“Marcha sobre Roma” esculpe o fascismo com imagens do próprio cinema

Por Maria do Rosário Caetano

Há exatos cem anos, Benito Mussolini entrava triunfalmente em Roma, como comandante de marcha iniciada em Nápoles, que arregimentava forças de extrema-direita, guiadas pelo ideário fascista.

O episódio é revivido em excelente documentário do prolífico cineasta irlandês-escocês Mark Cousins, de 57 anos, que tem o mesmo nome de sátira ficcional dirigida em 1962, por Dino Risi: “Marcha sobre Roma”. Ao invés dos astros Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi, uma única atriz aparece no longa cousiniano, a angelical Alba Rohrwacher. Ela interpreta uma dona de casa entusiasmada com os marchadores que chegam à capital italiana. Mas, aos poucos, sua inocência vai dando lugar à desilusão com o que vê.

E o que vê a diáfana personagem de Alba, que lembra a personagem de Sophia Loren em “Um Dia Muito Especial”, filme de Ettore Scola, evocado por Mark Cousins, um cinéfilo obsessivo?

Ela vê o “Duce” (o condutor”) e seus comandados exigir que as mulheres gerem (no mínimo) cinco filhos, permaneçam em casa enquanto os homens comandam o país e fazem a guerra para reconstruir a grande Roma de outrora, aquela dos Césares, imperial, que dominou a Europa, a África e partes da Ásia. Tropas vão para a Abissínia. A ordem é conquistar novos territórios. Até aliar-se a Hitler e aos japoneses para formar o Eixo nazi-fascista.

Como faz em sua caudalosa obra documental-ensaística-cinefílica, Cousins, que participa da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com três filmes (os outros dois são “As Tempestades de Jeremy Thomas” e “Meu Nome é Alfred Hitchcock”), lança mão do próprio cinema para construir sua narrativa.

Além do filme de Ettore Scola, que tem Sophia Loren como ingênua dona de casa e Marcello Mastroianni como um radialista homossexual – ambos alheios à euforia dos festejos da apoteótica visita de Hitler a Mussolini –, Cousins recorreu a obras importantes como “O Conformista”, de Bertolucci, “Salò, os 120 Dias de Sodoma”, de Pasolini”, “Delito Mateotti”, de Florestano Vancini, “Pay Day”, de Charles Chaplin, “Nanook, o Esquimó”, de Flaherty, “Amai-vos Uns aos Outros”, de Dreyer, e uma infinidade de cinejornais. Mas recorreu, em especial, a um documentário, “A Noi”, de Umberto Paradisi, o Homero do fascismo. Foi ele quem construiu, com raro capricho, o filme que documentou a Marcha sobre Roma. Ao longo de 44 minutos, cuidou de cada detalhe, engrandeceu cada segundo e antecedeu Leni Riefenstahl, que o sucederia com maestria ainda mais espetacular ao colocar o nazismo na história das imagens.

Com sua voz calorosa, apaixonada e cirúrgica, Mark Cousins mostrará aquele filme germinando o ovo da serpente do fascismo. E não fará um documentário passadista, pois a primeira imagem a qual assistimos é a de Donald Trump em seu triunfo na mais poderosa nação do mundo. E, depois, bem depois, veremos desfilar os seguidores do ideário de Mussolini espalhando-se pelo mundo e encontrando terreno fértil na Hungria, Índia, Brasil…

Atento ao cinema feminino, Cousins – além de abrir espaço nobre para a participação de Alba Rohrwacher, emblema do novo cinema italiano – recorrerá a muitas imagens de uma pioneira, Elvira Notari (1875-1946), atriz e diretora, que deixou imenso patrimônio visual (mais de 60 documentários e ficções).

Se Vladimir Lênin definiu o cinema como a mais importante e revolucionária das artes do século 20, Mussolini não ficou atrás. Fez questão de posar com uma câmera e se fazer acompanhar do slogan “La cinematografia e l’arma più forte”. E fez de outro slogan uma das divisas do fascismo – “Com o amor se possível, com a força se necessário”.

Embora não recorra ao filme de Dino Risi, a “Marcha sobre Roma” do irlandês-escocês não abandona o campo do humor corrosivo. Um dos materiais por ele referenciados é uma sátira de recorte brechtiano, protagonizada por três figuras felinas, que manipulam seus poderes para decidir os destinos dos oprimidos por forças fascistas.

Há, no filme, uma marcha que se frustra. A planejada pelo poeta e dramaturgo Gabriele D’Annunzio (1863-1938), também com trajetória política ligada a ideias de extrema-direita. Ele planejou marchar em direção a Roma, mas os liderados por Mussolini o esvaziaram. Preferiram manter seu líder seguro em Milão. Se a marcha fosse arrebanhando adeptos em todas as cidades do percurso e triunfasse em Roma, Mussolini chegaria à capital para assumir o cargo de primeiro-ministro. Se fracassasse, ele fugiria para a Suíça. Triunfaram e ele ficou no poder de 1922 até ser fuzilado e pendurado de cabeça para baixo, junto com Clara Petacci, por ‘partiggiani’, em 1945.

O filme termina com a doce voz de Alba Rohrvacher cantando o hino partiggiano “Bella Ciao” renascido com a série espanhola “Casa de Papel”, mega-sucesso da Netflix.

 

FILMOGRAFIA
Mark Cousins (Irlanda do Norte, 03/05/1965)
Cineasta, produtor, pesquisador e cinéfilo irlandês radicado em Edimburgo, na Escócia. Autor de mais de 50 filmes (curtas, médias, longas), como diretor associado, codiretor, produtor, narrador, roteirista ou diretor solo, feitos para cinema e TV. Destaques de sua trajetória:

2022 – “Marcha Sobre Roma” (“Marcia Su Roma”, Itália, 98 minutos) – Na Mostra SP

2022 – “As Tempestades de Jeremy Thomas” (“The Storm of Jeremy Thomas”, Inglaterra, 94 mintos): Cousins viaja com o produtor britânico Jeremy Thomas até o Festival de cannes. Durante o percurso, os dois relembram os filmes produzidos pelo inquieto empresário, entre eles filmes de Bernardo Bertolucci e david Cronemberg. Na Mostra SP

2022 – “Meu Nome é Alfred Hitchcock” (“My Name is Alfred Hitchcock”, Inglaterra, 120 minutos) – No ano do centenário do primeiro longa-metragem de Hitchcock, Cousins pergunta: como os filmes do diretor inglês, o mestre do suspense, se relacionam com o mundo contemporâneo? E o faz utilizando da voz do próprio diretor que revista seus filmes com auxílio da voz do narrador Alistar McGowan. Na Mostra SP

2021 – “A História do Cinema: Uma Nova Geração” (The Story of Film: A New Generation) – 180 minutos

2021 – “História do Olhar” (The Story of Looking) – 90 minutos.

2019 – “Mulheres Fazem Filmes” (Women Make Film: A New Road Movie Trough Cinema)

2017 – “The Eyes of Orson Welles” (110 minutos)

2015 – “I am Belfast” (86 minutos)

2013 – “A Story of Children and Film” (101 minutos)

2011 – “A História do Cinema – Uma Odisseia” (The Story of Filme: An Odyssey) – 930 minutos

2009 – “The First Movie” – 81 minutos

One thought on ““Marcha sobre Roma” esculpe o fascismo com imagens do próprio cinema

  • 26 de outubro de 2022 em 00:17
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    você sabe se a Marcha sobre Roma de Mark Cousins vai ser exibido no Brasil comercialmente?
    Ou vai passar rm algum streaming?

    Resposta

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