“Atiraram no Pianista” pinta Rio de sonhos em ritmo de Bossa Nova e desenha tragédia de Tenório Jr.

Por Maria do Rosário Caetano

Em 1962, François Truffaut deu a ordem em seu ‘film noir’: “Atirem no Pianista”. Charles Aznavour interpretava o músico-personagem.

Seis décadas depois, o espanhol Fernando Trueba, fã de Truffaut, da Nouvelle Vague e da Bossa Nova brasileira, constatou – depois de intensa pesquisa – que realmente “Atiraram no Pianista”. No caso, o carioca Francisco Tenório Cerqueira Jr., de apenas 34 anos, talento dos maiores, torturado e assassinado em Buenos Aires, no dia 18 de março de 1976. Portanto, seis dias antes do triunfo do golpe militar que derrubou o governo Isabelita Perón.

O madrilenho Trueba, de 68 anos, uniu forças com seu amigo Javier Mariscal, 72, para realizar “Atiraram no Pianista” (estreia da próxima quinta-feira, 26 de outubro). Filme notável, obrigatório ao público brasileiro, que deve concorrer ao Oscar de melhor animação, assim como o trabalho anterior da dupla – “Chico y Rita”. Lembremos que, em 1993, Trueba conquistou, com “Belle Époque” (ou “Sedução”) o Oscar de melhor filme estrangeiro.

A apaixonante animação mariscal-truebiana pode concorrer até ao Oscar de melhor documentário, pois trata-se de investigação histórica sedimentada em fontes primárias e estudos (como o livro “Operação Condor”, de John Dinges). Há, inclusive, comovente registro (impresso em imagem e som) de Vinicius de Moraes, depositado nos arquivos da Rede Globo. Devastado, o letrista da Bossa Nova deplora o desaparecimento do amigo Tenório Jr., que excursionava com ele em temporada argentina.

Antes de seguirmos no desvelamento da tragédia que vitimou o inocente Tenório Jr, estudante de Medicina, depois músico profissional (abandonou o curso pelas teclas de seu piano), voltemos ao cinema. Às referências cinematográficas de Trueba & Mariscal.

Primeiro, temos que evocar filmes como “Valsa para Bashir” (Israel) e “Flee” (Dinamarca) festejados pelo Oscar. Como esses dois longas animados, “Atiraram no Pianista” optou pelos desenhos para melhor desenvolvimento de narrativa capaz de seduzir o público. Sua base é a documentação histórica, com algumas inserções ficcionais.

“Flee” concorreu duplamente ao Oscar (melhor longa internacional e melhor documentário). Nada impede que o filme espanhol emplaque vaga como melhor animação e melhor documentário.

O cinema é referenciado, diretamente, em mais dois momentos de “Atiraram no Pianista”: na ilustração do depoimento de Milton Nascimento, que viu “Jules et Jim” dezenas de vezes (Trueba e Mariscal recriaram trecho antológico do filme de Truffaut).

Num de seus momentos mais densos, a animação espanhola traz a presença do documentarista brasileiro Rogério Lima, diretor de “Balada para Tenório Jr.” e um dos três realizadores de “Tenório Jr.?”. Este último documentário registrou depoimento do delator argentino Cláudio Vallejos, que garantiu ter participado do sequestro do pianista brasileiro, confundido, por seu aspecto físico, com um militante de esquerda.

Militares e paramilitares (estes unidos na AAA – Aliança Anti-Comunista Argentina) – naqueles dias que precederam o golpe de Estado – sequestravam pessoas nas ruas e as levavam para locais assemelhados à ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada). Segundo Vallejos, oriundo da máquina repressiva argentina, Tenório foi torturado para entregar colegas. Não entregou (até porque não militava em organizações clandestinas) e seus sequestradores descobriram que ele era um brasileiro pego por engano. Mas, com a conivência dos militares verde-amarelos, unidos em todo continente americano pela Operação Condor, acharam melhor dar fim ao pianista de Vinicius de Moraes. “Pior”, concluíram, “seria libertá-lo e ele contar o que acontecera”.

