João Donato, que nasceu para bailar, deixa sua alegria registrada em muitos filmes

Foto: Lysias Enio, João Donato e Tetê Moraes

Por Maria do Rosário Caetano

“A música norte-americana era feliz, falava de coisas boas, enquanto a nossa ficava naquela base do ‘você há de rolar com as pedras, que rolam na estrada/ sem ter nunca um cantinho de seu/ prá poder descansar”.

Esta é uma das tiradas, ou estocadas carinhosas, de João Donato, compositor e multi-instrumentista, um dos grandes nomes da música brasileira, que morreu nessa segunda-feira, 17 de julho, em sua amada (e adotiva) cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

O artista, acriano de origem, proferiu tal “estocada”, sem nenhum rancor ou mágoa, no longa documental “Dolores Duran – O Clube da Noite”, de Juliana Baraúna e Igor Miguel. O filme, ainda inédito no circuito comercial, foi exibido no Festival In-Edit, mês passado. Para deleite dos fãs deste que foi, como Jair Rodrigues, o artista mais sorridente e alto-astral da música brasileira.

Um bossa-novista de alma e talento. João Donato tinha 88 anos e, apesar de inúmeros problemas de saúde, que só fizeram agravar na última década, continuava fazendo shows. E recebendo, com carinho, a todos que o procuravam para dar depoimentos sobre compositores, instrumentistas e cantores. Gente com quem conviveu, tocou, compôs ou namorou.

O depoimento sobre Dolores Duran constitui momento de destaque num documentário de narrativa convencional. A cantora, que viveu apenas 29 anos e deixou legado de 25 canções, foi namorada de Donato. Ele mesmo, o autor da dançante “Nasci para Bailar”, narrou o affair, com sua alegria, simplicidade e franqueza costumeiras. Lembrou que era um jovenzinho vindo do Norte, que pretendia ser piloto da Aeronáutica. Fez as provas necessárias, mas foi reprovado, pois era daltônico. Como gostava de música e tocava acordeon desde a infância, decidiu que seguiria prazerosamente esta vocação.

Começou a tocar onde podia. Aos 18 anos iniciou o namoro com Dolores Durán. Ela tinha 22. Pensava em casar-se com ela. A família acriana, já radicada no Rio, impediu o prosseguimento do namoro e o almejado casamento. Arrumou uma viagem para tirar o filho do Rio. Afinal, com que dinheiro aquele rapazinho, mal saído da adolescência, iria sustentar uma família? Além do mais –  isso João não diz –, Dolores era uma moça pobre e afro-descendente. Mas o documentário de Juliana Baraúna e Igor Miguel não deixará de registrar as discriminações sofridas pela moça de origem humilde, filha de mãe solo e criada em cortiço.

Quem dedicou um filme inteiro a João Donato foi a cineasta Tetê Moraes, do premiado “Terra para Rose”. O documentário “Nasci para Bailar” foi filmado em Cuba, em 2009, e apresentado pela TV Brasil-EBC, em 2012. Donato é visto derramando alegria e seus sorrisos largos com seu trio (Robertinho Silva, na bateria, Luiz Alves, no contrabaixo, e Ricardo Pontes, no sax e flauta). A ideia era estabelecer a ponte que ligou o acriano aos sons do Caribe, ele que morara nos EUA e no México, sempre aberto a todas as influências e misturas sonoras.

No Festival Internacional Jazz Plazza, Donato encontrou (e tocou com) músicos como os saxofonistas Cesar Lopez e German Velso, este integrante do grupo musical de Pablito Milanes, o trompetista Maikel Gonzalez, o contrabaixista Jorge Reys, mais Thommy Garcia (flugelhorn), Edgard Ochoa, Aniel Tamayo, José Angel Blanco e Amado Valdez, este com passagem pelo Buena Vista Social Club. Os quatro últimos nomes dessa lista respondem pela poderosa percussão da música cubana (com pailas, timbal, congas e um… pandeiro).

Depois das filmagens em Cuba, Tetê Moraes documentou uma feijoada na casa de João Donato, na Urca carioca, durante a qual ele recebeu músicos cubanos e amigos para juntos festejarem seu aniversário.

E de onde vinha o interesse de João Donato pela música cubana?

