Cinema brasileiro espera reverter tragédia nas bilheterias com Gal, Mussum, Mônica adolescente e lar espírita

Foto: “Meu Nome é Gal”, de Dandara Ferreira e Lô Política © Stella Carvalho

Por Maria do Rosário Caetano

“Tempos de Barbárie”, filme de suspense e ação de Marcos Bernstein, protagonizado por Claudia Abreu – ela encarna mãe vingadora de estilo Rambo –, estreou no último dia 17 de agosto. Concebido como produção vocacionada ao diálogo com o grande público, o filme foi anunciado, inclusive em seu título completo – “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança” – como abertura de “Trilogia da Violência”. Sua intenção seria refletir sobre o derramamento de sangue (inclusive de crianças inocentes) em nossas conturbadas metrópoles. E, mesmo assim, entreter o público.

Os resultados de bilheteria de “Tempos de Barbárie” foram tão catastróficos, que não se sabe se os dois filmes-sequência serão produzidos e lançados nos cinemas. Eis a crueza dos dados: disponibilizado em 138 salas, “Ato I: Terapia da Vingança” vendeu, em seu primeiro final de semana, míseros 1.778 ingressos. Sua média foi baixíssima (apenas 13 espectadores por cada tela em que foi projetado).

Para termo de comparação, vale citar – a fonte é o Boletim Filme B, editado por Paulo Sérgio Almeida – o desempenho (ainda em fase de pré-estreias pagas) de outro filme brasileiro, o documentário “Retratos Fantasmas”. Este longa-metragem, dirigido por Kleber Mendonça Filho, o KMF, somou 5.243 ingressos. Mais que o dobro da ficção de Bernstein.

O cineasta pernambucano, respaldado por sua distribuidora, a Vitrine, acompanhou sessões nas principais capitais brasileiras. Salas do circuito de arte e ensaio, às quais ele compareceu pessoalmente, tiveram lotação esgotada. No dia de sua estreia comercial (24 de agosto), “Retratos Fantasmas” somava espantosa fortuna crítica e páginas muito fartas e bem ilustradas nos principais jornais do país.

Marcos Bernstein, o realizador de “Tempos de Barbárie”, não é um aventureiro. Tem significativa folha de serviços prestados ao cinema brasileiro. Escreveu, com João Emmanuel Carneiro, o roteiro de “Central do Brasil” (Walter Salles, 1998), Urso de Ouro no Festival de Berlim. Produção que, registre-se, vendeu mais de um milhão e meio de ingressos no Brasil e foi comercializado para lançamento em diversos mercados internacionais.

Depois de ajudar na escritura de novos roteiros, incluindo o blockbuster “Chico Xavier”, de Daniel Filho (quase 4 milhões de espectadores), Bernstein, hoje com 53 anos, estreou na direção com um bom thriller: “O Outro Lado da Rua” (2004), protagonizado por Fernanda Montenegro e Raul Cortez. Seguiram-se a ficção infanto-juvenil “Meu Pé de Laranja Lima” (2012), um documentário sobre Fittipaldi, Piquet e Senna (“A Era dos Campeões”, em parceria com César Melo Franco, 2013) e “O Amor Dá Voltas”, comédia romântica com Cleo Pires, realizada em 2019. Por causa da pandemia, esta produção só foi lançada no primeiro semestre desse ano e vendeu modestos 15 mil ingressos.

O diálogo dos filmes de KMF com o público é digno de nota: “O Som ao Redor” vendeu quase 100 mil ingressos, “Aquarius”, com Sônia Braga, 400 mil, e “Bacurau”, parceria com Juliano Dornelles, quase um milhão.

Como seu longa de estreia (“Crítico”, de 2008), “Retratos Fantasmas” é um documentário, gênero que faz mais sucesso na TV, que nos cinemas. Narrado em primeira pessoa, temperado com fascinantes lembranças, cinefilia e ingredientes do cinema de horror (a fantasmagoria está inclusive contida no título), o filme chega cercado de entusiasmo. Sua arrancada em pré-estreias pagas com mais de 5 mil ingressos constitui um feito e tanto. O pernambucano, ex-crítico de cinema e conhecedor profundo do circuito de arte – pois foi programador de salas recifenses e assina a programação do Circuito IMS (Instituto Moreira Salles) –, entende do riscado. Foi a Cannes com “Retratos Fantasmas”, abriu hors concours o Festival de Gramado, lotou sua coletiva-debate na Serra Gaúcha com dezenas de jornalistas, críticos e cinéfilos vindos de muitos territórios.

