“Elis & Tom” seduz espectador com intrigas, maestro contrariado, cantora geniosa, marido cabeludo e excelência técnica

Por Maria do Rosário Caetano

“Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”, longa documental dirigido por Roberto Oliveira (codireção de Jom Tob Azulay), chega, com 50 anos de atraso, a seu público alvo – os amantes do que de melhor produziu a música popular brasileira. O filme, que conquistou o Prêmio da Crítica na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (melhor longa brasileiro), estreia nessa quinta-feira, 21 de setembro, no circuito de arte, distribuído pela O2 Play em 100 salas de cinema.

Que ninguém pense tratar-se de material requentado ou de mero making of póstumo da histórica gravação que uniu a cantora gaúcha ao maestro soberano, entre 22 de fevereiro e nove de março de 1974. Tudo aconteceu em Los Angeles, na Califórnia, num tempo em que as gravadoras tratavam os artífices de nosso cancioneiro popular como deuses do Olimpo.

“Elis & Tom” vai além das belíssimas imagens registradas em película 16 milímetros pelo craque Fernando Duarte (1937-2023). Vai além, porque mostra, com imagens feitas no calor da hora e depoimentos contemporâneos, a tensão que cercou a gravação californiana. Era perceptível em cada canto do estúdio (da MGM), a fricção entre o consagrado maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994), então com 47 anos, e o cabeludo César Camargo Mariano, de 27, marido da Pimentinha. A cantora, todos sabem disso, também não era fácil. Carregava suas instabilidades emocionais, era muito competitiva e voluntariosa.

O filme conta com testemunhos de músicos (Paulo Batera e o guitarrista Hélio Delmiro, que participaram da feitura de “Elis & Tom”), de Roberto Menescal, do maestro César Camargo Mariano, do próprio diretor Roberto Oliveira, que era empresário da cantora, e do então Midas da mais sofisticada MPB setentista, o diretor da gravadora holandesa Philips, depois Polygram, o sírio-brasileiro André Midani (1932-2019).

Vem dele as insinuações mais venenosas (e controvertidas) do filme: Elis não teria se tornado uma das cinco maiores cantoras do mundo por razões e ‘desrazões’ que advinham de sua personalidade difícil e, até, de certo provincianismo. Para Midani, “Elis Regina teria se suicidado em janeiro de 1982” com overdose de cocaína.

Roberto Oliveira, que empresariava a cantora naquele momento e transformaria aquela iluminada aventura em longa documental, define (de viva voz no filme) o contexto de gravação do antológico elepê “Elis & Tom”. Ele garante que, naquele ano de 1974, Elis atravessava momento difícil. Amada pela esquerda, em especial o público estudantil, ela sofrera enorme desgaste por ter cantado nas Olimpíadas do Exército (em plena Era Médici, a mais brutal da ditadura que durou 21 anos).

Como Oliveira brilhava na produção de shows universitários, Elis recorreu a ele para que a ajudasse a limpar seus caminhos. Brotou, então, além da ideia de retomar os laços com o público universitário, a intenção de gravar um disco que festejasse os dez anos da cantora na Philips-Polygram. Decidiu-se que ela teria como parceiro ninguém mais, ninguém menos que o mais importante dos bossa-novistas, Tom Jobim.

O maestro também andava “meio esquecido”. Depois de uma década (anos sessenta) de tirar o fôlego, de gravação com Frank Sinatra (1967), de “Garota de Ipanema” sendo difundida em todos os cantos do planeta, ele se transformava numa espécie de Villa-Lobos da MPB e fertilizava fase que culminaria com o belíssimo “Urubu” (1976). Mas tornara-se artista fruído por poucos, embora muito bons.

O maestro soberano, além de fornecer repertório (incluindo a magistral “Águas de Março” e a encantadora “Chovendo na Roseira”) para o disco com a grande intérprete, imaginava que assinaria os arranjos. Qual não foi sua surpresa ao saber, tardiamente, que a missão caberia a um cabeludo, que tocava piano elétrico (César Camargo Mariano). Diz o folclore que cerca o grande Tom, que ele não perdeu a piada: “a conta de luz do estúdio vai subir muito”.

Jom Tob Azulay, que ajudou Roberto Oliveira a registrar em película a gravação do disco, relembra o que presenciou naqueles 15 dias: “Eu trabalhava como cônsul do Brasil em Los Angeles (e nas horas vagas estudava cinema). Quando Elis chegou com o filho João Marcelo Bôscoli e o marido (e músico) Cesar Camargo Mariano, o empresário dela (Roberto Oliveira) me procurou. Por coincidência, o Fernando Duarte, diretor de fotografia, estava em Los Angeles, levado pelo Davi Neves e o Fernando Sabino, dupla que realizava série de curtas sobre escritores. Naquele momento, um curta sobre o próprio Sabino. Então o Fernando entrou no projeto ‘Elis & Tom’. Eu tinha uma câmera 16mm e um gravador Nagra para filmagens em cinema-direto. Durante duas semanas filmamos o Tom e a Elis em ensaios, encontros sociais, passeios pela cidade e, principalmente, os trabalhos de gravação no estúdio”.

A sorte foi fator decisivo para o projeto. Contar com um fotógrafo profissional da qualidade de Fernando Duarte era um privilégio. Se não fosse a película, as imagens estariam degradadas por cinco décadas de história. Saibam, pois, todos que amam o disco “Elis & Tom”, que verão um filme impecável do ponto de visto técnico. E emocionante. Apesar das divergências circunstanciais entre os artistas, tudo terminou bem. O disco é uma obra-prima. E a sintonia da dupla no “é pau, é pedra, é o fim do caminho” (“Águas de Março”), que há 50 anos nos encanta (revivida na internet), torna-se acachapante na tela grande.

Tal sequência causa o mesmo frisson da câmera dirigida por Leon Hirszman serpenteando o corpo escultural de Gal Costa em “Bahia de Todos os Sambas” (Saraceni & Hirszman, 1983-1996), longa documental gravado em Roma (durante invasão musical dos ‘baihunos’ à capital peninsular).

Segue um bom conselho, que lhes dou de graça (citando o jobiniano Chico Buarque): não percam “Elis & Tom” na tela grande. Além de ouvir parte do que o Brasil gerou de melhor no campo da canção popular, você verá imagens muito bem captadas por Fernando Duarte, que nos deixou em janeiro deste ano. Não aquelas imagens desbotadas em VHS, que atormentam nossas retinas em muitos filmes. Até naqueles que reconstituem trajetórias de nossos artistas, por maiores que sejam. Por mais sucesso que tenham feito.

“Só Tinha de Ser com Você” é fruto de magníficas coincidências. Depois de vê-lo, quando chegar em casa, reveja “A Música Segundo Tom Jobim“, de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim (2012). Um encontro com estas duas joias raras, o fará esquecer (por alguns momentos pelo menos) de Bolsonaro e da gatunagem das joias, da fome de poder do Centrão, da brutalidade de quem depredou edificações de Niemeyer no oito de janeiro e da ignorância que campeia nas redes sociais.

Você poderá respirar fundo e acreditar que este país tem jeito. Quem, afinal, gerou música popular de tamanha qualidade não pode afundar-se em atoleiro que nos consome há uma década.

 

Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você
Brasil, 2022, 100 minutos
Direção: Roberto Oliveira (codireção: Jom Tob Azulay)
Fotografia: Fernando Duarte (EUA), João Wainer (Brasil)
Montagem: João Wainer
Produção: Rinoceronte Entretenimento
Distribuição: O2 Play

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.