Cine Ceará encerra mostra competitiva com comédia “doidona” da Republicana Dominicana e curtas brasileiros

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (CE)

A última noite da mostra competitiva do Cine Ceará (Festival Ibero-Americano de Cinema) reuniu um longa ficcional muito doidão — “A Bachata de Biônico”, de Yoel Morales, da República Dominicana — e três curtas brasileiros, o paranaense “Bolinho de Chuva”, de Cameni Silveira, o mineiro “Dona Beatriz Ñsîmba Vita”, de Leonardo Catapreta, e o pernambucano “Todas as Memórias que Você Fez em Mim”, de Pedro Fillipe.

O título do filme dominicano resulta enigmático aos brasileiros, pelo menos aos pouco familiarizados com o mais popular ritmo musical do país centro-americano, a bachata. Ela é fruto da mescla de bolero com ritmos calientes como o “son” cubano e o chá-chá-chá, vitaminada pelos tambores afro-dominicanos. A dançante bachata fala aos corações apaixonados, pois canta amores e desamores, despeito e dores sentimentais.

O protagonista do filme, o elétrico Biônico, interpretado pelo advogado e ator profissional Manuel Raposo (foto), representou o filme no Cine Ceará. Muito articulado, Raposo, com vinte filmes no currículo, substituiu, com rara competência, o diretor ausente, já ocupado com novos projetos.

Quem leu a sinopse do filme, antes de assisti-lo, deve ter sentido, além de certo desânimo, um clima déjà-vu. Afinal, temeu assistir a mais um filme sobre viciados afro-latinos, mergulhados no consumo do crack. Confiram, pois, o resumo da trama: “Ficção que traz visão crua do amor, ambientada em cidade hostil do Caribe, ‘La Bachata de Biónico’ segue um romântico desesperado, viciado em crack, obrigado a assumir o controle de sua vida se quiser casar-se com a mulher que ama”.

Já o currículo do diretor Yoel Morales apresenta-se mais animador: “Integrante da produtora Mentes Fritas, coletivo caribenho, responsável por filmes bizarros como ‘Azul Magia’ (2017), ‘Há Sido un Placer’ (2015), ‘Porque Quieres’ (2014), ‘Ríen Poco’ (2011), ‘Jodidos en Serie’ (2010)”.

Como se vê, o humor está impresso no nome da produtora e de suas realizações. Destaque para “Foi um Prazer”, “Pouco Riso” e “Fodidos em Série”.  Atualmente, a Mentes Fritas prepara o terror “Você Não Tem Permissão”.

Quem temia ver na tela do Cineteatro São Luiz mais um drama social (terceiro-mundista) sobre viciados em crack, foi surpreendido logo na abertura do filme. Em sua primeira aparição, veremos em Biônico, protagonista absoluto da narrativa, um personagem construído com muito humor e atitudes desconcertantes.

Ele é, sim, viciadíssimo em crack, fodido pela falta de grana e apaixonado por sua namorada, a bela e jovem La Flaca (Ana Minier), que está para sair do cárcere. Ela tem sonhos mirabolantes: quer luxo e riqueza, muitos filhos e um anel de brilhantes, símbolo consumista do sacramento matrimonial.

Biônico, como diz seu apelido, é cheio de iniciativa, incansável, inquebrantável, mas suas tentativas de ganhar dinheiro não dão muito certo. Nenhuma delas permitirá realizar os sonhos da namorada. Para completar o hilário caos do filme, ele tem em Calvita (o rapper El Napo, em sua estreia no cinema), amigo inseparável. Calvita é maconheiro em tempo integral, doidão e disposto a topar qualquer parada. Quanto mais louca, melhor. Será capaz, até, de subtrair substantivo pacote de cocaína de gangue de traficantes.

Biônico, para unir-se à sua linda Flaca (magra, em português), terá que abandonar o vício em crack. Ela, com os anos na prisão, estaria “limpa”. Ele bem que tenta, mas o filme é tão acelerado e doidão, que nada se processará de forma linear. O ritmo, condensado em 80 minutos, é vertiginoso. E se constrói na base do vale-tudo. Tudo mesmo.