O documentário de Tetê Moraes garante que tal interesse nasceu durante os 12 anos vividos pelo acriano nos EUA, período em que trabalhou com músicos como Mongo Santamaria e Bebo Valdez, pai de Chucho Valdez, ex-Banda Irakerê e um dos maiores pianistas da história da música cubana. Chucho, aliás, era o presidente do Festival de Jazz que convidara Donato para o tour pela Ilha caribenha.

No repertório do brasileiro, alguns de seus maiores sucessos. Além de “Nasci para Bailar” (parceria com Paulo Barata), destaque total para “A Rã” (parceria com Caetano Veloso), “Bananeira” e “Emoriô” (com Gilberto Gil), “Amazonas”, “Café com Pão” e “Vento no Canavial” (com Lysias Enio). Aos fãs do grande Donato, há que se recomendar a audição de todos os seus discos e um em especial – “Café com Pão”, gravado com Eloir de Moraes, pelo selo Lumiar, em 1997.

Em 2015, em parceria com Lysias Enio, irmão do músico acriano, Tetê transformou seu documentário em uma série de quatro capítulos (26 minutos cada um). Nesta série, o grande pianista e multi-instrumentista será visto em apresentações em diversos países e com parceiros diversos, incluindo os brasileiros Paulo Moura, Martinho da Vila, Maurício Einhorn, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Marcos Valle.

Embora a documentarista tenha convivido muito com João Donato, que foi seu cunhado, e tenha Lysias Enio como co-roteirista, diretor musical e codiretor, a série não assume perfil biográfico. O que interessou à dupla foi registrar a obra luminosa e a alegria contagiante de Donato.

Depois de ver a sintética série documental, nós, espectadores e ouvintes, gravamos em nossa memória, para o todo e o sempre, as belas composições instrumentais que Donato engendrou e que receberam letras incríveis como a de “A Rã” (com alguns versos que são verdadeiros trava-língua): “Coro de cor sombra de som de mal me quer/ De mal me quer de bem de bem me diz/ De me dizendo assim serei feliz/ Serei feliz de flor em flor em flor/ De samba em samba em som de vai e vem/ De verde verde ver pé de capim/ Bico de pena pio de bem-te-vi/ Amanhecendo sim perto de mim/ Perto da claridade da manhã/ A grama a lama tudo é minha irmã/ A rama, o sapo, o salto/ De uma rã”.

Como não se fazia de difícil e a todos recebia com seu sorriso largo e sincero, João Donato deixou seus testemunhos gravados em muitos filmes (em especial sobre a Bossa Nova). Quem fará, agora, o grande filme sobre a trajetória desse grande – imenso-artista?

Alguns filmes com João Donato (1934-2023) sobre o personagem ou com depoimentos do artista:

2023 – “Dolores Duran – O Clube da Noite”, de Juliana Baraúna e Igor Miguel (inédito, 70 minutos) – depoimento
2019 – “Garoto – Vivo Sonhando”, de Rafael Verissimo (100 minutos)
2020 – “Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar”, de Henrique Dantas (Bahia, 86 minutos)
2018 – “Onde Está Você, João Gilberto?”, de George Gachot (Suíça-Brasil, 107 minutos)
2017 – “Eu, Meu Pai e os Cariocas”, de Lúcia Verissimo (inédito, 112 minutos)
2012 – “Nasci para Bailar”, série de quatro capítulos, de 26 minutos cada, parceria de Tetê Moraes com Lysias Enio – Personagem principal
2010 – “Nana Caymmi em Rio Sonata”, de George Gachot (Suíça-Brasil, 85 minutos)
2009 – “Nasci para Bailar – João Donato Havana-Rio”, documentário de Tetê Moraes, filmado em Cuba e no Rio de Janeiro (54 minutos) – Personagem principal
2008 – “Bossa Nova All Stars”, de Victor Grandits (telefilme, 43 minutos)
2007 – “Oscar Niemeyer – A Vida É Um Sopro”, de Fabiano Maciel (90 minutos)
2005 – “Coisa Mais Linda: Histórias e Casos da Bossa Nova”, de Paulo Thiago (120 minutos)
1983 – “Vinícius de Moraes, Um Rapaz de Família”, de Susana de Moraes (média-metragem, 30 minutos)

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