Além de Rogério Lima, outro diretor brasileiro – Walter Lima Jr. (“Os Desafinados”, 2008) – levou a tragédia argentina de Tenório Jr. ao cinema. Só que recriada ficcionalmente. No filme, o músico Joaquim (Rodrigo Santoro) é casado com Luísa, mãe de seus filhos e grávida de 7 ou 8 meses. Ele vai com seu quarteto para NY e lá se apaixona pela estonteante e louríssima Glória (Cláudia Abreu). De regresso ao Brasil, ruma para Buenos Aires, onde o grupo se apresentará. Ao sair para comprar cigarros, remédio ou algum aditivo especial, advém a tragédia, similar à que vitimou Tenório Jr.

Nem “Os Desafinados” nem “ Atiraram no Pianista” são filmes de denúncia gráfica da tortura. De forma alguma. No filme de WLJr, a cena mais quente e empolgante mostra Glória tomando banho de espuma. Nua como se fosse uma sensual Brigitte Bardot brasileira, sinuosa em estratégica banheira postada no meio da sala de seu apartamento novaiorquino. Sob o olhar dos “desafinados”.

No filme de Trueba & Mariscal, o Rio de Janeiro é um paraíso na terra, libertário, criativo, com paisagens lindas e sedutoras. Vem o golpe de 64, seguido do arrocho de 1968. A revolução artística e de costumes é podada.  No tempo presente, um jornalista norte-americano, Jeff (voz de Jeff Goldblum), resolve investigar a história de Tenório Jr., o pianista assassinado. Um avião sobrevoa a Cidade Maravilhosa.

No Rio, Jeff contará com a ajuda de Manolo, dono de restaurantes, que sabe muito da Bossa Nova, e do informadíssimo jornalista João (voz de Tony Ramos). A pesquisa da dupla espanhola é espantosa, de causar inveja. Dão seu testemunho à animação (desenhos maravilhosos, inspirados na graphic novel de Marcelo Quintanilha) a viúva de Tenório, Carmen Cerqueira, e os filhos dos dois, já adultos. Fala, também, Malena Barreto, a namorada do pianista, que se mantivera por décadas em silêncio, para não ferir os familiares do músico. Afinal, ele deixara a esposa grávida no Brasil e levara a jovem e linda Malena para a temporada argentina.

Registre-se: o filme traça perfil matizado de Tenório, músico de grande talento, mas intempestivo, defensor intransigente de seus dons instrumentais, capaz de deixar uma gravação ou excursão no meio, se se sentisse contrariado. Humano, muito humano.

Além dos familiares, o filme vai ouvir a nata da Bossa Nova e da MPB (seja especialmente para o filme, seja com depoimentos de arquivo). Os Joões Gilberto e Donato, Paulo Moura, Vinicius, Toquinho, Manolo, Menescal e o “quarteto máximo da música brasileira” Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Milton Nascimento.

Trueba realiza, com entusiasmo, seu terceiro ato de amor sincero ao Brasil e à sua música: o primeiro se chama “Milagre do Candeal” (2004), e tem Carlinhos Brown e seu projeto de educação pela arte como mola propulsora. O segundo se materializou em álbum musical que ele produziu para a cantora Estrella Morente (“Amor em Paz”, 2015). Trata-se de declaração de amor a Villa-Lobos, Pixinguinha, Luiz Bonfá e outros nomes da Bossa Nova, somados aos soberanos da MPB. Agora chegou a vez de “Atiraram no Pianista”.

O Brasil também marcou presença em outro documentário de Trueba. Em 2000, ele sentou praça na Calle 54, em NY. Lá construiu vitrine para o brilho de craques latinos (cubanos, dominicanos e etc). E abriu espaço para delicioso diálogo entre o argentino Gato Barbieri (da trilha de “Último Tango em Paris”) e o baiano Glauber Rocha. Em “Calle 54”, os dois sul-americanos declaram incontido amor ao diretor de “Roma Cidade Aberta” declamando a frase histórica: “non se può vivere senza Rossellini”.

