Delegação potiguar lota o palco de Gramado ao apresentar “Filhos do Mangue” em noite que exibiu o fantasmagórico “Cidade; Campo”

Foto: Equipe do longa “Filhos do Mangue” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

O Festival de Cinema de Gramado assistiu, na noite de quarta-feira, a mais dois filmes de sua competição principal (a de longas ficcionais), bem diferente um do outro.

O primeiro “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas, feito com extremo rigor estético, passou pelo Festival de Berlim. O segundo, “Filhos do Mangue”, de Eliane Caffé, deslocou sua diretora, paulistana, até o litoral do Rio Grande do Norte, para construir narrativa fincada no improviso.

Na trama potiguar, quatro atores profissionais (Felipe Camargo, Titina Medeiros, Roney Villela e Thiago Justino) contracenam com habitantes de Barra do Cunhaú, nucleados em vila de pescadores e na comunidade (indígena) do povo Catu.

Quase duas dezenas de moradores do vilarejo do Rio Grande Norte vieram ao Rio Grande do Sul (distância de quase 4 mil km) para subir ao palco do Palácio dos Festivais junto com Eliane Caffé.

Os potiguares, com suas roupas coloridas, somaram-se a Felipe Camargo, hoje com 64 anos, à conterrânea Titina Medeiros, do grupo teatral Clowns de Shakespeare, e a Roney Villela.

A apresentação foi demorada, pois a cineasta fez questão de dar voz a muitas representações do grupo — uma atriz social portadora de autismo (e vítima de assédio), outra, transexual, sem esquecer os porta-vozes da cooperativa de pescadores de Barra do Cunhaú. Usaram da palavra, também, integrantes da equipe técnica e artística e dois produtores (Fernando Muniz e Beto Rodrigues).

Os atores sociais (pescadores ou pescadoras, e descendentes do povo Catu) se mobilizaram até conseguir doações da Prefeitura Municipal (e de redes de amigos) para defenderem “Filhos do Mangue” na poderosa vitrine de Gramado. Por isso, quase 30 pessoas subiram ao palco do Palácio dos Festivais.

A equipe de “Cidade; Campo” foi (se comparada com a de “Filhos do Mangue”) compacta e objetiva. Só a produtora Sara Silveira, gaúcha radicada em São Paulo, excedeu-se em seu discurso. Narrou a saga da realização do filme, feito em locações na metrópole paulistana (Cidade) e em fazenda de Dourados, no Mato Grosso do Sul (Campo). Evocou o prêmio conquistado em Berlim (melhor direção na mostra Encounters, recorte para títulos experimentais) e lembrou a alegria de ver o Festival de Gramado acontecer, apesar de todas as adversidades, advindas da tragédia das enchentes.

Juliana Rojas, que se fez acompanhar das atrizes Fernanda Vianna, Bruna Linzmeyer e Mirella Façanha (todas muito bem-vestidas) e de integrantes de sua equipe técnica, foi concisa e elegante em suas colocações. Defendeu políticas públicas de apoio ao audiovisual brasileiro e lembrou que participara do Festival de Gramado com “Sinfonia da Necrópole” e outros longas-metragens do coletivo Filmes do Caixote.

No debate dos dois filmes, na manhã dessa quinta-feira, 15 de agosto, a cineasta paulistana pôde ater-se a questões de linguagem, já que a maioria das perguntas se processaram no campo estético. Coisa rara em tempos de identitarismo, força motora das discussões contemporâneas.

Quem conhece os curtas e longas-metragens de Juliana Rojas sabe que seus filmes tratam de questões sociais (em especial, o mundo do trabalho), mas por caminhos que fogem do costumeiro e previsível. Em todos eles há elementos oníricos ou fantasmagóricos.

Em “Cidade; Campo”, filme composto de duas partes, vemos Joana (Fernanda Vianna, do grupo Galpão) deixar sua cidade natal, em MG, depois da tragédia de Brumadinho. Ela perdeu tudo. Parentes, casa, animais, plantação. O jeito é buscar na metrópole paulistana, onde vive sua irmã (com Gordo, o neto pré-adolescente), condições para um novo recomeço. Em São Paulo, Joana vai trabalhar como faxineira na Diarex, locadora de mão-de-obra doméstica. E, nos momentos íntimos (ou mesma na labuta diária), ela será visitada por imagens do passado. O clima fantasmagórico se processa de maneira discreta e delicada.

A própria Juliana Rojas, que citou duas fontes criativas com as quais mantém diálogo permanente — o francês Robert Bresson e o alemão Bertoldt Brecht — garantiu usar a fantasmagoria (o horror) não para provocar sustos. Mas, sim, buscar (revelar) dimensões espirituais de seus personagens.

