“Hachiko para Sempre” chega em versão chinesa para cortar o coração de cinéfilos-cinófilos

Por Maria do Rosário Caetano

Na origem do japonês “Hachiko para Sempre”, transformado em matriz de filme chinês de mesmo nome – estreia dessa quinta-feira, 18 de julho, nos cinemas brasileiros – está um dos maiores nomes da história do cinema nipônico, Kaneto Shindô (1912-2012), diretor de “Ilha Nua”, “Onibaba, a Mulher Diabo” e “Os Filhos de Hiroshima”.

Só para lembrar, quando morreu, um mês depois de completar cem anos, Kaneto Shindô tinha escrito 231 roteiros para realizadores canônicos como Mizoguchi, Ichikawa e Yoshimura. E dirigido 49 filmes. Pois no comovente “Hachiko Monogatari”, ele exerceu o ofício de argumentista e roteirista.

O longa-metragem, que encantou o público japonês, foi dirigido por Seijirô Kôyama. Como homem ligado a ideais socialistas, Shindô retirou do fundo da memória história humanista que marcara sua infância. Ele estava no grupo escolar, quando tomou conhecimento (ele e todos os seus contemporâneos japoneses) da história real de professor que ganhara um cãozinho, mas sua esposa não queria saber de animais dentro de casa. Tornou-se, porém, tão profunda a relação entre o mestre e Hachiko, o cão, que revés familiar (o desaparecimento do professor), serviria para mostrar até onde ia (vai) a fidelidade canina.

O animal passou a postar-se, todos os dias, em frente à estação da estrada-de-ferro onde seu dono desembarcava. Foram tantos os anos de espera, mas tantos, sob sol ou chuva, que ele envelheceu e morreu. Os japoneses, comovidos com aquela paroxística prova de amor, dedicaram ao cão uma estátua. E, em 1987, história tão comovente seria lembrada, passadas quase sete décadas, pelo longa-metragem idealizado por Kaneto Shindô e Seijirô Kôyama.

Além da relação de amizade entre o homem e o animal, o roteiro nipônico destacou as relações, muitas vezes frias (ou mesquinhas) da gente que circundava o generoso e sensível professor. Então, além do melodrama, base da história, o filme japonês, que dura 107 minutos, trazia (traz) pegada social, como era comum aos roteiros (e filmes) de Shindô.

O cão sempre foi tido como o melhor amigo do homem. E o cinema, em especial o de Hollywood, sempre soube disso. Tanto que os norte-americanos produziram a mais conhecida das versões de “Hachiko” – o melodramático “Sempre ao seu Lado”, protagonizado por Richard Gere, posto na pele do professor que estabelecia tão profunda relação com seu cão. E este lhe será fiel até seu último latido. Até a morte.

Lançado em 2009, o filme estadunidense, que teve na direção Lars Hallströn (o sueco de “Minha Vida de Cachorro”), alcançou significativo sucesso. E resultado sintético (93 minutos). O filme chinês que a Paris Filmes lança nesta quinta-feira (aproveitando o nome japonês para o cão chinês — Hachiko, ao invés do Batong original), dura duas horas. Mas a narrativa flui como as águas de um rio. Desliza.

O longa de Ang Xu é bastante fiel à história contada pelo roteiro de Kaneto Shindô. E traz, também, algumas pinceladas sociais. Tudo, porém, é aclimatado à história e à realidade chinesa (mas sem nenhuma referência ao comunismo-capitalismo da China atual). O país de Zhang Yimou, Chang Kaige e Jia Zhang-Ke está investindo pesado em filmes comerciais, capazes de ombrear-se (ou superar), pelo menos na Ásia, os blockbusters hollywoodianos.

No filme japonês, o professor recebia o filhote da raça Akita como presente e usava um trem-de-ferro para dirigir-se ao trabalho. O professor chinês utiliza-se de um teleférico, elo de ligação entre a região onde está sua casa e a escola. Ou seja, cruza, pelos ares, o Rio Yang-tsé. Quando a narrativa começa, vemos uma China que se moderniza de forma avassaladora. Casas caem para dar lugar a imensos arranha-céus. E o teleférico, saberemos, teve sua função primordial – cruzar o rio – substituída por pontes moderníssimas. Só não foi destruído, já que tornado obsoleto, porque os turistas faziam questão de usá-lo para apreciar a paisagem, vista do alto, e não de uma agitada megaestrada.

Do tempo presente, Ang Xu nos transporta para década e meia atrás, quando o professor vai, com colegas de ofício, a um encontro científico. No caminho, quase atropelam um cãozinho. Ao retirá-lo do “esconderijo” (entre as rodas de van que conduz o grupo), o professor é instado a procurar o vilarejo de onde, decerto, provinha o animal. Tinha que devolvê-lo ao verdadeiro dono.

O mestre bem que tenta. Mas nada sobrou do vilarejo. Nenhum habitante. Só escombros. O jeito é procurar alguém interessado em adotar o filhote, mais fofo impossível, já que ele não poderá fazê-lo. Afinal, ao casar-se, comprometera-se com a esposa a não colocar animais no ambiente doméstico. Todas as tentativas, porém, serão vãs. Ninguém quer o lindo cãozinho. O jeito é escondê-lo em casa. Quando a mulher descobre a presença do filhote bagunceiro, dá-se o desentendimento. Investe-se, então, em nova busca de pessoas dispostas a adotar Batong (ou Hachiko). Mas nessas alturas, o professor já está profundamente apegado ao animalzinho. Aí o núcleo duro da trama engrena.

Quando as duas horas da narrativa chinesa terminam, os espectadores, mesmo os de coração de pedra, estarão em lágrimas, pois totalmente apaixonados por Hachiko. Quem chama seu cãozinho de “filho”, então, estará banhado por lágrimas tão caudalosas quanto as águas do Rio Yan-tsé.

Os chineses preservaram algumas das observações sociais de Shindô, mas não tiverem nenhum pudor em mergulhar no melodrama. E apelar para final onírico e reconfortador. No filme japonês, o mundo dos sonhos chegava com os protagonistas em meio a cerejeiras em flor. No chinês, o teleférico, tão importante na trama, os conduzirá aos céus, recheados de nuvens fofas. Com os olhos encharcados de lágrimas, nada melhor que um consolo celeste. A China aprendeu todos os macetes do cinema comercial de Hollywood.

 

Hachiko para Sempre | Hachiko
China, 2023, 120 minutos
Direção: Ang Xu
Elenco: Jugang Ba, Joan Chen, Xiaogang Feng
Roteiro: Ang Xu (a partir do roteiro de “Hachiko Monogatari”, de Kaneto Shindô)
Distribuição: Paris Filmes

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