“Copan” e “Escrevendo Hawa”, por vencerem o Festival É Tudo Verdade, habilitam-se a disputar vaga no Oscar de Hollywood
Por Maria do Rosário Caetano
Os quatro vencedores da trigésima edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários — os longas “Copan” (foto) e “Escrevendo Hawa” e os curtas “Sunkande Kasáká” e “Eu Sou a Pessoa Mais Magra que Você Já Viu?” — estão pré-habilitados a disputar vagas ao Oscar, a badalada estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
O paulistano “Copan”, dirigido pela gaúcha Carine Wallauer, ex-moradora do edifício-cidade criado por Oscar Niemeyer, foi o escolhido por júri formado por Débora Ivanov, Roberto Berliner e Paulo Sacramento. Em sua justificativa, a trinca destacou “a ousadia formal aliada a um vigoroso rigor estético”. E mais: “por sua originalidade, precisão e delicadeza, pelo equilíbrio das cenas e pelas nuances que revelam os conflitos contemporâneos, alcançando singular síntese poética dos contrastes de nosso país”.
O filme causou furor em suas sessões paulistanas. E foi prestigiado também no Rio de Janeiro. A estreante Carine Wallauer, que assina ainda a direção de fotografia de “Copan”, registrou, por longos e longos meses, a vida no imenso edifício do centro da megalópole paulista. Nele vivem, desde sua inauguração em 1966, cinco mil moradores espalhados por 1.160 apartamentos (de 30 a 100 metros quadrados), quase 100 funcionários e alguns lojistas (café, livraria, salão de beleza, etc. etc.). Maior e mais povoado, portanto, que centenas de municípios brasileiros.
Ao contrário de Eduardo Coutinho, que criou relações afetivas com os moradores do “Edifício Master”, que por sua vez encantaram os espectadores, a cineasta-fotógrafa se divide entre a edificação arquitetônica e um olhar “frio” sobre os moradores, em especial, os muitos porteiros e responsáveis pela limpeza do imenso prédio.
Os malabarismos da câmara, pautados por visão esteticizante, são requintados, mas não nos permitem conhecer de perto os afetos (e desafetos) dos “copaneiros”. Só o síndico, que disputa mais uma eleição, é tema da ira de uma moradora. No pano de fundo, além da eleição do gestor do imenso prédio, veremos “civilizada” repercussão da disputa presidencial de 2022 (Lula versus Bolsonaro) dentro do imenso condomínio. Tudo com o olhar distanciado do cinema observacional.
Se o júri tivesse optado por “Rua do Pescador, nº 6”, da atriz-diretora Bárbara Paz (sobre as enchentes no Rio Grande do Sul), outro fotógrafo gaúcho teria seu poético trabalho imagística reconhecido. Bruno Polidoro captou, com olhar amoroso, a avalanche das águas sobre as vidas de centenas de pessoas, sem esquecer os animais, que também lutaram pela sobrevivência. Tudo em preto-e-branco, com paixão pelo humano, trilha sonora mobilizadora, montagem econômica e nenhum sensacionalismo.
O júri, para mostrar seu olhar marcado pela pluralidade, atribuiu merecidíssima Menção Especial ao carioca “Quando o Brasil Era Moderno“, de Fabiano Maciel. A justificativa: “por sua vasta pesquisa, pela contundente leitura da história de nossa arquitetura, política, arte e educação, pela clareza de sua interpretação e pela busca do ponto de inflexão, no qual um projeto de excelência sucumbe aos descaminhos históricos, destacamos ‘Quando o Brasil Era Moderno’”.
Com estes argumentos, Ivanov, Berliner e Sacramento mostram a largueza de seus olhares. Souberam reconhecer que um filme de narrativa “clássica” (narração off e depoimentos do tipo “cabeças falantes”) pode ser vivo, instigante, provocador.
Fabiano Maciel recorre à atriz Ana Maria Magalhães, diretora do longa arquitetônico-documental “Reidy – A Construção da Utopia”, para, com muito afeto, desenhar o embate entre as forças retrógradas (capitaneadas por Archimedes Memória e José Mariano) e as progressistas (lideradas por Lúcio Costa e Niemeyer). Estes tentavam inserir o Brasil na modernidade. Aqueles, passadistas, insistiam em preservar um Brasil que recriasse o Neocolonial eternamente.
Com sutileza e em tom ensaístico, o filme mostrará esse infernal embate entre forças obscuras e aqueles que apostavam na renovação. Durante o longo governo Vargas, o ministro Gustavo Capanema administrou, na base de “uma martelada no cravo, uma ferradura”, a contenda. Que seguiria, sem trégua, ao longo de décadas vindouras. Até chegar aos nossos polarizados dias, com o integralismo-fascismo revigorado pelas hostes bolsonaristas.
O filme de Fabiano Maciel conta com excelentes depoimentos (de Guilherme Wisnik, Maurício Lissovski, José Carlos Coutinho, Elisa Costa, Lauro Cavalcanti, esse autor do livro que deu origem ao filme, etc.). E ganha expressividade com cativante ressignificação de imagens de “A Idade da Terra”, de Glauber Rocha”, “O Homem do Pau Brasil”, de Joaquim Pedro, “Aleluia Gretchen”, de Sylvio Back, “ABC da Greve”, de Leon Hirszman, entre outros.
