Brasil conquista primeiro Oscar com “Ainda Estou Aqui” e Academia troca Nanda Torres pela jovem Mikey Madison
Foto: Walter Salles © Kevin Winter/Getty Images North America
Por Maria do Rosário Caetano
O Brasil conquistou, pela primeira vez em sua história, um Oscar para uma produção genuinamente brasileira. “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, foi eleito o melhor filme internacional. O prêmio foi entregue pela atriz espanhola Penélope Cruz a um Walter Salles emocionado, que usou óculos, sinalizando que leria um discurso, mas acabou falando de improviso.
“Obrigado, em nome do cinema brasileiro!”, começou o cineasta. “Estou tão honrado em receber este prêmio em meio a um grupo extraordinário de cineastas. Este prêmio vai para uma mulher que, após perda sofrida diante de um regime autoritário, decidiu não se curvar e resistir. O nome dela é Eunice Paiva”. E finalizou: “Dedico também às duas mulheres extraordinárias que deram vida a ela – Fernanda Torres e Fernanda Montenegro”.
Outro Oscar, aguardadíssimo pelos brasileiros, o de melhor atriz para Fernanda Torres, não se concretizou. Mais uma vez, a Academia optou por uma atriz jovem e norte-americana. Repetiu-se o que se passara 26 anos atrás, quando a também jovem Gwyneth Paltrow derrotou a experiente Fernanda Montenegro, a escrevinhadora de cartas de “Central do Brasil”. Fernandona fôra reconhecida com um Urso de Prata em Berlim, por seu notável desempenho. E o filme ganhara o Urso de Ouro, prêmio máximo do festival alemão.
Dessa vez, esperava-se que a Academia reparasse o mal passo de décadas atrás, reconhecendo Fernanda Torres, de 59 anos, notável como protagonista de “Ainda Estou Aqui”. Se assim agisse, estaria premiando, simbolicamente, Fernanda Montenegro, de 95 anos. Afinal, ela dá vida, em participação especial, a Eunice Paiva, vista em seus anos derradeiros e tomada pelo esquecimento trazido pelo mal de Alzheimer.
Não há nenhum ufanismo em defender o trabalho de Nanda Torres como digno do Oscar. Ela, realmente, constrói sua protagonista com paixão e contenção, entrega e sutileza. Qualidades que lhe renderam o Globo de Ouro. Mas a maioria dos votos foi destinada à jovem Mikey Madison, protagonista de “Anora”, comédia sobre trabalhadora do sexo que se envolve com o filho de um oligarca russo. O longa, uma produção independente norte-americana, ganhou cinco estatuetas – melhor filme, diretor, atriz, roteiro original e montagem.
Aliás, os filmes mais premiados da noite – “Anora”, de Sean Baker, e “O Brutalista”, de Brady Corbet —, assim como o do brasileiro Walter Salles —, são produções independentes, de orçamentos modestos, se comparados com os de “Duna – Parte 2” e “Wicked” (ambos na casa dos US$150 milhões). “O Brutalista” custou US$10 milhões, “Ainda Estou Aqui”, US$8 milhões (sem investimentos públicos) e “Anora”, US$6 milhões”.
Quem assegurou que “a campanha” de “Ainda Estou Aqui” teria custado uma fortuna à Sony Pictures, sua distribuidora internacional, encontrou em Walter Salles voz contrária e convicta. Ele fez questão de rejeitar, com sua costumeira e educada veemência, o termo “campanha”.
No tapete vermelho do Dolby Theather, em entrevista ao canal Max-TNT, ao lado de Fernanda Torres, o brasileiro deixou claro que “não houve campanha!”, pois tal procedimento significaria colocar outdoors do filme nas principais avenidas de Los Angeles e caros anúncios em veículos de comunicação, prática de muitos dos concorrentes.
“O que fizemos” — assegurou — foi apresentar e debater o filme em dezenas e dezenas de lugares”. Em entrevista ao canal digital de Bob Fernandes, dada ao jornalista Sérgio Augusto, Walter reforçou o caráter independente de “Ainda Estou Aqui” e de boa parte dos candidatos ao Oscar deste ano. Lembrou, enfático, que ele e Fernanda Torres foram a mais de 40 festivais para que “Ainda Estou Aqui” chegasse ao conhecimento de possíveis votantes. Com seu humor costumeiro, a atriz ponderou que, terminada a maratona de seis meses, iniciada em Veneza, regressaria ao Brasil com um único desejo — “dormir”.