“Vivemos num mundo em que a ação humana é pautada por um capitalismo violento, que impõe relações de trabalho baseadas na precarização”, ponderou. “No debate em Berlim, Joana foi vista como uma vítima das mudanças climáticas. Sim, ela vem do desastre de Brumadinho. Há esse componente. Mas há também outras dimensões no meu filme — material e o espiritual, o concreto e o existencial, o corpo físico e a alma”.

Na segunda parte de “Cidade; Campo”, duas mulheres que se amam, Mara (Bruna Linzmeyer) e Flávia (Mirella Façanha), se mudam da cidade para o campo. Flávia herdou do pai, recém-falecido, uma fazenda. Mara, que é veterinária, mostra entusiasmo com a nova moradia e o novo trabalho. Mas coisas estranhas começam a acontecer. Até ela desistir da fazenda.

Flávia, que não foi ao enterro do pai, insiste em permanecer na terra que herdou dele. Quer encontrar sua ancestralidade, cumprir o processo do luto, enfrentar seus fantasmas e reconectar-se com a natureza.

Uma cena de sexo entre Mara, branca e miúda, e sua amada companheira, afro-brasileira, grande e volumosa, causou sensação em Berlim, e espanto em parte do público do Palácio dos Festivais. Na fila da toalete do cinema, espectadoras me perguntaram: “você entendeu o filme? Eu não entendi, achei muito esquisito. E aquela cena de sexo?!”

Na sala de debates, “Cidade; Campo” recebeu sólidos elogios, inclusive para a referida cena de sexo entre Mara e Flávia, já que construída com afeto e delicadeza. Jamais com a intenção de “causar”.

Bruna Linzmeyer contou que gosta muito de pesquisar os antecedentes de seus personagens e que não tivera o tempo desejado para fazê-lo em “Cidade; Campo”. Recebera o convite de Sara Silveira e Juliana Rojas em cima da hora, lera o roteiro e, entusiasmada, aceitara de pronto. Encontrou em Mirella Façanha, a parceira de trabalho do qual se orgulha de ter participado.

Mirella, ao se perfilar a pedido da Revista de CINEMA, deu um show de inteligência e articulação. Contou que nasceu em Brasília, estudou na UnB, vindo a formar-se como atriz de teatro (e dança) na EAD-USP (Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo). No cinema fez pequenos papéis, “todos traumáticos”.

“Como sou preta e gorda” — detalhou —, “só me chamam para papéis de construção dramática rarefeita e pouca humanidade”. Frente a tal quadro, ela resolveu aprofundar suas pesquisas de raça e gênero. E possibilidades de acessibilidade para corpos não-normativos. Seguiu sua trajetória inconformada com as dificuldades de acessar bons papéis. Os que conseguia a induziam a desistir do ofício que escolhera. Foi então que surgiu o convite para o elenco de “Cidade; Campo”.

“Eu que tenho esclerose múltipla” — contou — “pude, então, fruir desse presente profissional e pessoal. E pude criar profundas relações de amizade com equipe maravilhosa, liderada por Juliana (Rojas)”.

A mineira Fernanda Vianna (a Julieta da duradoura-circense-e-encantadora montagem de “Romeu e Julieta” do Galpão), também se desdobrou em elogios à sua faxineira Joana, personagem complexa e cativante. “É meu segundo trabalho com a turma do Filmes do Caixote. Sara Silveira e Caetano Gotardo me convidaram para o filme ‘O que Move’, premiado aqui em Gramado. E, agora, estamos de volta com ‘Cidade; Campo’. São experiências cinematográficas que me marcaram profundamente”.

Equipe de “Cidade; Campo” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

O debate de “Filhos do Mangue”, sexto longa-metragem de Eliane Caffé, a Lili, se deu em formato diferente de “Cidade; Campo”. Afinal, o “filme potiguar” da realizadora paulistana não causou — na crítica e no público — o mesmo impacto de suas obras mais festejadas (“Narradores de Javé” e “Era o Hotel Cambridge”).

A assinatura de Eliane Caffé é visível na narrativa. Mais uma vez, ela soma atores profissionais a dezenas de atores sociais. Em “Javé”, ela uniu José Dumont, Luci Pereira, Gero Camilo e Rui Rezende a moradores de Gameleira da Lapa, na Bahia. Em “Hotel Cambridge” colocou Suely Franco e, mais uma vez, José Dumont, como um cativante Coringa, numa ocupação do MTSTC (Movimento de Trabalhadores Sem-Teto). A química entre profissionais e atores sociais alcançou sua plenitude nos dois (premiados e obrigatórios) filmes.