Já Marcos Bernstein e seu filme chegaram aos cinemas sem que a mídia especializada se ocupasse de suas existências (do criador e da criatura). Sua distribuidora (a poderosa dobradinha Downtown-Paris Filmes) até que conseguiu espaço razoável para “Tempos de Barbárie” no circuito exibidor (mais de 100 salas e horários significativos, alguns até nobres). Essa repórter foi a única espectadora pagante de sessão realizada no Itaú Frei Caneca, em São Paulo, na terça-feira, 22 de agosto, em horário noturno.

Claudia Abreu, protagonista de “Tempos de Barbárie – Ato I – Terapia da Vingança”, de Marcos Bernstein

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estrear sem informar ao público (via publicidade, matérias de peso nos jornais, rádios, TV, internet etc.) é um suicídio. E, convenhamos, “Tempos de Barbárie – Ato 1: Terapia da Violência” chega batizado com nome que parece vir de empréstimo de dissertação de mestrado ou tese de doutorado. E que resulta amedrontador.

Em síntese: o filme de Bernstein estreou, já de saída, destinado ao limbo. Embora em condições melhores (número de salas sendo o principal dos fatores) que a da maioria da produção nacional. Hoje, 95% dos filmes brasileiros estreia em horários inacreditáveis (a ficção gaúcha “O Acidente” estreou em SP, em uma única sala, num único horário: 13h). Estão, pois, tais filmes condenados à invisibilidade desde que os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro enterraram a cota de tela (reserva de número de dias para exibição anual de produção brasileira).

As primeiras (e raras) notícias sobre “Tempos de Barbárie” na mídia apareceram em textos críticos. É sabido que filmes destinados ao grande público (os blockbusters) não dependem de endosso da Crítica, mas sim de propaganda massiva, de mobilização de ‘influencers’ e de fã-clubes. E, claro, de construção cinematográfica preferencialmente com começo, meio e fim, sendo este positivo (ou esperançoso). E que os espectadores dos primeiros dias, entusiasmados, se responsabilizem pela difusão de vibrante boca-a-boca.

Apesar do bom elenco (destaque para o casal interpretado pela loura Claudia Abreu e o black-beautiful César Mello, o pastor de “O Pastor e o Guerrilheiro”) e do assumido diálogo com a gramática do cinemão norte-americano, o quinto longa-metragem de Bernstein não sabe a quem servir. Se ao grande público, com narrativa mais digerível, ou se a um público mais exigente (só este se interessaria por cronologia tão fragmentada).

Para agravar, o roteiro (área em que Bernstein tem grande experiência e contou com dois parceiros – Paulo Dimantas e Victor Atherino) dificilmente convencerá, com seu aparente realismo, o espectador brasileiro.

Uma coisa é ver heróis de filmes de ação norte-americanos, geralmente vingadores e machos tóxicos, barbarizando suas vítimas com armamentos de última geração. Outra, deparar-se com nossa realidade (“Tempos de Barbárie” se desenvolve em dezenas de locações, a maior parte delas em favelas, chegando à desoladora fronteira com o Paraguai).

Na trama, quem vai tocar o terror é a advogada Carla, mãe de classe média alta (Claudia Abreu), que vê sua vida entrar em parafuso, quando a filha pequena é baleada e entra em coma profundo.

Em estado de choque, a outrora carinhosa esposa (e mãe) irá separar-se do companheiro compreensivo (César Mello), destratar a terapeuta (Júlia Lemmertz) e os colegas em tratamento psicológico. E, como vingadora em estado patológico, enfrentar (quase) toda a “cadeia que produz o crime”. Do pequeno assaltante favelado, passando por policiais corruptos, pelo tráfico de armas etc., etc. A todos a Mãe Coragem, com uma bala alojada na cabeça, enfrentará. Só não chegará aos titãs da indústria armamentista, porque aí seria missão para Rambo-Stallone ou o mister músculos Arnold Schwarzenegger.

“Tempo de Barbárie” é, em todos os sentidos, um paradigma do trágico momento vivido pela produção cinematográfica brasileira, abalada pelos anos Temer-e-Bolsonaro e pela pandemia. Agosto, o oitavo mês do ano, está se encerrando com quadro desesperador para nossas bilheterias. Em julho, a Ancine (Agência Nacional de Cinema) mostrou que o cinema estrangeiro havia ocupado 98,6% de nosso market-share. Para a produção nacional, sobrara mísero 1,4%. Para comparação: a Coreia do Sul ocupa mais de 50% de seu mercado interno, a França, média de 40%, a China, mais de 80% e a Índia, quase 100%.

“Nosso Sonho”, de Eduardo Albergaria © Angelica Goudinho

Sem cota de tela, entre outros mecanismos, como o cinema brasileiro conseguirá enfrentar desafio de tamanha complexidade?

