“Sobreviventes”, filme-testamento de José Barahona, reúne elenco de três mundos para refletir sobre colonialismo e escravatura
Foto: Hugo Azevedo
Por Maria do Rosário Caetano
Em novembro do ano passado, o cineasta português, apaixonado pelo Brasil, José Barahona, morreu em sua cidade natal, Lisboa, vítima de câncer. Tinha apenas 55 anos e preparava, com sua companheira e parceira profissional, Carolina Dias, o lançamento brasileiro de seu mais novo longa-metragem, o alegórico “Sobreviventes”.
O roteiro do filme nasceu de argumento do próprio Barahona e foi escrito em parceria com o romancista angolano José Eduardo Agualusa, autor de “Nação Crioula”. Sua estreia se dá nessa quinta-feira, 24 de abril, em nosso circuito de cinemas de arte. E será, mais que um lançamento, uma homenagem a um profissional lusitano, que, na definição de sua companheira, Carolina Dias, amou profundamente o Brasil, embora tenha preservado sua alma portuguesa.
“Sobreviventes”, por circunstâncias inesperadas, acabou transformando-se no filme-testamento de José Barahona, que conseguiu reunir, como era seu desejo, elenco oriundo de três mundos (África, América Lusitana e Europa).
O primeiro longa ficcional do diretor luso-brasileiro – “Estive em Lisboa e Lembrei de Você”, realizado dez anos atrás – tinha um romance do escritor mineiro Luiz Ruffato como fonte originária. O livro integrou a coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras, que enviou romancistas brasileiros a diversas capitais internacionais com a missão de criar novas narrativas. A capital portuguesa gerou a história de um trabalhador de fábrica de tecidos, oriundo de Cataguases-MG, que decide ir viver em Portugal. Seu sonho é juntar dinheiro e regressar ao Brasil. No país europeu, ele descobrirá que a realidade do imigrante é bem diferente do que imaginara.
A parceria com Ruffato reforçaria, de vez, o interesse do cineasta pelo Brasil. Tornar-se-ia um dos sócios da produtora brasileira Refinaria Filmes, e aqui realizaria seus dois longas-metragens seguintes – “Alma Clandestina” (2018), e “Nheengatu – A Língua da Amazônia” (2020). O primeiro, sobre a estudante de Medicina e militante política Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dodôra, encarcerada, torturada e banida pela ditadura militar brasileira. E que se suicidaria, na Alemanha, país que a abrigara, depois da queda de Allende, no Chile, onde vivera a primeira etapa de seu exílio. Dodôra tinha 31 anos quando se jogou sobre os trilhos de um trem, em Berlim Ocidental. Para realizar “Alma Clandestina”, o diretor contou com a colaboração da atriz Sara Antunes, que deu corpo e voz à jovem de tão trágica e curta vida.
No norte do Brasil, Barahona realizou o longa documental “Nheengatu – A Língua da Amazônia”, com o qual buscou “o rastro de língua imposta aos nativos da Amazônia pelos antigos colonizadores”. Dali em diante, abraçou seu projeto mais ambicioso, “Sobreviventes”.
Seu derradeiro filme se situa em meados do século 19, numa ilha deserta, não identificada. Mas poderemos localizá-la na Costa Brasileira. Um navio naufraga e dele salvam-se alguns homens e duas mulheres, mãe e filha. Um dos sobreviventes é negro.
A luta pela sobrevivência, em condições adversas, sem água e alimentos, vai alterar as relações de poder no pequeno grupo. Os brancos, responsáveis pela escravização dos oriundos da África, necessitarão da ajuda de um serviçal preto. As relações se tornarão cada vez mais tensas. Escalar as escarpas é um desafio. Superada essa adversidade, eles irão deparar-se com um coletivo quilombola, pautado por outras regras de convivência. Haverá entendimento? Buscarão novas formas de vida em grupo?
As paisagens do filme, captadas em espetacular preto-e-branco pelo diretor de fotografia Hugo Azevedo, encherão os olhos do espectador. Os atores têm bons desempenhos e formam significativa representação de povos da África, Portugal e Brasil. Mas, apesar da engenhosidade do roteiro e das boas ideias de Agualusa e Barahona, muitas situações resultam artificiais. E alguns diálogos soam didáticos. A trama nos faz lembrar, em certa medida, “Triângulo da Tristeza”, o mais famoso dos filmes do sueco Ruben Östlund, por uns amados e por outros odiado. Östlund detém duas Palmas de Ouro em Cannes, a primeira conquistada com “The Square: A Arte da Discórdia” (2017), a segunda por “Triângulo da Tristeza” (2022).
Pode ser que o roteiro do filme luso-brasileiro já estivesse pronto quando Östlund ganhou sua segunda Palma de Ouro (depois o Prêmio Europeu de Cinema e três indicações ao Oscar de Hollywood — melhor filme, direção e roteiro original). O que não se pode negar é que há algo em comum entre a parte final do filme sueco e os náufragos de “Sobreviventes”.
Além de contar com atores brasileiros (destaque para Roberto Bomtempo), o filme tem trilha sonora do brasiliense Phillippe Seabra e conta com a voz poderosa de Milton Nascimento.
Sobreviventes
Brasil-Portugal, 2024, 111 minutos
Direção: José Barahona
Roteiro: José Eduardo Agualusa e José Barahona
Elenco: Paulo Azevedo, Miguel Damião, Allex Miranda, Anabela Moreira, Kim Ostrowskij, Roberto Bomtempo, Zia Soares, Ângelo Torre, Hugo Narciso
Fotografia: Hugo Azevedo
Montagem: João Braz
Trilha sonora: Phillippe Seabra (participação deMilton Nascimento)
Direção de arte: Ana Teresa Castelo
Efeitos especiais: Jorge Carvalho
Distribuição: Pandora Filmes
FILMOGRAFIA
José Barahona Núncio (Lisboa, 29/03/1969-23/11/2024)
Cineasta e produtor formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, com cursos de aperfeiçoamento na Escola Internacional de Cine e TV de San Antonio de los Baños-Cuba e New York Film Academy
2024 – “Sobreviventes” (ficção)
2020 – “Nheengatu – A Língua da Amazónia”(doc.)
2018 – “Alma Clandestina” (híbrido)
2015 – “Estive em Lisboa e Lembrei de Você” (ficção)
2010 – “ O Manuscrito Perdido” (documentário)
2008 – “Milho” (documentário)
2007 – “ Evocação de Barahona Fernandes (documentário)
2007 – “ A Cura” (curta)
2004 – “Pastoral” (curta)
2001 – “Sofia de Mello Breyner Anderson” (documentário)
2000 – “Anos de Guerra – Guiné 1963-1974” (curta)