Álvaro Campos e Nós do Morro buscam um “Mundo Novo” no Quilombo do Leblon

Por Maria do Rosário Caetano

Os cineastas Jorge Furtado e Alfredo Manevy, este ex-diretor e fundador da Spcine, empresa audiovisual paulistana, têm lembrado que o cinema brasileiro deve produzir, neste ano em curso e em 2025, mais de 700 longas-metragens ficcionais e documentais.

Tal constatação leva a dupla a se perguntar: onde serão exibidas essas sete centenas de filmes, se a faixa destinada à produção nacional, nas últimas décadas, só ultrapassou os 20% de nosso market share em 2003, portanto, há mais de 20 anos? Para complicar, as TVs e plataformas de streaming também dedicam reduzido espaço aos filmes brasileiros.

Furtado e Manevy não estão criticando o número de filmes produzidos, mas sim, trazendo ao debate público, discussão fundamental – faz sentido apostar todas as fichas na produção, sem que haja preocupação com o restante da cadeia cinematográfica (distribuição e exibição)?

Tais reflexões ganham relevo no momento em que vemos centenas de filmes aguardando sua hora e vez nas telas dos cinemas, TVs e streaming. E, também, quando nos deparamos com uma nova produção – entre as que conseguem distribuidor e um horário (ou dois) no circuito de arte e ensaio – ser ofertada ao público sem que este seja devidamente informado (via publicidade ou cobertura da mídia).

Caso emblemático é o de “Mundo Novo”, longa ficcional que marca a estreia de Álvaro Campos, de 40 anos, em espaços paulistanos e soteropolitanos. A distribuidora O2 Play, mantida por Fernando Meirelles, deve colocar o filme em cinemas de outras capitais brasileiras, ao longo das próximas semanas.

Há que se registrar que o longa-metragem de Álvaro tem muitas qualidades. A começar por sua temática, das mais oportunas (casamento inter-racial), por seu roteiro bem urdido, pelo tratamento técnico (boa fotografia, som, trilha sonora instigante) e por seu elenco, que traz imenso frescor às nossas telas (todos os atores foram selecionados pela dupla Luciana Bezerra e Gustavo Melo, que nessa quinta-feira, coloca nos cinemas a ficção “A Festa de Léo”, produção do Nós do Morro).

“Mundo Novo” ousa, também, no campo da produção, realmente criativa e independente. Foram consumidos menos de cem mil reais em sua realização. Esta quantia só se tornou possível graças às locações concentradas e à economia de guerra gestada pelo produtor Diogo Magalhães Dahl Pereira dos Santos. Um filho do cinema, como mostram suas origens e assinaturas.

A trama se desenvolve quase inteira num belo casarão no Morro do Vidigal, onde o casal homoafetivo Charles e Carlos recebe, para jantar, o mano (de Charles) Marcelo (cujo nome artístico-grafiteiro é Presto) e sua namorada, Conceição, a Cons. Os anfitriões contam com o auxílio doméstico da diligente Kelly (Melissa Arievo), dona de voz maviosa.

Os visitantes desejam que o irmão, e futuro cunhado de Cons, Charles, atuante no mercado financeiro, seja avalista de apartamento em fase de negociação. A compra será feita por Conceição, advogada afro-brasileira (especializada em causas marítimas), mulher madura e decidida, e Presto, jovem branco e sem emprego fixo (vive de encomendas no terreno da grafitagem). A parte do jovem artista na grana vem de herança paterna (aplicada pelo irmão no mercado financeiro).

Charles e o livreiro Carlos, em plena pandemia, recebem Cons e Presto com vistoso buquê de camélias brancas. O arranjo floral não resulta de escolha gratuita. Afinal, terá presença metafórica posta em relevo pela letra da canção “As Camélias do Quilombo do Leblon”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que será ouvida no fecho da narrativa.

O apartamento que Cons e Presto estão comprando situa-se no Leblon, um dos bairros mais caros do Rio, habitado pela elite branca e endinheirada. Como evocam os versos de Caetano e Gil, nos tempos em que o Brasil vivia do trabalho não-remunerado de escravizados, houvera ali, um quilombo, o Quilombo do Leblon. Nele viviam os que haviam rompido as amarras da escravidão. E, ali, abolicionistas se reuniam, enfeitando suas lapelas com uma camélia branca, símbolo da luta anti-escravagista.

Antes da chegada de mais duas personagens – irmãs de Conceição – para o jantar, o clima ficará tenso. Carlos bebe muito. Charles não acredita que o irmão, de apenas 23 anos, vá se casar com uma mulher (ele nunca cita a cor da pele dela) “bem mais velha que ele”. Enquanto se aguarda a ceia, Cons e Presto vão dar um passeio pelo Morro. Tomam duas mototaxis, em sequência externa de grande vivacidade. Depois vão conversar no Mirante do Arvrão (assim chamado por causa de frondosa árvore). De lá, miram a beleza atlântica da Zona Sul carioca.

