“Pasárgada” reúne Dira Paes e Fafá de Belém na “noite amazônica” do Festival de Gramado
Foto: Dira Paes e Fafá de Belém, do longa “Pasargada” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
A noite de “Pasárgada”, quarto concorrente ao Troféu Kikito na quinquagésima-segunda edição do Festival de Gramado, foi marcada pelo canto altissonante e a risada feliz de Fafá de Belém, conterrânea e amiga da diretora e protagonista do filme, a paraense Dira Paes.
Fafá cruzou o tapete vermelho e subiu ao palco numa cadeira de rodas, ao lado de Dira, do diretor de fotografia (e marido da atriz) Pablo Baião, da produtora executiva Eliane Ferreira e de representantes do Banco da Amazônia e da Globo Filmes, parceiros no projeto “Pasárgada”.
A cantora paraense está recolhida em spa gaúcho, onde faz fisioterapia para curar grave problema no joelho, fruto de queda doméstica. Problema que a tem impedido de caminhar e, principalmente, subir escadas.
O que motivou Fafá de Belém a prestigiar a noite de Dira Paes no festival gaúcho?
A atriz, e agora diretora, enumera as razões. Uma afetiva, outra cinematográfica. “Ela é meu amuleto, uma fonte de alegria”. E mais: “está presente na trilha sonora do filme com duas músicas, uma da Letrux (“Alinhamento Energético”) e outra de Macalé e Wally Salomão (“Dona do Castelo”).
Dona, isto sim, de todos os palcos, mesmo que sobre cadeira de rodas. Fafá lembrou, antes de cantar, que Dira é uma legítima filha da Amazônia. Sabe (ao contrário de muitos aventureiros), “diferenciar um igarapé de um igapó”. Em seguida, à capela, soltou seu vozeirão para interpretar “Amazônia”, de Nilson Chaves. Errou na introdução e, com alto astral, começou tudo de novo. Ao término dos épicos versos que enaltecem a região amazônica, soltou uma de suas espalhafatosas gargalhadas. A plateia delirou.
“Pasárgada”, ao contrário da esfuziante Fafá de Belém, é um filme intimista. De exuberante, só traz o registro da natureza, com suas árvores, rochas e rios, que o ambienta. No plano dos afetos e da trama, seguimos a trajetória de Irene (Dira Paes), uma ornitóloga que pesquisa os pássaros da Mata Atlântica.
Mulher madura, de 50 anos, ela encontra-se em desarmonia consigo mesma. Está sozinha e tem relações complicadas com uma filha distante. Para tornar tudo ainda mais difícil, ela acabará colocando seu conhecimento a serviço não da Natureza, mas sim de interesses que irão perturbá-la ainda mais.
Numa fazenda, Irene contará com o apoio de Ciça (Ilson Gonçalves), profundo conhecedor da floresta. Seja de suas trilhas e caminhos, seja dos pássaros. Sobrecarregado com seus afazeres, Ciça acabará indicando o jovem Manuel (Humberto Carrão), conhecedor da floresta, como seu substituto.
Com trama rarefeita e sem sobressaltos, o que veremos nos compactos 80 minutos do filme, é a transformação de Irene. Ela acabará descobrindo sua profunda relação com a Natureza que a cerca. E seu amor pelos pássaros, objeto de suas pesquisas.
Dira contou, durante o debate do filme, que, ao escrever o roteiro, fez questão de manter longas conversas com ornitólogos e biólogos. Um dos estudiosos da vida dos pássaros disse a ela frase que a acompanha até hoje (e serviu de inspiração para cena do filme impressa no cartaz): “ver é ouvir de olhos fechados”.
A frase inspirou, também, a opção estética do filme. Ao invés de um épico sobre tráfico de animais silvestres, “o terceiro na lista dos mais preocupantes do mundo”, Dira realizou um filme sensorial e íntimo.
Se ela roteirizou, protagonizou e dirigiu “Pasárgada”, seu companheiro de vida e ofício não ficou atrás na quantidade de citações nos créditos. Além de diretor de fotografia, Pablo Baião selecionou locações, deu sugestões no roteiro, foi coprodutor e, brinca, “até motorista”.
