O mundo não foi feito em um dia: a Lei Paulo Gustavo e a indústria cultural
Foto: Paulo Schmidt © Reprodução rede social
Por Paulo Schmidt e William Diniz
Com o intuito de mitigar os impactos provocados pela pandemia no setor cultural, foi instituída a Lei Paulo Gustavo, promovendo um investimento significativo de aproximadamente 3,8 bilhões de reais, provenientes do Fundo Nacional de Cultura e de recursos federais. Essa verba já foi integralmente alocada para os Estados e Municípios, que realizaram convocações destinadas a produtores e agentes culturais em geral, abrangendo uma ampla gama de projetos.
Em São Paulo, o montante repassado se aproximou dos 730 milhões de reais, sendo distribuídos de forma a contemplar tanto o estado, com 356 milhões, quanto as cidades, com 373 milhões aproximadamente. O Estado de São Paulo lançou 24 editais com recortes variados para permitir que empresas de qualquer porte pudessem participar.
Na quarta-feira (25/10), a Justiça Federal determinou a suspensão dos editais no Estado de São Paulo. Uma audiência de conciliação está marcada para hoje, 6 de novembro. As críticas pontuadas convergem para questões amplamente debatidas no campo, como a necessidade de políticas que favoreçam a descentralização de recursos, a distribuição proporcional dos valores para além das grandes empresas, critérios de avaliação mais brandos para proponentes menores e a implementação de cotas para direcionar parte do montante para proponentes estabelecidos nas cidades do interior.
Ainda que os pontos trazidos sejam de extrema relevância na consideração de um cenário mais inclusivo e abrangente, se faz necessária a construção de um olhar crítico que avalie não somente essas demandas, como os impactos efetivos que elas podem gerar no contexto em que o mercado se encontra atualmente.
Na elaboração da lei, em particular nos editais do Estado de São Paulo, foram incluídos todos os pontos apresentados no âmbito da Justiça Federal, políticas afirmativas foram consideradas através de cotas direcionadas para pessoas negras, indígenas, indivíduos trans, mulheres e PCD (pessoas com deficiência).
Para além do que estabelece a Paulo Gustavo, o Estado reservou 50% dos recursos disponibilizados para projetos que apresentaram no mínimo 70% de suas filmagens fora da capital, estimulando com isto a geração de rendas e empregos, proporcionando um verdadeiro intercâmbio profissional, entre cidades, sem qualquer segregação de participação de proponentes estabelecidos no Estado, porém privilegiando a qualidade artística e a capacidade de gestão do projeto apresentado.
Estas medidas surgem como fruto de um trabalho árduo direcionado a fomentar uma distribuição mais equitativa destes recursos, demonstrando uma mentalidade progressista que não tolera passivamente as disparidades, portanto se apresentou como uma estratégia bastante meritória.
Entretanto, as políticas de cotas, sejam da diversidade ou da realização fora da capital, acabaram, em muitos casos, por distorcer parcialmente a premissa da meritocracia e a intenção da lei em minimizar e mitigar um pouco os efeitos danosos a que foram submetidas às empresas produtoras de cultura durante a pandemia. É inevitável quando se tem cotas definidas, sem que se estabeleça um recorte de pontuação, que muitos projetos com notas excelentes sob o ponto de vista artístico e de gestão não sejam selecionados, enquanto outros com pontuações até muito baixas acabem sendo aprovados. Fazendo uma reflexão sobre o tema, nos parece que estabelecer uma nota mínima para classificação seria uma forma de abarcar a intenção de democratizar os investimentos e tratar a competição de forma igualitária.
No cerne dessas indagações, uma notável preocupação relacionada ao valor médio dos projetos quando comparado à legislação anterior, na Lei Aldir Blanc. Enquanto esta última mantinha uma média de orçamento em torno de 37 mil reais, a Lei Paulo Gustavo estabelece um valor médio de aproximadamente 400 mil reais por projeto. Embora seja verdade que uma maior pulverização desses recursos entre um maior número de obras possa ampliar as oportunidades para diversas empresas, é válido questionar se faz sentido reduzir o investimento nas produções, especialmente diante do cenário atual e da necessidade de competitividade em âmbito nacional e internacional na indústria audiovisual.