Quando Chinara (Leandra Miranda) e Keyla (Priscila Marinho) chegam, a trama ganha humor e tom cáustico. O humor, claro, fica por conta de Keyla, que escande diálogos ferinos. As estocadas são de responsabilidade de Chinara, professora universitária, irônica e provocadora. Com apenas sete personagens, Álvaro Campos, que assina o roteiro (recheado de colaborações dos atores), constrói um filme leve na aparência, mas capaz de revelar alguns dos esteios do racismo estrutural brasileiro.

“Mundo Novo” constitui, pois, instigante estreia de Álvaro, que agora soma à sua atividade como roteirista, a condição de diretor em quem se deve prestar atenção. Ex-aluno da Escola Internacional de Cinema de San Antonio de los Baños, nos arredores de Havana, ele vinha dedicando-se a escrever séries e roteiros para terceiros. Para as plataformas de streaming, escreveu “Anderson Spider Silva” (2023), sobre o brasileiro campeão do MMA, “Senna”, para Netflix (protagonizado por Gabriel Leone, com estreia prevista para o segundo semestre), e foi head writer de “Jogo Cruzado” (programado para 2025 no Disney+/Star+). Este sobre os bastidores de um programa esportivo de TV.

Para cinema, Álvaro escreveu o roteiro de “Evidências de Amor”, comédia romântica protagonizada por Fábio Porchat e Sandy Leah, direção de Pedro Antônio Paes, que levou 300 mil espectadores aos cinemas, e “Altas Expectativas”, livremente inspirado na biografia do humorista Leonardo Reis (o Gigante Léo), que, em pessoa, protagonizou o filme ao lado de Camila Márdila. Neste longa-metragem, Álvaro dividiu a direção com Pedro Antônio.

“Mundo Novo”, fruto de coprodução que uniu o Nós do Morro, a Video Filmes, a 2 Moleques e a Coqueirão, é, portanto, a estreia solo do cineasta. Depois de ter sua première na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021, o filme participou da principal competição do Festival do Rio, naqueles tempos complicados da Gestão Crivela. Foi uma edição realmente difícil, que aconteceu em plena pandemia (em formato digital) e fora da data histórica do evento carioca. O filme recebeu dois troféus Redentor – melhor atriz (a protagonista Tati Villela) e melhor roteiro.

Álvaro contou, à Revista de CINEMA, de onde vem sua relação com o Nós do Morro: “eu tinha retornado havia dois anos, da EICTV (Escola de San Antonio de los Baños). Naquele momento, ficou claro pra mim que fazer um cinema estritamente do ponto-de-vista da classe média alta, no Brasil, não fazia o menor sentido. Eu ja tinha o sonho de trabalhar com o Nós do Morro, influenciado por atividades anteriores da (cineasta e teledramaturga) Rosanne Svartman e do (ator) João Velho, e quando o Diogo (Dahl) me pediu um projeto para o Nós, não hesitei. E fui incrivelmente bem recebido”.

Sobre o papel da Escola Internacional de Cinema de San Antonio de Los Baños, Álvaro lembra que estudou lá seis anos atrás (em 2018). “Construí relações para a vida inteira. Estudando direção, pude fazer a transição, com segurança, da função de roteirista para diretor, uma vez que precisei, no curso, exercer todas as funções de um set”. E mais: “ficaram enraizados em mim os processos colaborativos de criação, e dali em diante nunca mais pensei o cinema em etapas estanques: roteiro, pré, ensaio, decupagem… Tudo é uma coisa só, que vai se transformando a cada novo momento de construção”.

O cineasta-roteirista já tem projeto de novo longa-metragem encaminhado. Ele adianta estar na fase de “levantamento de recursos para contar a história de uma mãe PcD (pessoa com deficiência) numa vila de pescadores na periferia da Ilha de Marajó, no Pará”. E adianta seu desejo de escalar “atores locais e a própria comunidade na produção”, seguindo “com o mesmo espírito colaborativo que vivenciei com o Nós do Morro”.

 

Mundo Novo
Brasil, 2021-2024, 88 minutos
Direção e roteiro: Álvaro Campos
Elenco: Tati Villela (Conceição), Nino Batista (Marcelo, o Presto), Kadu Garcia (Charles), Paul Giannini (Carlos), Melissa Arievo (Kelly), Leandra Miranda (Chinara), Keyla (Priscila Marinho)
Fotografia: Rita Albano
Montagem: Rodrigo Sellos
Trilha sonora: Ronald Rios
Produção: Diogo Dahl (Coqueirão, 2Moleques e coprodução do Nós do Morro e Videofilmes)
Distribuição: O2 Play

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