Olhar de Cinema faz brilhar “O Sol das Mariposas” e outro Mário de Andrade
Foto: “O Sol das Mariposas”, de Fábio Allon
Por Maria do Rosário Caetano
Nesta quarta-feira, 19 de junho, a décima-terceira edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba fará a entrega do Troféu Olhar aos melhores longas e curtas-metragens de suas competições brasileira e internacional. Serão atribuídos oito prêmios à produção nacional, somados à escolha do júri popular.
Para a boa safra de filmes estrangeiros serão atribuídos apenas dois prêmios (pelo júri oficial) e um pelo júri popular. O festival curitibano, por sorte, não é devoto da reforma agrária de troféus, prática recorrente em festivais brasileiros.
A menina dos olhos do Olhar curitibano tornou-se, nos últimos anos, a produção brasileira. E, nessa edição, o estado anfitrião marca presença com forte concorrente — o longa-metragem “O Sol das Mariposas”, de Fábio Allon. Em pelo menos duas categorias, ele larga com favoritismo — melhor atriz e roteiro.
“O Sol das Mariposas” marca a promissora estreia solo do arquiteto e professor da Unespar (Universidade Estadual do Paraná) Fábio Allon no longa-metragem. Ele escreveu o roteiro de seu denso drama rural em parceria com Cláudia Lopes Borio. Juntos, escolheram as terras vermelhas de Londrina, Guaravera e Cambé, no norte pioneiro do Paraná, como cenário.
Os personagens, nucleados em torno de Marta (Anidria Stadler), dona de pequena fazenda cafeeira, vivem momento de grande tensão. A dupla de roteiristas construiu sua trama, de pegada intimista, desenhando-a sobre pano de fundo histórico, marcado por aguda crise econômica.
Em meados da década de 1970, sucessivas geadas tiravam do estado sulista a condição de maior produtor de café do país. Donos de grandes ou pequenas plantações eram incentivados a queimar seus cafezais e substituí-los por outras lavouras. Marta, a obstinada proprietária da fazendinha vocacionada ao cultivo de cafezais, enfrenta como pode o doloroso processo de empobrecimento e mal consegue pagar despesas de custeio, quem dirá fazer novos (e necessários) investimentos.
Para agravar a situação da sitiante, ela foi abandonada, dois anos antes, pelo marido, que desapareceu sem enviar notícias de seu paradeiro. Teimosa, ela se nega a aceitar a receita de representante agrícola do governo, a da substituição de cultivo. Marta tenta sobreviver em suas terras vermelhas, ao lado de poucos empregados. E de uma amiga, Juliana.
Com diálogos enxutos e aposta na imagem (ótima fotografia de André Senna), o filme oferece, além da originalidade de sua ambientação (paisagem pouquíssimo vista em nosso cinema), ângulo inesperado em sua tessitura amorosa. Quem se acostumou aos dramas rurais dominados por homens rudes e corajosos, verá que quatro mulheres (e seus destinos) estão no centro da narrativa. Entre duas delas brotará relação homoafetiva.
Tudo se dará de forma orgânica e com a complexidade merecida. Homens, de moral conservadora e pautados pela religião, reagirão de forma brutal àquela forma de amar. Mesmo assim, estes personagens, pai e sobrinho em especial, serão vistos por outras faces que os livrarão da estereotipia. O sobrinho executará, no acordeon, a bela “Cafezal em Flor”, de Luiz Carlos Paraná (1932-1970), para enlevo do velho tio. Que, antes, mostrara solidariedade com a dona do sítio, dispondo-se a enfrentar, por casa e comida, o momento de extrema dificuldade que ela atravessa. Já idoso, com bíblicas barbas brancas, o empregado irá ponderar: onde encontrarei emprego nessa altura da minha vida?
As mulheres se destacarão no reduzido número de sete personagens que compõem “O Sol das Mariposas”: Marta, Juliana, Thaís e sua filha pequena. No debate pós-estreia das “Mariposas” deduzidas pela luz, espectadora revelou-se intrigada com embalagem de vidro recheada de pregos enferrujados presente na ambientação da casa. Teriam tais pregos a ver com o tétano que vítimou uma égua da fazenda?
O longa do estreante Fábio Allon não fornece respostas prontas. Vide o desfecho em aberto escolhido para encerrar esse drama sútil construído sobre a terra roxa do Paraná.
A competição de longas estrangeiros aponta dois caminhos ao júri internacional. Um, mais apegado ao cinema narrativo, traz pequena joia entre os concorrentes: o sueco (na verdade georgiano, filmado em Istambul, na Turquia) “Caminhos Cruzados”, de Levan Akin. O sensível melodrama seduziu o público com ternura e humor, ao mostrar tia (a excelente e veterana Mzia Arabuli), professora de História aposentada, que procura sobrinha transsexual, ao lado de adolescente inquieto e sem rumo (Lukas Kankava).