No terreno do curta-metragem, o júri brasileiro laureou o indígena “Sunkande Kasáká l Terra Doente”, de Kamilla Kasáká e Fred Rahal, e valorizou, com prêmio especial, o baiano “Palavra”, de DF Fiúza. E produziu sólidas justificativas. Para o primeiro: “por sua extraordinária força, precisão e pelo impacto de suas imagens, pela urgência de seu discurso, pela apresentação sensível em contraponto à devastação gerada pelo Agronegócio e pela distância a qualquer gesto redutor na apresentação de sua tragédia”.
Para o emocionante retrato de artesãs-vassoureiras da Bahia, palavras definidoras: “Pela atenção aos detalhes, pela construção poética e coesão na observação da atividade humana em plena harmonia com a natureza e pela delicada valorização dos saberes e tradições brasileiros e suas matrizes”.
O júri internacional — formado pela brasileira Eliza Capai, pelo estadunidense Bill Nichols e pelo argentino Andrés Di Tella — reconheceu o afegão (feito por diretora exilada na França) “Escrevendo Hawa”, de Najiba Noori, como o melhor longa, e o canadense ““Eu Sou a Pessoa Mais Magra que Você Já Viu?”, de Eisha Marjara, como o melhor curta.
Najiba Noori conta a história de sua mãe, Hawa, uma mulher afegã que, 40 anos depois de casamento arranjado (ela era uma criança), começa a estudar e a buscar uma vida independente. Só que o Talibã chega ao poder. Desmoronam-se os sonhos de Hawa, de sua filha Najiba e de sua neta Zahra. Do exílio, na França, a filha-cineasta ajuda a mãe a lutar por novos caminhos. Pela liberdade.
O júri justificou sua escolha: “Poucos filmes contam a história de uma nação por meio do amor e da compaixão que definem uma família imersa em uma cultura patriarcal — mas não limitada por ela”. E mais: “a cineasta narra a luta excepcional de sua mãe por independência no Afeganistão, onde conquistas como essa raramente são celebradas”.
O curta de Eisha Marjara, de longo e interrogativo título (“Eu Sou a Pessoa Mais Magra que Você Já Viu?”,), evoca a história de duas amigas, ainda crianças, que adotam dieta rigorosa. Uma delas, que já adulta relembrará o que se passou numa cidadezinha do Quebec canadense, ficará à beira da morte (por anorexia). Sua carta de amor será endereçado à menina problemática de outrora e lançará reflexões sobre temas, como imagem corporal e autoaceitação.
O júri internacional escolheu o curta canadense “por seu tratamento poderoso e poético da experiência da anorexia, expresso com toda a emoção bruta e a confusão de crescer em uma família imigrante”.
No campo dos prêmios especiais, há que registrar-se o duplo reconhecimento (pelos Montadores e pelos Pesquisadores) de “Bruscky: Um Autorretrato”, de Eryk Rocha, sobre a criação do multiartista pernambucano Paulo Bruscky, filho de pai nascido na Bielo Rússia. No campo dos agradecimentos, o recifense (de 76 anos) brilhou pela concisão e vistosa camisa vermelha. “Com esse filme” — escandiu em voz forte — “Eryk Rocha escaneou a minha alma”.
O Festival ÉTV prossegue, nesse domingo, 13 de abril, com exibição dos vencedores brasileiros e internacionais, na Sala Grande Otelo da Cinemateca Brasileira (17h e 19h). Às 21h, apresentará o hors concours “Viva Marília”, de Zelito Viana. No IMS, na Avenida Paulista, serão realizadas duas sessões especiais — “O Jardineiro, o Budista & o Espião”, da Noruega (18h) e “Esperando por List”, dos EUA (20h30).
Aí, a partir dessa segunda-feira, 14 — até 30 de abril —, o evento ganha extensão no streaming (Itaú Cultural Play), com seleção de dez curtas-metragens — seis da competição brasileira e quatro do homenageado Vladimir Carvalho (1935-2024).
Confira os vencedores:
. “Copan”, de Carine Wallauer (Brasil-França) – melhor longa brasileiro
. “Escrevendo Hawa”, de Najiba Noori (Afeganistão, França, Países Baixos e Catar) – melhor longa internacional
. “Sunkande Kasáká l Terra Doente”, de Kamilla Kasáká e Fred Rahal – melhor curta brasileiro
. “Eu Sou a Pessoa Mais Magra que Você Já Viu?”, de Eisha Marjara (Canadá) – melhor curta internacional
. “Bruscky: Um Autorretrato”, de Eryk Rocha (Brasil) – Prêmio edt (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual (para Caio Lazaneo), e Prêmio Maria Rita Galvão de melhor pesquisa (ABPA-PAVIC-REPIA) para Natália Lacerda Bruscky e Yuri Bruscky
. “Palavra”, de DF Fiúza (Bahia) – Prêmio edt (Associação de Profissionais de Edição Audiovisual), para DF Fiúza, e Menção Especial do Júri Oficial
. “Quando o Brasil Era Moderno“, de Fabiano Maciel (longa-metragem, RJ) – Menção Especial do Júri
. “Dois Nilos”, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro (RJ) – Prêmio Canal Brasil
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