No Festival de Gramado, semanas atrás, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, garantiu que o Congresso Nacional, a quem cabe resolver o assunto, “colocaria projeto-de-lei que restaura o mecanismo da Cota de Tela em pauta”.

O meio audiovisual brasileiro, atento ao assunto, verbalizou suas reivindicações (a volta da Cota de Tela e outras medidas) em duas cerimônias de premiação: a do Festival de Gramado (Troféu Kikito) e a do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (Troféu Grande Otelo). Mas nada indica que o Parlamento brasileiro tenha a Cota de Tela como prioridade. E mais: no mês de setembro, tão próximo, encerra-se o prazo de vigência da Lei que assegura espaço para produção nacional na TV por assinatura.

Outro tema urgente, a regulação das plataformas de streaming com estabelecimento de cotas para filmes, séries e programas brasileiros, também parece fora da lista de prioridades do Congresso Nacional.

Algumas dezenas de produções nacionais estão com data de lançamento agendada para os próximos quatro meses (os que restam desse segundo semestre em curso). As esperanças estão concentradas em cinebiografia de Gal Costa (“Meu Nome é Gal”, de Dandara Ferreira e Lô Política), Mussum (“Mussum, o Filmis”, de Silvio Guindane), Claudinho e Buchecha (“Nosso Sonho”, de Eduardo Albergaria), na sexagenária Xuxa (“Uma Fada Veio me Visitar”), o espírita “Nosso Lar 2”, de Wagner Assis, e “O Sequestro do Vôo 375”, de Marcus Baldini (estes dois com a poderosa retaguarda da distribuidora Disney), “Férias Trocadas”, comédia de Bruno Barreto, “Farofeiros 2”, de Roberto Santucci (o mago da comédia comercial), e na aventura adolescente da Turma da Mônica (“Turma da Mônica Jovem – Reflexos do Medo”), de Maurício Eça. Só que as bilheterias destes dois últimos filmes (o primeiro estreia no Natal, o segundo, no dia 28 de dezembro) só servirão mesmo (caso façam sucesso) à contabilidade de 2024.

Algum desses títulos conseguirá chegar à casa do milhão de espectadores?

Só o tempo dirá. O que temos de concreto é que as maiores bilheterias brasileiras de 2023 não chegaram, até agora, a vender nem 500 mil ingressos. O campeão da temporada, “Aventureiros – A Origem”, com o youtubber Luccas Neto, empacou em 425 mil tíquetes. E os que o seguem na lista não ultrapassaram nem 200 mil. Caso de “Desapega” (153 mil), “Ninguém é de Ninguém” (133 mil), “Perdida” (70 mil), “Chef Jack – O Cozinheiro Aventureiro” (51 mil) e “Nas Ondas da Fé” (37 mil).

Só com proteção de São Paulo Gustavo, o saudoso padroeiro das mães que são uma “peça” e recordista de público com sua “Trilogia Materna”, a situação registrará alteração positiva.

 

OUTRAS BILHETERIAS BRASILEIRAS (*):

. “Perlimps”………………………………………20 mil
. “O Amor Dá Voltas”…………………………15 mil
. “Barraco de Família”………………..………14 mil
. “Muco, Contradição na Tradição”….….10 mil
. “Fervo”…………………………………….………8 mil
. “Regra 34”………………………………….……6 mil
. “Retratos Fantasmas”(pré-estreia)…….5.243

. MENOS DE 5.000 INGRESSOS:

. “Tempos de Barbárie 1”
. “Bem-Vindos de Novo”
. “Jair Rodrigues, Deixe Que Digam”
. “Noites Alienígenas”
. “Carvão”
. “Coração de Neon”
. “O Pastor e o Guerrilheiro”
. “Capitu e o Capítulo”
. “Máquina do Desejo”
. “Mato Seco em Chamas”
. “Medusa”
. “Rio Doce”
. “Seus Ossos e seus Olhos”
. “O Homem Cordial”
. “Bem-Vinda, Violeta”
. “Corpolítico”
. “Me Chama que Eu vou”
. “O Rio do Desejo”
. “A Mãe”
. “Quando Falta o Ar”
. “Sinfonia para um Homem Comum”
. “Eneida”
. “As Órfãs da Rainha
. “A Última Festa”
. “Porta do Lado”
. “Tinnitus”
. “Biocêntricos”
. “Segundo Tempo”
. “Rio, Negro”
. “O Lodo”
. “Casa Vazia”
. “Brichos 3”
. “Môa, Raiz Afro-Mãe”
. “Vai Corinthians”

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