“Motel Destino” tenta trazer calor erótico-tropical ao cenário gelado de Gramado

Foto: Os atores Fábio Assunção, Iago Xavier e Nataly Rocha e os produtores Janaina Bernardes e Fabiano Gulane © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

A noite inaugural da quinquagésima-segunda edição do Festival de Gramado se deu em duas temperaturas — gelada no espaço externo (quatro graus) e quentíssima (e suada) na tela.

Afinal, o filme convidado — “Motel Destino”, em exibição hors concours — trazia todos os riscos possíveis. A começar por sua alta dosagem de cenas de sexo. O décimo-primeiro longa de Karim Aïnouz é um thriller erótico, ambientado em motel na litorânea Fortaleza, que soma gritos, sussurros e gemidos às mais diversas profusões de excreções corporais.

À frente do elenco, dois atores pouco conhecidos (os ótimos Nataly Rocha e Iago Xavier, ele estreante) que se somam ao astro Fábio Assunção. Eterno galã (mesmo grisalho e festejando aqui, na Serra Gaúcha, seus 54 anos), o ator de sólida carreira em telenovelas e séries globais, foi escalado para papel que desconstrói com radicalidade sua imagem.

Elias, seu personagem, o dono do Motel Destino, é um homem de passado obscuro, vindo do Rio de Janeiro, que explora seu negócio erótico ao lado da esposa nordestina, Daiane.

Pela primeira vez, Fábio, que vem diversificando seu trabalho em papéis de risco, aparece na tela sem nenhum de seus atributos de beleza. Até seus magnetizantes olhos azuis são neutralizados.

Quem conhece o romance “O Destino Bate à sua Porta” (James M. Cain, 1934) ou as versões que ganhou nas telas (“Obsessão”, de Visconti, 1943, e — com o nome original — as versões de Tay Garnett, 1946, e de Bob Rafelson, 1981) sabe que foram fontes de inspiração para Aïnouz, Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias escreverem o roteiro de “Motel Destino”.

Na trama original romanesca, um homem mais velho e sua esposa mais jovem exploram restaurante de beira de estrada. Um dia, um andarilho chega ao local e é contratado como prestador de serviços. Nascerá entre a mulher e o forasteiro paixão carnal avassaladora. E a intenção de, juntos, darem cabo à vida do marido indesejado.

“Motel Destino” transforma o restaurante de beira-de-estrada em casa de prática industrial do sexo. O forasteiro será um jovem, Heraldo (Iago Xavier), que corre risco de vida, pois tem dívidas a pagar com os que exploram seus serviços. Ao encontrar guarida no motel, o rapaz passará a executar serviços elétricos, hidráulicos e de limpeza dos quartos. A paixão entre ele e Daiane brotará, arrebatadora.

O filme de Karim Aïnouz, hoje o mais internacional de nossos cineastas, participou da competição pela Palma de Ouro em Cannes, em maio último. Não foi premiado, mas causou frisson e foi bem acolhido. Há quem tenha computado “10 minutos” de aplausos. O desfile da equipe pelo tapete vermelho cannoise se deu ao som vibrante do forró-pop nordestino e a atriz Nataly Rocha “causou!” envolta em belíssimo vestido desenhado pelo estilista Lino Villaventura, glória da alta costura cearense.

Em Gramado, a equipe subiu ao palco do Palácio dos Festivais desfalcada. Karim Aïnouz não pôde comparecer pois prepara, na Europa, seu novíssimo longa-metragem (a produção alemã “Rosebushprunning”, inspirado em “De Punhos Cerrados”, de Marco Bellocchio).

Os três protagonistas de “Motel Destino” (o cinquentão Fábio Assunção, o aniversariante; Nataly, de 38 anos, e Iago, de 24) estavam empacotados em roupas pesadas e de cores escuras. Com eles, a discreta Janaína Bernardes, parceira de Karim Aïnouz na produtora Cine Inflamável e o efusivo Fabiano Gullane, da coprodutora Gullane Filmes.

Sem os volumosos babados rosados de Lino Villaventura, Nataly não pôde “causar!” por uma segunda vez. O frio não deixou. “Somos cearenses que vivem na base dos 35 graus. Não estamos acostumados com esse frio todo, não!”, registrou o enluvado, empacotado e bem-humorado Iago Xavier.