A narrativa ficcional de Yoel Morales dispõe de artifício que encobre as loucuras  (e os absurdos) do roteiro. Afinal, o que vemos é um filme dentro do filme. Uma equipe de cinema procura Biônico e propõe a ele que seja personagem de um documentário. Ele aceita e, dali em diante, seus passos serão acompanhados pela câmara. Os dele, os de Calvita e muitos outros, como o também doidão Engenheiro e o agitado Andres, cara de classe média, apaixonado por La Flaca.

Veremos sequências quase documentais. Como a que mostra viciados em crack, numa angustiante Cracolândia dominicana. Outra, protagonizada por um dirigente de serviço público, que atende a adictos contumazes (o personagem em cena dedica-se a tal ofício na vida real). Mas tudo é reprocessado por Yoel Morales, que está dirigindo — no frigir dos ovos — uma ficção metalinguística-doidona-acelerada.

As outras sequências são 100% ficcionais, pré-roteirizadas, em especial, a que mostra Biônico e Calvita, este o rapper mais louco do Caribe, tentando convencer o chefe de gangue de tráfico a ceder tabletes de cocaína a eles. Que atuariam como revendedores. A solução da sequência é improvável. Mas o filme — por uns abraçado, por outros rejeitado — não se dá em registro naturalista. Sua proposta consiste em divertir o público como se fosse uma comédia maluca.

O ator Manuel Raposo contou, no debate cearense, que ninguém da equipe artística e técnica de “A Bachata…” esperava alcançar a ótima recepção que o filme vem tendo em diversos festivais internacionais.

“Fomos muito bem em Locarno, na Suíça; no SXMW, no Texas (prêmio do público) e em Londres”, contou. “Vencemos o prêmio máximo num festival na Tailândia, estamos aqui no Cine Ceará e temos convites para outros festivais”,

O filme, segundo seu protagonista, “causou sensação”, também, em festival na Republica Dominicana, país de menos de 12 milhões de habitantes, metade composta de afro-descendentes. E deve estrear em meados de 2025, de olho no público, em momento no qual “o cinema dominicano cresce a olhos vistos”. Um “crescimento biônico”, brincou o ator, pois “passamos, graças à nova Lei de Fomento, de dois para 20 longas-metragens anuais”.

A estreia de “A Bachata de Biônico” está prevista, em seu país de origem, para o primeiro semestre de 2025. “Esperamos”, diz Raposo, “que o filme consiga um bom diálogo com nosso público”. A tarefa é desafiadora, pois a trama, apesar de sintética e adrenalinada, está bem distante do mobilizador “cinema feito para toda a família”. Aqui no Brasil, foi recomendado para maiores de 16 anos. O inquieto maconheiro Calvita gosta de mostrar o pênis, de forma explícita, aos documentaristas que filmam a vida de Biônico e seus companheiros de vício.

Já o curta “Bolinho de Chuva”, da acriana, radicada em Curitiba, Cameni Silveira, é um filme que tem o dom de sensibilizar a todos. Por suas protagonistas — a menina Nelma e sua avó — e por seu tom evocativo de memórias da infância. Nelma brinca no quintal de sua casa. Sua avó, de idade avançada, cuida dos afazeres da casa, seja cozinhando, lavando e, com ênfase, torcendo pelo afastamento de nuvens pesadas, que prenunciam temporal. Se ele chegar, impedirá que as roupas, penduradas no varal, sequem.

Para impedir a ação da Natureza, a velha senhora recorre a uma simpatia: coloca um copo d’água cheio, de boca para baixo, sustentado — sem vazamento — num prato.