A cerimônia de premiação do Oscar de número 97 não entrou madrugada adentro (encerrou-se à meia-noite e 45 minutos). E, felizmente, houve novos esboços de cosmopolitismo na distribuição de alguns dos prêmios. Ou seja, alguns filmes realizados fora do mundo anglo-saxão foram reconhecidos.
Os casos mais notáveis foram os da animação oriunda da Letônia, “Flow” (premiada no lugar do favorito “O Robô Selvagem”), e do longa documental “No Other Land” (“Sem Chão”), dirigido por quarteto palestino-israelense. Duas produções francesas (“Emilia Pérez”, de Jacques Audiard, e “A Substância”, de Coralie Fargeat ) somaram três estatuetas. Duas delas para profissionais franceses. A terceira para a atriz norte-americana (de família vinda da República Dominicana) Zoe Saldaña. E nas três categorias de curta-metragem, dois filmes vindos de fora — a animação “In the Shadow of the Cypress”, do Irã, e “Eu Não Sou um Robô”, ficção holandesa — direcionaram seus troféus a outras geografias.
Por outro lado, a festa do Oscar configurou-se como mais uma gigantesca celebração do cinema norte-americano. Os concorrentes a melhor canção original não entraram na cronologia da cerimônia. Para economizar tempo? Não. Para dar lugar a números musicais que homenagearam de “O Mágico de Oz” aos filmes de James Bond.
Os discursos proferidos pelos premiados foram contidos em sua duração. Exceção para Adrien Brody, o protagonista de “O Brutalista”, que fez questão de gastar o triplo dos 5 minutos acordados.
O apresentador da noite, o comediante Conan O’Brien, bem que implorara por síntese. E avisara que não caberia ao tradicional aumento do volume da música de fundo sinalizar o estouro do tempo, mas sim à cara sisuda e decepcionada do ator John Lithgow. Se não fosse suficiente, mostraria fotos antigas dos astros premiados. Para fazer graça, mostrou até uma ultrassonografia de Timothée Chalamet, no ventre da mãe. Ele concorria ao Oscar de melhor ator por “Um Completo Desconhecido”.
Os melhores discursos foram os de Zoe Saldaña, que chorou emocionada com seu primeiro Oscar, o do figurinista Paul Tawezell, de “Wicked”, e o da equipe de “No Other Land”.
A atriz evocou sua origem, a República Dominicana caribenha, e defendeu os direitos dos imigrantes. Tawezell, com lágrimas nos olhos, lembrou ser o primeiro afro-americano a receber o Oscar em sua categoria. O quarteto que dirigiu o melhor longa documental da noite, clamou pela “constituição de dois Estados, direitos iguais e pelo fim do genocídio do povo palestino”. Os cineastas que uniram forças num projeto marcado pela fraternidade entre palestinos e israelenses foram aplaudidos de pé.
Dos apresentadores, o mais simpático e brincalhão foi Mick Jagger. Ele garantiu que não fora a primeira opção da Academia. Tal primazia caberia a Bob Dylan, que, porém, rejeitara o convite. Afinal, tinha certeza que as melhores canções eram as dele mesmo, presentes no filme “Um Completo Desconhecido”. Com a suposta recusa, o cerimonial recorrera a alguém mais jovem que Dylan, ele, Jagger (nascido em 26 de julho de 1943, portanto, dois anos antes do norte-americano).
O astro inglês entregou o Oscar ao trio Camille, Clément Ducol e Jacques Audiard, criadores de “El Mal”, canção interpretada por Zoe Saldaña em “Emilia Pérez”. Aliás, o recordista de indicações do ano (treze), acabou reduzido a dois troféus. No Oscar, o estrago das declarações da atriz espanhola (radicada no México) Karla Sofía Gascón foi devastador. Outro derrotado foi “A Substância”, que para muitos daria o Oscar a Demi Moore. O trabalho dela não bastou para fazer desse filme “nojento e audacioso” (segundo o NYT) uma realização digna de troféus (conquistou somente maquiagem e cabelos).
A homenagem aos que morreram no último ano começou com tributo ao ator Gene Hackman, feito por seu colega de trabalho Morgan Freeman. A sessão “In Memoriam” prosseguiu com imagens de dezenas de profissionais da indústria do audiovisual que partiram nos últimos doze meses. Caso da documentarista mexicana Lourdes Portillo, da atriz francesa Ainouk Aimée, do canadense Donald Sutherland, e dos norte-americanos David Lynch, Shelley Duval, James Earl Jones e Robert Towne.
