“Vadias dos boches” são tema de “É Tempo de Amar”, melodrama francês com direito a ménage à trois

Por Maria do Rosário Caetano

As primeiras imagens de “É Tempo de Amar” – estreia francesa dessa quinta-feira, 6 de março, nos cinemas – causam a mais funda emoção no espectador. Emoção e calafrios. Afinal, em preto-e-branco, duro e realista, vemos imagens resgatadas do pós-Guerra. Elas documentam as “vadias dos boches” tendo suas cabeças raspadas em espaço público. Assim, todos saberão que foram “putas dos nazistas”. Que prestaram serviços sexuais (e de outras naturezas) aos militares alemães que, aliados ao colaboracionista Marechal Pétain, dirigiram os destinos da França durante a Segunda Guerra Mundial. Além da cabeça raspada, o corpo de algumas das “vadias” será marcado com reproduções da suástica hitlerista.

É do meio dessas imagens (em passagem do PB para a cor) que brotará a protagonista de “É Tempo de Amar”, Madeleine (Anaïs Demoustier), uma “vadia de boche”, ainda muito jovem. Veremos, em primeiro plano, sua barriga grávida, na qual foi desenhada uma suástica. Seu ventre traz o fruto de relacionamento mantido com um nazista.

O filme, dirigido por Katell Quillévéré, de 45 anos, nascida na Costa do Marfim e filha de pais europeus, propõe-se a resgatar a história de amor entre essa moça, marcada pelo passado, e um jovem, François (Vincent Lacoste, do balzaquiano “Ilusões Perdidas”), que prepara tese de doutorado em Arqueologia. Em busca de tranquilidade para escrevê-la, ele se instalará na pequena cidade à beira-mar.

Na praia, François acudirá um garotinho, prestes a se afogar, que vem a ser o filho da “vadia de boche”. Conhecerá, pois, Madeleine, que trabalha como garçonete em belo, amplo e movimentado restaurante. Ele, moço culto e refinado, nem imagina o que se passou com a jovem mãe solteira. Nem a população do balneário sabe. Nascerá entre os dois profundos laços amorosos.

Francois manca em consequência de paralisia infantil. É educado, sensível, atencioso. Quando ele parte, com a promessa de breve regresso, Madeleine fica desesperada. Está perdidamente apaixonada pelo rapaz.

Depois de angustiante espera, François regressará e os dois decidirão unir-se em matrimônio. E – sem spoiler – ela não tardará em revelar a François que o garoto é fruto de relação dela com integrante do exército nazista de ocupação. É aí que a história, iniciada na segunda metade dos anos 1940, irá se desenvolver, até chegar à década de 1960.

O quinto longa-metragem de Katell Quillévéré baseia-se em historia verídica, que se passou no seio de sua família. Um segredo mantido por anos e que, depois, acabaria por ser revelado. Numa praia da Bretanha, a avó da diretora conheceria e se casaria, no pós-guerra, com um rapaz culto e de meio social abastado, que adotaria legalmente o menino (de paternidade desconhecida). Sendo ela mãe solteira e moça de origem humilde, o matrimônio traria contrariedade aos pais do noivo.

A cineasta usa esse ponto de partida para criar um melodrama (ela evoca Douglas Sirk como fonte de inspiração) em fina sintonia temática com nosso tempo. Destaque para relações interraciais e homoafetivas. E, como se trata de um filme de pura cepa francesa, ainda que de acento melodramático, não faltará um ménage à trois.

Interessada em registrar “dores e desafios de uma mulher que vive à margem das convenções sociais de sua época”, Quillévéré não vai economizar no uso de recursos melodramáticos. Tudo parecerá, se comparado com o poderoso e arrebatador início documental, muito folhetinesco.

O material resgatado dos arquivos franceses é deveras impressionante. Deve ter ficado escondido por décadas, pois a França nunca gostou de expor procedimentos e imagens dos tempos do colaboracionismo.

Ninguém pense que assistirá, nos minutos iniciais, a imagens fugazes da raspagem dos cabelos de uma moça, igualmente marcada pelo símbolo nazista. As imagens reais revelarão duro espetáculo protagonizado também pelos antinazistas. Estes submeterão as colaboracionistas, em especial as “vadias”, a terríveis humilhações públicas, acompanhadas e aplaudidas pela multidão.

À medida que “É Tempo de Amar” vai se desenvolvendo e mergulhando no melodrama, começamos a imaginar em que mãos essa trama poderia resultar em um grande filme?

O primeiro diretor que nos vem à mente é Bernardo Bertolucci (1941-2018), um dos maiores poetas da sexualidade, realizador capaz de mergulhos da grandeza de “O Conformista” e, principalmente, “O Último Tango em Paris”. Ou, quem sabe, o Pedro Almodóvar da maturidade e de obras poderosas como “Carne Trêmula” e “Tudo Sobre minha Mãe”.

Mesmo com atores seguros e convincentes como Vincent Lacoste e Anaïs Demoustier, a diretora franco-marfinense não consegue realizar, ao longo de 122 minutos, retrato satisfatório de um tempo marcado pelo trauma da ocupação. A reconstituição de época é eficiente, mas o roteiro de Gilles Taurand se prende excessivamente ao episódico. Mesmo que introduza alguns ingredientes dissonantes (caso da ménage a trois e de desfecho de relação entre professor e aluno).

Anaïs Demoustier, com seu rosto angelical, embora já some 37 anos, convence como a jovem mãe solteira e, também, como a mulher madura em que se transformará. Mas o filme nos lega incômoda sensação de incompletude, principalmente, quando adentra terrenos mais complexos. Caso das relações do casal protagonista com um soldado afro-americano. E, também, das relações  homoafetivas de um homem que vive, ao mesmo tempo, duradoura relação heterossexual.

O filme parece bem intencionado ao explorar temas contemporâneos. Pena que o faça recorrendo à velha gramática dos folhetins.

 

É Tempo de Amar | Le Temps d’Aimer
França, 2023, 122 minutos
Direção: Katell Quillévéré
Roteiro: Gilles Taurand
Elenco: Anaïs Demoustier, Vincent Lacoste, Morgan Bailey, Hélios Karyo, Josse Capet, Paul Beaurepaire
Fotografia: Tom Harari
Música: Amin Bouhafa
Montagem: Jean-Baptiste Morin
Distribuição: Imovision

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