Ao final da sessão (o Palácio dos Festivais estava lotado, apesar dos ingressos na base dos 150 reais), os aplausos foram discretos. Incapazes, portanto, de cumprir a promessa da apresentadora da festa, Marla Martins, que prometeu “ovação maior” que a de Cannes.

Em compensação, o debate do filme, na manhã seguinte, foi dos mais animados. Mesmo sem Karim Aïnouz. Fábio Assunção, já recomposto em sua beleza clássica, ganhou bolo com velinhas acesas e o “Parabéns a Você” entoado à moda gaúcha, diferente da maneira com que é cantado no restante do país). E esteve no centro das atenções.

O ator comentou a construção de seu personagem, Elias, em “Motel Destino”. E a desconstrução de sua imagem empreendida com radicalidade em seu corpo e gestual: “já fiz personagens desprovidos de beleza e vaidade. Na série ‘Onde Nascem os Fortes’, meu personagem tinha uma imensa barba branca. Construí Elias, um homem branco, vindo do Sudeste, que estabelece relação de poder tóxico com sua mulher e seu ‘empregado’ Heraldo. O motel é um espaço de confinamento. Ali ele faz o que quer. Anda descalço, veste calção e, por sugestão minha, acaba usando apenas uma cueca. E segue exercendo relações abusivas sobre os que o cercam”.

Nataly, muito articulada, falou do desafio de atuar numa sofisticada produção brasileiro-europeia, ela que vem do teatro e de produções alternativas cearenses, como “Cabeça de Nêgo” (Déo Cardoso, 2021). Contou da rica experiência com Karim Aïnouz, um diretor sólido e predisposto ao risco, que faz das locações de seus filmes um “verdadeiro playground de atuação”.

A atriz contou que o realizador cearense-argelino comanda os atores com imensa empolgação. É daqueles que “abanam a fogueira para o fogo aumentar”. E que aceita de bom grado as contribuições de seus atores. “Impregnei Daiane de humor, pois senti que, assim agindo, eu poderia manipular Elias e Heraldo como uma espécie de Arlequina servidora de dois amos”. Ela só conheceu Fábio Assunção e o conterrâneo Iago Xavier nos testes que precederam as filmagem.

Iago, escolhido depois de exaustivas provas, era um artista saltimbanco, que pulava de bico em bico, que foi garçom de quiosque de praia, trabalhador ‘precarizado’ em fábrica de panelas e ajudante de mágico.

“Um avulso”, definiu ele. Afinal, até ser escolhido como um dos protagonistas de “Motel Destino”, nunca vira um registro em sua carteira de trabalho. Sua vibrante e visceral atuação vem causando forte impressão no público e na crítica.

Ao final do debate, o sempre empolgado Fabiano Gullane convocou o público de todo o país a prestigiar o filme, que chega aos cinemas no próximo dia 22 de agosto, em lançamento nacional da distribuidora Pandora, de André Sturm. E garantiu que “Motel Destino” vem atraindo compradores de várias partes do mundo. Depois de estrear em telas europeias, tem lançamento confirmado no México e no Peru. E distribuição, em streaming, em toda América Latina, pela Mubi.

Num breve acesso de realismo, Fabiano ponderou: “nossos filmes (os brasileiros) já estão retomando seu diálogo com o público. Mas os de arte, que estreiam em festivais e trazem propostas mais ousadas, ainda não conseguiram tal diálogo”. Por isso, convocou a todos: “nos ajudem a divulgar ‘Motel Destino’, um filme que uniu talentos brasileiros e cearenses (com vital parceria da Escola Porto Iracema) aos melhores profissionais europeus”. O nome mais lembrado foi o da festejadíssima diretora de fotografia francesa Hélène Louvart.

 

FILMOGRAFIA
Karim Aïnouz (filho de pai argelino e mãe brasileira, nasceu em Fortaleza (CE), em janeiro de 1966)

2002 – Madame Satã
2006 – O Céu de Suely
2010 – Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (doc em parceria com Marcelo Gomes)
2011- Abismo Prateado
2015 -Velázquez ou o Realismo Selvagem (doc)
2019 – A Vida Invisível
2019 – Nardjes A. (doc)
2021 – O Marinheiro das Montanhas
2023 – Firebrand
2024 – Motel Destino

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