E isso aconteceu por causa do caráter familiar da produção de “Pasárgada”. Baião lembrou que “o filme foi realizado em plena pandemia, no lugar onde estávamos recolhidos com nossos dois filhos”. Ou seja, numa fazenda em Arraial do Sana, no município de Macaé, estado do Rio de Janeiro”.
Lá, pôde realizar imensas caminhadas e descobrir locações especialíssimas como a Pedra do Peito do Pombo. Estrutura rochosa composta com a sobreposição de duas pedras, sendo que a principal traz conformação que lembra “a cabeça de uma ave, com olho e tudo”.
De difícil acesso, a belíssima locação obrigou Pablo e Dira a integrar expedição de tropeiros, que levou equipamentos em lombo de burro. Caminharam a pé até atingir o Peito do Pombo. Como queriam imagens do local no crepúsculo e na alvorada, foram obrigados a dormir por lá mesmo, para não terem que repetir a escalada. Os sacrifícios físicos resultaram mais que válidos, pois as imagens que abrem e fecham o filme são arrebatadoras.
A fotografia de Pablo Baião é um dos trunfos de “Pasárgada”. Os enquadramentos externos (na mata e rios) são de grande beleza. As cenas com os atores, construídas em espaços fechados (ou abertos) são igualmente fortes. Até no registro de conversas feitas pelo computador, suporte com o qual Irene se comunica com sua irmã (Cássia Kis) ou com um “comprador” de animais silvestres (Peter Ketnath) são muito bem resolvidas tecnicamente.
Pablo fez questão de registrar que as belíssimas imagens de pássaros, dos mais variados tipos, que compõem o filme não foram feitas por ele. Para registrá-las, ele teria que ter “a paciência e o tempo” de um ornitólogo.
“Utilizamos imagens feitas por João Quental, professor de Literatura, ornitólogo e fotógrafo, que, com muito tempo e sabedoria, conseguiu aqueles maravilhosos registros de tantos pássaros”.
A descoberta do trabalho de Quental se deu por acaso. “Convocamos alguns jovens para trabalhar conosco e um deles nos contou que tinha um professor apaixonado por pássaros, que era ornitólogo e grande fotógrafo. E que dispunha de notável acervo”.
“Ao conhecer o material” — detalha o diretor de fotografia de “Pasárgada” — “descobrimos que tínhamos um mapeamento de muitos pássaros da Mata Atlântica”. Estava solucionado um dos desafios do filme. O outro era dar ao longa de estreia de Dira Paes um trabalho de som à altura das intenções do projeto.
A atriz-diretora lembrou que foi feita minuciosa pesquisa de cantos de pássaros, pois “eles são diversos e muito específicos”. Para tantos, contaram com a astúcia de Beto Ferraz, designer de som, que recorreu a banco sonoro, ciente de que há cantos do esplendor da manhã, do entardecer e do anoitecer, de pássaro de rio, de beira de estrada, de floresta densa”. Realmente, “uma infinidade de cantares”.
“Pasárgada” evoca, claro, o famoso poema de Manuel Bandeira, que fala de um lugar utópico e pleno de venturas. Tanto que a roteirista deu ao jovem “mateiro”, com quem criará relação amorosa (pelo menos em seus desejos oníricos), o nome de Manuel. Mas a evocação do poema modernista é simbólica.
Ao final do filme, veremos nos créditos, dedicatória da realizadora a dois realizadores fundamentais em sua trajetória: o irlandês John Boorman, que a revelou em “Floresta das Esmeraldas” (1985), e Walter Lima Jr, que dirigiu a jovem atriz em seu primeiro filme brasileiro, “Ele, o Boto” (1987). A paraense de Abaetetuba, hoje com 55 anos, empreendeu suas duas primeiras aventuras fílmicas em sua Amazônia natal. Num filme internacional e numa brasileiríssima história de Boto.
Ao escolher os desencontros existenciais e profissionais de uma ornitóloga e incluir na trama a delicada questão do tráfico de animais silvestres, Dira Paes situou sua narrativa na Mata Atlântica. O fez por estar vivendo a quarentena pandêmica nesse bioma. E por fidelidade geográfica e respeito às diferentes espécies de pássaros e à diversidade de seus cantos. Lembremos que Fafá de Belém definiu a conterrânea como “alguém que sabe, muito bem, diferenciar igarapé de igapó”.
