“Volveréis”, realização de Jonás Trueba e hino de devoção à cinefilia, abre a mostra “Amor ao Cinema”, no CineSesc
Por Maria do Rosário Caetano
Não poderia haver filme mais apropriado para a noite inaugural de mostra intitulada “Amor ao Cinema”. O escolhido – “Volveréis” (foto), de Jonás Trueba, filho do oscarizado Fernando “Belle Epoque” Trueba – é um canto de amor à arte das imagens em movimento.
Na Espanha, país de origem do eleito “Volveréis” — um dos dez melhores filmes de 2024, segundo a Cahiers du Cinéma —, nos deparamos com título que significa “Vocês Voltarão”. Os norte-americanos o rebatizaram de forma redutora e pouca inspirada – “The Other Way Around”. Foram copiados, como costuma acontecer em países colonizados pelo cinema de Hollywood, pela distribuidora brasileira. Que adotou o pobre, vazio e pouco chamativo “Ao Contrário”.
Quem comparecer, nessa quarta-feira, 7 de maio, à sessão inaugural da mostra “Amor ao Cinema”, organizada pelo CineSesc, que vá de espírito armado contra esse absurdo “Al Revés”, nunca enunciado por Jonás Trueba.
Basta assistir ao belíssimo filme madrilenho para entender o que o integrante de um dos mais famosos clãs cinematográficos da Espanha quis dizer. Ele estudou, apaixonadamente, a – digamos – “Teoria do Recasamento”, proposta pelo ensaísta estadunidense Stanley Cavell (1926-2018) em seu livro “Buscas da Felicidade – A Comédia de Recasamento em Hollywood” (no original “Pursuits of Happiness: A Hollywood Comedy of Mariage”).
Depois de minucioso contato com as comédias hollywoodianas da década de 1930 e 1940 (como “Aconteceu Naquela Noite”, “Núpcias de Escândalo”, “Jejum de Amor”, “Cupido é Moleque Teimoso” etc.), Cavell concluiu que, em suas narrativas, tais filmes exploravam a ideia de que o amor e a felicidade poderiam ser encontrados mesmo depois do divórcio, pelos mesmos pares que haviam interrompido sua relação conjugal”. Eles se “recasariam”, já mais experientes nos tratos do amor, e seriam felizes, quem sabe — aí sim — para sempre.
Um cineasta francês – Arnaud Deplechin – trabalhou, a seu modo, o tema do “recasamento” no filme “Os Fantasmas de Ismael” (2017). E o fez com elenco europeu estelar – seu ator-fetiche Mathieu Amalric, a bela e oscarizada Marion Cotillard, a cult Charlotte Gainsbourg (e os coadjuvantes Louis Garrel e Alba Rohrwacher).
A proposta do belíssimo “Volveréis” envereda-se por caminho diferente para chegar ao mesmo destino. Jonás Trueba, que escreveu o roteiro com seus dois protagonistas – os atores Itsaso Arana e Vito Sanz –, parte de uma ideia do pai da moça, a Ale, uma cineasta, que está montando, com dedicado profissional do ramo, seu novo filme.
Ela é casada, há 15 anos, com o ator (inclusive de seu novo longa-metragem) Alex. Os dois decidem dar uma festa para comemorar o fim do relacionamento conjugal. O farão seguindo ideia defendida pelo pai da jovem cineasta (interpretado pelo cineasta Fernando Trueba, na verdade pai de Jonás).
Segundo o pai de Ale, não se deve fazer festa no dia das bodas, mas sim no dia da separação, concebida como o momento da libertação das amarras impostas pela rotina matrimonial. O casal diretora-ator começa a mobilizar amigos, inclusive os badalados roqueiros de Granada (tema de “Segundo Prêmio”) para a festa, que acontecerá no último dia do verão.
Ale vai, em companhia de um irmão, convidar o pai para a festa. Ele recebe os filhos no jardim de sua bela residência, com uma saborosa paella, mas fica perturbado ao saber da ideia da filha (e do genro) de se separar. Mas como, deve pensar a filha, ele não fôra, sempre, o defensor do “descasamento” festivo?
Bem, na hora do frigir dos ovos, o velho vacila. Mas oferece sua bela casa como possível sede da festa e presenteia a filha com livros que, decerto, a ajudarão a viver aquele momento de separação. Dois dos volumes chamarão bastante atenção: o de Stanley Cavell, sobre o Recasamento, e “La Repetición”, do filósofo Soren Kierkegaard. A cineasta fará deles seus livros de cabeceira.
Além de uma linda história de amor, “Volveréis” (me nego a chamá-lo de “Ao Contrário”), é um filme metalinguístico (sem nenhuma chatice do tipo “adivinhe que filme estou citando!”), uma comédia romântica diet e um filme-cabeça, sem ser pretensioso. O espectador pode frui-lo numa boa, sem sentir-se alijado de seu processo de criação-realização. E de sua delicada e saborosa trama, na qual reflexões estéticas e filosóficas se processam de forma orgânica e sedutora.
Itsaso Arana, a Ale, e Vito Sanz, o Alex, compõem um par encantador. Torcemos para que não se separem. E, se eles se separarem, que promovam um recasamento cavelliano.
Num flashback, de grande beleza, veremos a dupla, nos tempos de imensa paixão e juventude, visitando Paris. E procurando, no Cemitério de Montmartre, um determinado túmulo. O de François Truffaut, claro, pois o filme traz algo da atmosfera impregnada nas histórias amorosas de Antoine “Beijos Roubados” Doinel.
