roteiro-montagem:
Fotografia: Bruno Graziano
Música: Cauê Bravim
Produtores: Marcelo Botta e Gabriel Di Giacomo
Distribuição: Embaúba
Nesta quinta-feira, às 20h35, no Cine Brasília, Distrito Federal, haverá sessão acompanhada de debate entre Gabriel Di Giacomo e o público.
Pelos militares de 64, hoje e sempre!