Nem “Milagre do Candeal”, nem “Calle 54”, nem o CD (“Amar em Paz”) de Estrella Morente (disponível no Spotify) alcançou a repercussão merecida no Brasil. Já “Atiraram no Pianista” tem tudo para bombar: distribuição da ‘major’ Sony Pictures, badalação crescente (abriu o Festival do Rio), cobertura de peso na mídia brasileira e a possibilidade de levar Trueba, pela segunda vez, a empalmar a cobiçada estatueta careca de Hollywood.

 

Atiraram no Pianista
Espanha, 2023, 103 minutos
Direção: Fernando Trueba e Javier Mariscal
Entrevistados: Manolo, o cineasta Rogério Lima, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Donato, João Gilberto, Paulo Moura, Toquinho, Carmen Cerqueira e filhos, Malena Barreto
Personagens fictícios: o jornalista brasileiro João (voz de Tony Ramos), o jornalista norte-americano Jeff (voz de Jeff Goldblum), a editora de Jeff (voz de Roberta Wallach)
Pesquisa de imagens: Antônio Venancio
Consulta para roteiro: John Dinges, autor do livro “Operação Condor”
Distribuição: Sony Pictures

 

TENÓRIO JR. NO CINEMA

. OS DESAFINADOS, de Walter Lima Jr (Brasil, 2008. Duração: 2h16’). Disponível no streaming e no Canal Brasil. Com Cláudia Abreu, Rodrigo Santoro, Alessandra Negrini, Angelo Paes Leme, Jairzinho, André Morais, Selton Mello. O filme conta a história do quarteto bossa-novista Os Desafinados, que vai trabalhar em NY. Eles são amigos do cineasta Dico (Selton), que realiza um filme político (“Bala Certeira”) e sofre ação da Censura. Em meados dos anos 1970, eles se apresentam em Buenos Aires. Um de seus integrantes (personagem inspirado livremente em Tenório Jr) sai do hotel, de madrugada, para comprar cigarros e é preso (e depois assassinado) pelos militares.

. BALADA PARA TENÓRIO, de Rogério Lima (Brasil, 1983, documentário, 21 minutos, 16 milímetros). Carmen Cerqueira, esposa do pianista Tenório Jr., testemunha que, passados seis anos do desaparecimento do marido em Buenos Aires, nada foi esclarecido.

. “TENÓRIO JR.?” – Documentário de Alberto Blaumstein, Renato Sacerdote e Rogério Lima. Sem data (supostamente 2013) e duração precisos.

 

LIVRO e GRAPHIC NOVEL

“O Crime Contra Tenório – Saga e Martírio de um Gênio do Piano Brasileiro”, de Frederico Mendonça de Oliveira (Atenas Editorial, 1997).

“Tenório Jr. – Atiram no Pianista”, graphic novel de Marcelo Quintanilha (lançado na Espanha)

 

FILMOGRAFIA

Javier Mariscal (Valência, Espanha, 09/02/1950)

. 2010 – “Chico & Rita”, com Trueba
. 2023 – “ Atiraram no Pianista”, com Trueba

Fernando Trueba (Madri, Espanha, 18/01/1955)

. 1980 – “Ópera Prima”
. 1982 – “Mientras el Cuerpo Aguante”
. 1983 – “Sal Gorda”
. 1985 – “Sé Infiel y no Mires com Quién”
. 1986 – “El Año de las Luces”
. 1989 – “El Sueño del Macaco Loco”
. 1992 – “Sedução” (Belle Époque)
. 1994 – “Two Mutch” (EUA)
. 1998 – “La Niña de tus Ojos”
. 2000 – “Calle 54” (EUA-Espanha)
. 2002 – “El Embrujo de Shangai”
. 2004 – “O Milagre do Candeal ” (Espanha- Brasil)
.2009 – “O Baile da Vitória”
. 2010 – “Chico & Rita”, com Mariscal
. 2012 – “O Artista e Sua Modelo”
. 2016 – “La Reina de España”
. 2023 – “Atiraram no Pianista”, com Mariscal

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