Guel Arraes realiza um “Deus e o Diabo na Terra de Nossa Senhora” a partir do “Auto” de Suassuna
Foto: Laura Campanell
Por Maria do Rosário Caetano
Impossível sequenciar o “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, sem o julgamento de João Grilo em tribunal celeste, tendo Nossa Senhora como advogada de defesa. Essa é a “alma”, a essência, da narrativa teatral do dramaturgo e poeta católico, nascido na Paraíba, em 1927, e falecido em Pernambucano, dez anos atrás.
Pois o julgamento, um dos múltiplos pontos altos do primeiro “O Auto da Compadecida” (Guel Arraes, 2000), volta majestoso nesse “O Auto da Compadecida 2”, visto por mais de 150 mil pessoas num único dia (o do Natal). A sequência chega a seu ápice com o show de Matheus Nachtergaele, intérprete juramentado de João Grilo, o pequeno sertanejo taperoense. O ator nos apresenta seu triplo salto carpado.
O paulistano Nachtergaele, de origem belga, interpreta, na referida sequência, além do esperto João Grilo, o próprio Deus (no filme original, Maurício Gonçalves) e o Diabo (papel no qual brilhara Luis Mello). Seu Deus lembra personagens bíblicos dos filmes de Hollywood. Seu Diabo parece um samurai de Kurosawa.
A química entre João Grilo e Selton Mello (o covarde Chicó) continua perfeita. Ao elenco de apoio não falta brilho. Rosinha (Virgínia Cavendish) regressa ao sertão na pele de empodeirada caminhoneira. Clarabela (Fabiula Nascimento) surge de outros escritos suassúnicos para apimentar a vida da provinciana Taperoá. Os dois vilões – representados por um coronel-latifundiário (Humberto Martins), invasor de terras alheias, e Arlindo, comerciante e dono da emissora de rádio do município (Eduardo Sterblicht) — são carismáticos.
Como não sobrou nada da peça teatral que dera origem à microssérie “O Auto da Compadecida”, vista por mais de 35 milhões de espectadores (quando de sua estreia na Rede Globo), Guel Arraes e João Falcão – auxiliados por Adriana Falcão e Jorge Furtado – deram asas à imaginação e criaram trama nova.
Há momentos engenhosos nesse “O Auto 2”, mas nenhum deles faz sombra ao original. Seja a microssérie, seja o filme, nascido desta e capaz de vender mais de dois milhões de ingressos no circuito de salas exibidoras. Um sucesso tão surpreendente, que Daniel Filho batizou o longa original de “O Milagre da Compadecida”.
Não são os atores, nem a história centrada em eleição municipal (na qual se antagonizam o Coronel Ernani e Arlindo, o descolado comerciante) os responsáveis pela falta de magia do “O Auto 2”. Duas razões saltam aos olhos e estão profundamente ligadas – os cenários (“locações”) e a fotografia.
Ao abandonar locações naturais em Cabaceiras, na Paraíba, cidade sui generis, onde – diz-se – “nunca chove”, e o Lajedo do Pai Mateus, Guel e sua parceira, a cineasta Flávia Lacerda, optaram pelo uso de “painéis luminosos”. Os atores se movimentam em meio ao artifício.
O resultado é empobrecedor, pois retira do filme a magia do “O Auto 1”, uma fábula luminosa, capaz de seduzir dos infantes aos vovôs. A fotografia do novo filme é escura. E, às vezes, dialoga – sim, isso mesmo! – com o cinema de terror. Mesmo que João Grilo e Chicó continuem como dois ingênuos sedutores. E espertos, pois como dizia Suassuna, pela boca da Compadecida, “a esperteza é a coragem do pobre”.
Com os imensos recursos tecnológicos cada vez mais avançados, em tempos de IA (Inteligência Artificial), estúdios digitais tornam-se cada vez mais utilizados e econômicos.
Ao invés de deslocar dezenas de atores e técnicos (prática dispendiosa) para o sertão calorento da Paraíba (o que a poderosa Rede Globo de duas décadas atrás fez com o pé nas costas), Guel resolveu tudo em estúdio. A economia foi exponencial.