Em “Filhos do Mangue”, Lili atuou como diretora convidada. O produtor Fernando Muniz, vindo do Sudeste, criou, em parceria com o gaúcho Beto Rodrigues, empresa cinematográfica baseada no Rio Grande do Norte. Ao expor seus propósitos na Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, cinco anos atrás, foi acusado de “forasteiro”, interessado apenas “em abocanhar recursos públicos do Estado potiguar para desenvolver projetos predatórios”.

Beto Rodrigues, o sócio de Muniz, planejava, há anos, transformar o livro “O Capitão”, de Sérgio Prado, em longa-metragem. O próprio escritor transformou seu romance em roteiro, centrado em personagem dedicado ao tráfico de mulheres e à exploração de catadores de caranguejo. Que acabaria, numa briga, ferido e, o pior, desmemoriado.

Ao convidar Eliane Caffé para dirigir o filme, ela viajou até a locação escolhida, no Rio Grande do Norte, junto com seu grande parceiro, o roteirista Luiz Alberto de Abreu. Conheceu as locações e resolveu (com Abreu) reescrever o roteiro, adaptando-o a seu modo de fazer cinema. Ou seja, agregando a comunidade litorânea ao projeto. E fugindo do “cinema predatório”, que costuma chegar a uma cidade, ou vilarejo, retirar dela tudo o que quer e dar tchau aos que ficam.

Ao longo de cinco meses, Lili e sua equipe realizaram dezenas de oficinas e se envolveram em benfeitorias para a população (a maior delas foi a ampliação de pequeno restaurante, que atendeu a 60 pessoas durante as filmagens e continuou ativo com sua dona-pescadora).

A trama começa com um homem, Pedro Chão (Felipe Camargo), desacordado. Saberemos em seguida que ele perdeu a memória. Recolhido por moradores, que o acusam de ter roubado o dinheiro da cooperativa dos pescadores, ele não tem a mínima noção do que está acontecendo. Mas os acusadores sabem de sua vida pregressa. Ele explorava mulheres (na prostituição) e comprava o fruto do trabalho de pescadores a preço vil. Para revender com ótimos lucros.

Já na sequência do julgamento, vemos que faltou preparação do elenco local. A gritaria é geral. A atriz Titina Medeiros, de tantas experiências no Clowns de Shakespeare, estrela potiguar e presença em muitas telenovelas da Globo, interpreta a mulher do desmemoriado Pedro Chão. Mas seu personagem não passa de um esboço. Seus recursos como intérprete são deixados de lado.

A comunidade tem, sim, participação significativa na trama, mas o resultado deixa a desejar. Temos a impressão nítida que o processo foi bem mais interessante que o resultado.

Felipe Camargo se entrega, de corpo e alma, a Pedro Chão. Que tomará conta da narrativa, eclipsando todos os atores profissionais e integrantes da comunidade. Incluindo sua ex-esposa (Titina Medeiros) e mãe de sua filha pequena.

Lili Caffé defendeu com garra e paixão o seu filme. Mas deixou subentendido que, realmente, necessitava de mais tempo para conseguir a química obtida em “Javé” e Hotel Cambridge”. As filmagens se deram “em apenas três semanas, com pouquíssimos recursos financeiros”. Os produtores forneceram o valor do filme: “R$ 1,9 milhão”. Sim, esclareceu ela: “este é o valor total do filme, da pré-produção à finalização”.

A cineasta confessou, também, que aceitara o desafio de fazer “Filhos do Mangue” por seu imenso desejo de trabalhar. “No Brasil, trabalhamos muito pouco no que amamos fazer: filmes. Estou mais uma vez desempregada, vivendo de oficinas aqui e ali”.

Aos 63 anos, Eliane Caffé soma seis longas-metragens. Para termo de comparação paroxística, vale evocar o prolífico alemão Werner Herzog, de 83 anos, que já assinou mais de 70 ficções e documentários.

 

FILMOGRAFIA
Juliana Rojas (São Paulo, 23 de julho de 1981)

2011 – “Trabalhar Cansa”, parceria com Marco Dutra
2014 – “Sinfonia da Necrópole”
2027 – “As Boas Maneiras”, parceria com Marco Dutra
2024 – “Cidade; Campo”

Eliane Caffé (São Paulo, 1961)

1998 – “Kenoma”
2003 – “Narradores de Javé”
2009 – “O Sol do Meio-Dia”
2016 – “Era o Hotel Cambridge”
2022- “Para Onde Voam as Feiticeiras”, parceria com Carla Café e Beto Amaral
2024 – “Filhos do Mangue”

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