Um horizonte satisfatório, ao qual devemos aspirar, deve levar em consideração essa necessidade. Os editais do Estado de São Paulo seguiram o principal objetivo da Lei Paulo Gustavo, criando calhas de investimentos para todos os níveis de proponentes, porém teve a responsabilidade de primar pela boa aplicação dos recursos públicos, quando propôs linhas que integralizam investimentos suficientes para a realização e entrega do objeto premiado, seja ele um curta, um longa, uma série ou um espetáculo cultural. Portanto, o proponente também precisa ter responsabilidade e entender o seu grau de maturidade e diante disto, escolher a linha que melhor atende o seu desejo e esteja adequado à sua capacidade de produzir e entregar.
Não é surpreendente constatar que grandes produtoras têm um histórico notável de impulsionar projetos de alto valor agregado, inclusive com desempenho significativo no mercado nacional e internacional. Esse know-how tem o potencial de garantir as filmagens em cidades do interior, assegurando ao mesmo tempo o lançamento dos projetos e exibição ao público. No entanto, é importante destacar, repita-se, que os editais do Estado, além de estabelecerem 24 modalidades de perfis e tamanhos diferentes de linhas, delimitaram a quantidade de projetos por proponentes, seja na inscrição ou na seleção.
A despeito de toda a inconformidade que nos gera o capitalismo e das problemáticas que revolvem a aplicabilidade do conceito de “mérito”, precisamos reconhecer a potência das trajetórias construídas pelas produtoras de maior destaque que já se provaram em relação à capacidade de exequibilidade e de entendimento de público.
O fortalecimento de empresas que já construíram credibilidade e demonstraram previamente uma grande capacidade de gerenciamento de projetos de alta complexidade é fundamental para assegurarmos o crescimento da indústria criativa, assim como para a capacitação e surgimento de novas empresas que possam ocupar os espaços que serão deixados por elas, no decorrer das suas escaladas de desenvolvimento e conquista de mercado, quiçá com menos dependência de recursos públicos, mas jamais sem políticas públicas que possam dar mais robustez às empresas do setor.
A pandemia não só aproximou as majors e plataformas de vídeo sob demanda do nosso conteúdo, como as dispôs em uma casa no outro lado da rua. São participes no desenvolvimento do setor e ainda que provedoras de um espaço do qual podemos nos beneficiar dentro de escusas circunstâncias, também ocupam a posição de concorrência brutal no mercado. É preciso estar à altura para construir um cenário onde consigamos ser efetivamente referência na ocupação das telas, das salas de cinema, na radiodifusão, nas tvs por assinatura e principalmente nas plataformas de streaming.
O papel do Estado brasileiro e dos recursos públicos é fundamental para que novas conquistas sejam atingidas e que possamos seguir exemplos tão bem sucedidos como o da Coreia. Temos a oportunidade de seguirmos fortes na consolidação de uma indústria cultural mais inclusiva, mais plural e mais competitiva, mas acima de tudo que tenha como propósito ajudar o Brasil a priorizar e direcionar a sua matriz econômica para às indústrias criativas.
Neste momento, inúmeros produtores com projetos já classificados aguardam a decisão da Justiça Federal, com a esperança de concretizar um objetivo de extrema relevância para todos – levar a cultura brasileira às telas em todo o país e além das fronteiras.
É imprescindível que prossigamos com os editais já em andamento, mantendo um olhar otimista em direção ao futuro, confiantes de que a conjunção de um governo que presa pela cultura e um mercado competitivo é um sinal de que, no alvorecer do cinema e do audiovisual, continuaremos conquistando e emocionando o público, em especial o brasileiro.