A outra opção poderá tomar o rumo dos filmes de risco. Ou pesquisa de linguagem. Nesse caso, dois títulos se destacam: o dominicano “Pepe”, de Nelson de Los Santos Arias, e o moçambicano “As Noites Ainda Cheiram a Pólvora”, de Inadelso Cossa. Este filme, denso e noturno, mergulha nas dolorosas lembranças de quem viveu a guerra civil em Moçambique, país africano colonizado por Portugal.
“Pepe” é uma prolixa, excêntrica e barulhenta fantasia cinematográfica, urdida pelo jovem oriundo da caribenha República Dominicana. Por sua inquietação, paroxística em muitos momentos, “Pepe” rendeu a seu realizador o Urso de Prata de “melhor direção” no último Festival de Berlim.
E quem é Pepe?
A resposta é simples: ele é o narrador poliglota do filme, um hipopótamo, xará do narco-traficante Pepe Escobar, seu provável (e futuro) proprietário. Tudo começa na Namíbia africana. Em sua juventude, Pepe entra em cena e se expressa em metálico africâner. Será transportado à América do Sul, Colômbia, justo para as águas caudalosas do Rio Magdalena, que povoou o imaginário mágico de Gabriel García Marquez. O bicho, de conformação pré-histórica, vai tirar o sono dos ribeirinhos magdalenenses. Até encontrar pela frente um caçador alemão.
“Pepe”, o filme, tem bons momentos, em especial, aqueles protagonizados pelos camponeses colombianos, que vivem em torno do Rio Magdalena. Seu diretor, também artista plástico, é muito criativo. Mas abusa de recursos tecnológicos e de som ensurdecedor. E, convenhamos, poderia ter reduzida os 122 minutos da saga de “Pepe”, bicho de cinco toneladas, a menos de 90 minutos. Perderia em pirotecnia e ganharia em consistência.
Falta, ao público curitibano, assistir ao sexto concorrente da competição internacional — o germânico “Ivo”, de Eva Tronisch. Mas, derramando simpatia e bom-humor pelos corredores dos dois cinemas do festival (o Passeio e o Cinemark Mueller), Nelson de Los Santos deve subir ao palco para empalmar um Troféu Olhar.
Uma das grandes surpresas das seis mostras informativas do Festival Internacional de Curitiba uniu o diretor norte-americano Billy Woodberry, do movimento L.A. Rebellion, a produtores portugueses e franceses. E, por coincidência, revelou que há dois Mários na programação do Olhar de Cinema.
Um, “O Turista Aprendiz”, do brasileiro Murilo Salles, recria viagem de nosso escritor modernista pela Amazônia. O outro é um documentário de arquivo, de denso conteúdo político e nome sintético: “Mário”.
Ao longo de envolventes (e céleres!) 120 minutos, Woodberry revisita a história do angolano Mário Pinto de Andrade (1928-1990), intelectual, poeta e ativista político. Ele, um dos fundadores do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), foi companheiro da cineasta Sarah Maldoror (1929-2020), francesa, filha de pai guadalupe-caribenho. Duas filhas do casal dão ótimos testemunhos sobre a agitada trajetória dos pais a Billy Woodberry.
Em pouco mais de 60 anos de vida, o Mário africano viveu existência das mais apaixonantes. Sua militância anticolonial é evocada em narrativa clássica, que imanta nossa atenção pela força das imagens, desencavadas em poderosos arquivos africanos, franceses, portugueses, cubanos, soviéticos e italianos.
Mário Pinto de Andrade conviveu com os maiores nomes das lutas anticoloniais do século passado. Por causa da profissão de sua esposa-cineasta — Sarah Maldoror, colega do senegalês Ousmane Sembene na Escola de Cinema de Moscou —, o ativista angolano conviveu com Gillo Pontecorvo (Sarah atuou na equipe de “A Batalha de Argel”), Chris Marker e, claro, com Sembebe, o pai do cinema africano e diretor do clássico “La Noire…” (1966).
Mário conviveu, também, com Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Agostinho Neto, Patrice Lumumba, Eduardo Mondlane, Nelson Mandela, Che Guevara, sem esquecer o irmão, Joaquim Pinto de Andrade e lideranças argelinas, vietnamitas, cubanas, soviéticas e portuguesas (caso de Álvaro Cunhal).
Um filme que mostra os caminhos da luta pela emancipação de nações africanas, em tempos nos quais o marxismo se apresentava — movido pelo conceito da “luta de classes” — como teoria motivadora. Curioso notar que o Brasil, com população de 52% de pardos e negros, é uma grande (imensa!) ausência no “Mário” africano.