Por fim, uma recomendação a quem não assistiu ao curta documental “A Única Mulher da Orquestra”, de Molly O’Brien, que fez por merecer uma estatueta da Academia. Ele pode ser visto na Netflix. Trata-se de retrato da contra-baixista norte-americana Orin O’Brien, que fez gloriosa carreira na Filarmônica de Nova York (por longos 55 anos). Filha do ator John O’Brien e da atriz Marguerite Churchill, ela nasceu em Hollywood, 90 anos atrás. Seu pai, além de trabalhar em filmes de John Ford, foi o protagonista (com Janet Gaynor) da obra-prima da era silenciosa —“Aurora” (1927), do alemão F.W. Murnau.
E aos que (ainda) não viram “Ainda Estou Aqui” vale reafirmar suas qualidades e importância histórica. Trata-se, afinal, de longa metragem (130 minutos) no qual milhares de brasileiros têm se reconhecido. Por seu elenco liderado por Fernanda Torres e Selton Mello, por seu roteiro que resgata momento sombrio de nossa história, por sua qualificada equipe técnica e artística, por sua trilha sonora, que congrega clássicos de nossa MPB. Sem esquecer a língua portuguesa, seu idioma. Do roteiro até sua estreia, no Festival de Veneza, o filme se construiu ao longo de oito anos.
Ao chegar aos cinemas, em 7 de novembro, ninguém esperava que “Ainda Estou Aqui” se transformasse em um blockbuster. Afinal, nada trazia de atrativas comédias ou filmes de ação. Pois foi o que aconteceu. Suas bilheterias somam já 5,3 milhões de espectadores e 17 semanas em cartaz.
A narrativa do filme, que recria livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, centra-se na trajetória da dona de casa e mãe de cinco filhos, Eunice Paiva, que viu-se, de um dia para o outro, viúva do ex-deputado federal e engenheiro, Rubens Paiva, assassinado nos porões da ditadura militar (em 1971). Ela reconstruiu sua vida, estudou Direito e tornou-se defensora dos Direitos Humanos, em especial dos povos indígenas.
Pois esse filme improvável alcançou potente resposta social e política junto ao público e, até, ao Poder Judiciário. A ponto do ministro do STF, Flávio Dino, lembrar que não há anistia para crimes hediondos como a ocultação de cadáver. O corpo do ex-parlamentar jamais foi devolvido à família, pois enterrado de forma clandestina, em lugar (até hoje) não sabido-descoberto. Pode ser que o primeiro Oscar do cinema brasileiro ajude a alterar tal anomalia histórica.
Confira os vencedores:
. “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles (Brasil) – melhor filme internacional
. “Anora”, de Sean Baker (EUA) – melhor filme (Alex Coco, Samantha Quan e Sean Baker, produtores), diretor, atriz (Mikey Madison), roteiro original (Sean Baker), montagem (Sean Baker).
. “O Brutalista”, de Brady Corbet (EUA) – melhor ator (Adrien Brody), fotografia (Lol Crawley), trilha sonora (Daniel Blumberg)
. “Conclave”, de Edward Berger (EUA-Inglaterra) – melhor roteiro adaptado (Peter Straughan)
. “Flow”, de Gints Zilbalodis (Letônia- França) – melhor longa de animação
. “No Other Land” (Sem Chão), de Hamdan Balll, Basel Adra, Rachel Szor e Yuval Abraham (Palestina e Israel) – melhor longa documental
. “Emília Pérez”, de Jacques Audiard (França) – melhor atriz coadjuvante (Zoe Saldaña), canção original (“El Mal”, de Camille, Clément Ducol e Jacques Audiard)
. “Wicked”, de Jon M. Chu (EUA) – melhor figurino (Paul Tawezell), direção de arte (Nathan Crowley e Lee Sandales)
. “A Substância”, de Coralie Fargeat (França) – melhor maquiagem e cabelos (Pierre-Olivier Person, Stéphane Guillon e Marilyne Scarselli
. “A Verdadeira Dor”, de Jesse Eisenberg – melhor ator coadjuvante (Kieran Colkin)
. “Duna 2” de Denis Villeneuve (EUA-Canadá) – melhores efeitos visuais (Lambert, James, Salcombe e Nefzer), melhor som
. “In the Shadow of the Cypress”, de Shirin Sohami e Hossein Molayemi (Irã) – melhor curta de animação
. “A Única Mulher da Orquestra”, de Molly O’Brien (EUA) – melhor curta documental
. “Eu Não Sou um Robô”, de Victoria Warmedam e Trent (Holanda) – melhor curta ficcional
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