Lars von Trier fez algo assemelhado em “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005). E o fez à moda de Bertoldt Brecht, um de seus esteios estéticos. Desenhou riscos no chão e nos induziu a aceitá-los como “paredes”.
Eduardo Coutinho, já com a saúde frágil, não tinha mais energia para enfrentar locações naturais. Optou por filmes de “estúdio”, depois do bem-sucedido ensaio em cenário único (“Edifício Master”) e da revolução provocada pelo instigante “Jogo de Cena”. Conversou com seus “personagens”, em seus anos finais, sentado entre quatro paredes, em “As Canções” e no inacabado “Últimas Conversas” (concluído por colaboradores).
Registre-se, antes de seguirmos pela opção por estúdios de outro cineasta, o mestre Ruy Guerra: em “O Auto da Compadecida 2”, Guel e Flávia dialogam com o documentarista paulistano-carioca, citando um de seus filmes nordestinos – “Seis Dias de Ouricuri” (1976, fase Globo Repórter).
Ruy Guerra, octogenário e, agora nonagenário, vem se dedicando ao uso do “video mapping” e suas variações. Seus últimos filmes – “Quase Memória”, “Aos Pedaços” (estreia dia 13 de fevereiro) e “A Fúria” – foram realizados em estúdios “abstratos”. O que ele conseguiu fazer com o “video mapping” no fecho de sua Trilogia dos Fuzis (“A Fúria”) é algo notável, ousado e criativo.
Outro problema perturba a fruição de “O Auto da Compadecida 2” – o excesso de falas. Não há silêncio no filme. Vindo da tradição oral e da literatura de cordel, o primeiro longa também se escorava em fartos diálogos (os concebidos com engenho e arte por Ariano Suassuna). Nessa nova empreitada, o quarteto de roteiristas alcança rimas de boa qualidade, mas incapazes de nos fazer esquecer a matriz.
Embora quase 25 anos separem os dois “Autos”, o primeiro não sai de nossa memória. Por suas qualidades e por o revisitarmos, ao lado de filhos e netos, com frequência na TV. A ponto de seguirmos apaixonados pelos religiosos venais (Lima Duarte e Rogério Cardoso, magníficos), pela mulher do padeiro (Denise Fraga), pelo Diabo de Luís Mello, pela Compadecida de Fernanda Montenegro. Não que Taís “Nossa Senhora” Araujo esteja mal. De forma alguma. Lindamente vestida, ela até homenageia sua antecessora. E há Luís Miranda, na pele de divertido malandro carioca, Antônio do Amor, que chega a Taperoá para ajudar João Grilo em suas aprontações. Enrique Diaz também brilha na pele do capanga acangaceirado Joaquim Brejeiro.
O uso de animação para representar as mentiras de Chicó – afinal, ele conta lorotas para reafirmar seu bordão “só sei que foi assim” – não trazem alegria ao filme. Se o primeiro “Auto” era uma fábula sertaneja sob a luz fulgurante do Nordeste, portanto, obra solar, esse “Auto 2” parece uma obra lunar (em prata, roxo e com estranhos cenários).
O tempo dirá se o sucesso do primeiro dia – 150 mil espectadores – resultará em boca-a-boca positivo. Ou não! A sorte está lançada.
O Auto da Compadecida 2
Brasil, 2024, 1h53 minutos
Direção: Guel Arraes e Flávia Lacerda
Elenco: Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Humberto Martins, Eduardo Sterblicht, Virgínia Cavendish, Fabiula Nascimento, Luís Miranda, Taís Araújo, Enrique Diaz
Roteiro: Guel Arraes, João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado
Fotografia: Gustavo Hadba
Produção: Conspiração e H20 Filmes
Figurino: Emília Duncan
Montagem: Fábio Jordão
Trilha sonora: João Falcão e Ricco Viana (com canções de Roberto Carlos, Milton Nascimento e parceiros)
Distribuição: H2O (com parceiros na retaguarda, incluindo o apoio do TikTok)
Contando as horas para conferir e deliciar mais uma epopéia do Guel & Cia…