A menina, que faz “bolinhos de chuva” (roliças bolas de barro) fica encantada com os “poderes mágicos” da avó. Mas a força da Natureza cumprirá sua missão. Com singeleza e síntese (11 minutos), a acriana Cameli mexe com as lembranças de quem, como ela, nasceu e cresceu em áreas rurais, brincando com terra, longe do mundo dos jogos eletrônicos e da TV.

A animação mineira de estranho nome —  “Dona Beatriz Ñsîmba Vita” — de Leonardo Catapreta, vem somando prêmios em festivais nacionais e internacionais. Do Sundance ao Bafici argentino, passando pelo Fantaspoa, Kinoforum, Brasília, Seattle e Los Angeles.

A trama, desenhada com habilidade e criatividade por Catapreta, é das mais intrincadas. E resulta em representação inesperada da cultura africana. Os desenhos, com predominância do azul e branco, evocam mais a tradição pictórica europeia, que o colorido dos povos nascidos na África.

Até os protagonistas — a congolesa Ñsîmba e os clones dela derivados — são representados com economia de traços. A beleza dos cenários, esses sim, em diálogo com o imaginário barroco, seduzem o olhar.

A trama, desenvolvida ao longo de 20 minutos, é de difícil percepção. Até porque o filme não se propõe explicativo, embora evoque personagem real, Kimpa Vita. Ela teria existido, mas dela pouco (muito pouco) se sabe.

Dona Beatriz (nome cristão) Ñsîmba Vita (nome Bantu) seria personagem mítico-mística gerado pelo sincretismo religioso. Por somar a religião católica a cultos africanos, ela teria sido vítima da Inquisição, no Século XVII. Determinada a cumprir missão divina (de criar seu próprio povo), Ñsîmba usará de habilidade peculiar — “a capacidade de produzir clones de si mesma”.

Catapreta, que engendrou adaptação muito livre da personagem, realizou o filme praticamente sozinho, em menos de três anos (com apenas dois colaboradores). Aos 48 anos, dono de espírito rebelde, quase iconoclasta, ele não se importa com as reclamações de quem diz não entender sua narrativa. Sua mistura de tempos históricos, magia e religião é feita do jeito dele. Ponto final.

“Minha formação é de artista plástico, virei cineasta por acaso, busco soluções simples para meus filmes e creio que elas são propositalmente ruins”. Claro que ele usa de ironia nesse enunciado. Até porque a beleza plástica de seus desenhos é inquestionável.

O pernambucano Pedro Fillipi (de Caruaru, terra do mestre Vitalino) realiza, com “Todas as Memórias que Você Fez em Mim”, uma ficção protagonizada por dois personagens: José (Beto Aragão), um agricultor de 68 anos, e Luiz (Gilberto Oliveira), de 71 anos, um artesão que trabalha o barro.

A rotina de José consiste em cuidar da roça e do seu esposo, o artesão Luiz, portador de Alzheimer. No convívio diário, o casal, isolado em pequena propriedade rural, trabalha sem descanso. Mas tudo se torna complicado com a doença de Luiz. Ele já não reconhece o companheiro, repete uma mesma pergunta por múltiplas vezes. Indiferente à resposta.

Esse drama homoafetivo, de discreta composição, traz ingredientes de suspense. No debate do filme, no Cine Ceará, Pedro Fillipe levantou possibilidade que parece não ter passado, nem remotamente, pela cabeça dos espectadores.

Ele elaborou a possibilidade de que José, o dedicado e paciente agricultor, possa ser uma lembrança guardada na memória de Luiz. Ou seja, mesmo com Alzheimer, o artesão preservaria recordações passadas da presença amorosa do companheiro.

Como a narrativa é construída de forma naturalista, fica difícil imaginar que o artesão esteja sozinho naquela casa cercada de verde, se alimentando de momentos vividos com o amado José. Produzido “com pouquíssimos recursos”, o filme não pôde usar a fotografia como instrumento de construção de atmosferas. Não pôde elaborar o que estaria sugerido no plano da realidade e no da evocação da memória. Esta obscura intenção do realizador está, portanto, contida mais no título, que em sua narrativa.

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