Como a arte nos permite grandes vôos de imaginação podemos, celeremente, nos transportar da Mata Atlântida de “Pasárgada” para a Floresta Amazônica. A das Esmeraldas e do Boto. O filme chegará aos cinemas no dia 26 de setembro.
Depois de “Pasárgada”, o Palácio dos Festivais sediou o segundo (e último) programa da competição brasileira de curtas-metragens. Cinco equipes apresentaram seus filmes — “Navio”, vindo do Rio Grande do Norte, “Fendas”, do Ceará, “Ressaca”, de MG, “Movimentos Migratórios”, da Bahia, e “Ana Cecília”, do Rio Grande do Sul. De Pernambuco, por vídeo, Valentina Homem apresentou a animação “A Menina e o Pote”.
Na manhã dessa quarta-feira, 14 de agosto, o debate correu animado e com a participação das equipes de realizadores. Valentina fez sua participação por via digital e contou que seu filme nasceu de um conto de sua autoria, enriquecido por seu contato com cosmogonias Baniwa e Yanomani. De sua equipe, participaram Nara Normande (que assina animação da imagens, feitas em pintura sobre vidro), a montadora Eva Randolph e a antropóloga Francy Baniwa.
O baiano Rogério Cathalá, diretor de “Movimentos Migratórios”, lembrou que ele viveu na pele a mesma situação que o protagonista de seu filme. Quando ele vivia como imigrante, em Barcelona, na Espanha, uma andorinha caiu em sua casa. Ao perceber que ela estava machucada, ele saiu em busca de socorro.
É exatamente isso que acontece com seu personagem (o peruano Arturo Campos Begazo). Ao final, o público tomará conhecimento de fato ligado à trajetória de Arturo, que o deixará ainda mais comovido. A singela aventura do rapaz com o pássaro de asa quebrada resultou num dos filmes mais ternos do cinema brasileiro. Pessoas enxugaram lágrimas durante a projeção. E ao final.
Emoção, também, causou a exibição de “Fenda”, de Lis Paim. Ela coloca, frente a frente, duas mulheres — uma mãe (Noelia Montanha), que chega a Fortaleza para visitar a filha (Ednalva Carvalho), botânica e professora universitária. A relação das duas é tensa. Suas intérpretes, atrizes afro-brasileiras, nos encantam pela sutileza que imprimem às personagens. Lis Paim conseguiu o que queria: discutir relações entre duas mulheres pretas e adultas, marcadas pelos desencontros da vida.
“Ressaca”, de Pedro Estrada, é uma recriação compacta (e livre) de atrevida biografia da atriz galpônica Teúda Bara: “Comunista Demais para Ser Chacrete”, de João Santos. Construído com muita irreverência e participação de vários integrantes do Grupo Galpão (Eduardo Moreira, Inês Peixoto e trupe), o curta de apenas 14 minutos deve dar origem a um longa-metragem, em fase de pré-produção. O nome “Ressaca” será trocado por “Balbúrdia”. Se o bom senso vigorar, terá o nome do livro, achado de alma zé-celsiana (a quem o curta é dedicado). Na tela vemos também a atriz Grace Passô, que colaborou no roteiro.
“Navio”, o lisérgico filme de Alice Carvalho, Laurinha Dantas e Vitória Real, agitou a noite gramadiana. Ao som do Baiana System, a narrativa, sem diálogos, une a catadora Dandara (Alessandra Augusta), um capoeirista (Jamaica) e um Exu Mirim (o carismático Tito Mariano) para compor acelerado e convulsivo retrato de um Brasil que estigmatizou cultos de matriz africana, indexou livros e matou um capoeirista (Moa do Catendê não é citado explicitamente, mas Jamaica o evoca de maneira simbólica).
“Ana Cecília”, de Júlia Regis, é um dos dois curtas que representam o Rio Grande do Sul na competição nacional (o outro é “Pastrana”). Cecília é uma adolescente rebelde, que briga com a irmã e a mãe. E descobre o amor homoafetivo com uma amiga de escola. No elenco, as experientes Áurea Batista e Amanda Grimaldi (mãe e filha) e as jovens Luíza Quinteiros, a protagonista, e Márcia Cordioli.
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