Outra citação explícita ao cinema – no caso a uma “comédia de recasamento” (“Levada da Breca”, 1938) – se passa no Museu de História Natural de Madri. Quem não se lembra da doida sequência do filme de Hawks, na qual a personagem de Katharine Hepburn quase destrói peça de grande valor zelada pelo paleontólogo David Huxley (Cary Grant)? Sequência filmada no Museu de História Natural mais famoso dos EUA. Claro que perto das confusões dos personagens hawksianos, o que acontece no filme espanhol levaria nota dez em bom comportamento.
A terceira edição da mostra “Amor ao Cinema” apresentará, até 21 de maio, uma dezena de filmes, que se somarão a debates e oficinas. Para os adultos — os cinéfilos em primeiro lugar — haverá sessões de filmes dedicados a alguns dos grandes artífices do cinema (Fellini, Bertolucci, Hitchcock, Truffaut, Almodóvar etc. etc.).
Para a criançada, haverá mostra dedicada ao Cinema de Animação da Rússia (e URSS), pouco conhecido no Brasil, mas já premiado com o Oscar (caso de “O Velho e o Mar”, de Aleksander Petrov, hipnotizante poema visual construído com ‘técnica da areia’. Foi laureado pela Academia de Hollywood em 1999).
A equipe do CineSesc, comanda por Simone Yunes, selecionou vários curtas russos e um longa-metragem soviético, “A Rainha da Neve” (ver lista abaixo). Como os filmes são destinados aos infantes, eles teriam que ser dublados. Na falta de títulos nessa condição, a trupe do cinema da Rua Augusta se deu ao meritório trabalho de convocar profissionais do ramo para fazer tradução simultânea do russo para a português.
Graziela Marchetti explica como se dará o processo: “’A Rainha da Neve’ vai ter dublagem ao vivo durante a sessão. Os dubladores ficarão na sala, com microfones ligados e dublarão, ao vivo, as falas das personagens”. Muitos pais vão fazer questão de aproveitar a oportunidade de viver essa experiência tão rara numa das melhores salas de cinema do país. Tudo dentro do tradicional “Cineclubinho do Sesc”.
Detalhe importantíssimo: haverá filmes exibidos pelo serviço de streaming do Sesc (Cinema em Casa, de alcance nacional). E muitos, claro, serão exibidos no telão do cinema, que a muitos encanta por dispor de um bar separado da sala de exibição apenas por um vidro transparente (ou seja, umas 16 pessoas poderão – se quiserem – assistir ao filme de dentro do bar, sentadas em torno de mesinhas, e tomando um saboroso café ou apreciando um quibe recheado de abóbora vermelha). Ah, os ingressos têm preço camarada: custam apenas 10 reais.
Confira os filmes escolhidos:
CLÁSSICOS EM 35 MILIMETROS
. “Close-Up”, de Abbas Kiarostami (Irã)
. “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci (cópia remasterizada em 4K, França-Itália)
. “Fedora”, de Billy Wilder (EUA)
. “O que Terá Acontecido a Baby Jane?”, de Robert Aldrich (EUA)
. “Splendor”, de Ettore Scola (Itália)
RETRATOS DOCUMENTAIS
. “Fellini, Confidências Revisitadas”, de Jean-Christophe Rosé (França)
. “Pedro Almodóvar – O Rebelde de La Mancha”, de Catherine Ulmer Lope (França)
. “Miyazaki, O Espírito da Natureza”, de Léo Favier (França)
. “O que Ela Disse: As Críticas de Pauline Kael” de Rob Garver (EUA)
. “Jean Cocteau”, de Lisa Immordino Vreeland (França)
. “Michel Gondry – Faça Você Mesmo”, de François Nemeta (França)
. “A Mulher que Criou Hollywood”, de Julia e Clara Kuperberg
. “O Roteiro da minha Vida – François Truffaut”, de David Teboul e Serge Toubiana (França)
. “My Name is Alfred Hitchcock”, Mark Cousins (Escócia, Irlanda)
FILMES BRASILEIROS
. “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuary Ortega e Ernesto Carvalho (RS-PE)
. “Mambembe”, de Fábio Meira (RJ)
. “Estranho Caminho”, de Guto Parente (Ceará)
. “A Rocha que Voa”, de Eryk Rocha (RJ)
. “Carmen Miranda: Bananas is my Business”, de Helena Solberg (Brasil, EUA)
. “Cinema Novo”, de Eryk Rocha (RJ)
. “Janela da Alma”, de de João Jardim e Walter Carvalho (RJ)
. “Ozualdo Candeias e o Cinema”, de Eugenio Puppo (SP)
. “Dois Nilos”, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro (curta-metragem, RJ)
. “Quebra Panela”, de Rafael Anaroli (curta-metragem)
FAIXA RUPTURAS
. “Jeanne Dielman”, de Chantal Akerman (Bélgica)
. “Shaft”, de Gordon Parks (EUA)
. “Tangerine”, de Sean Baker (EUA)
. “Um Filme para Beatrice”, de Helena Solberg (Brasil)
. “Festa de Família”, de Thomas Vinterberg (Dinamarca, pelos 30 anos do Manifesto Dogma 95)
CINECLUBINHO
. Domingo, dia 11, às 15h00 – com dublagem ao vivo: “A Rainha da Neve”, de Liev Atamánov (URSS, 1957, 64 minutos): Numa noite gelada de inverno, a Rainha da Neve leva o pequeno Kai para seu reino gelado, transformando o coração bondoso e solidário do garoto em um pedaço de gelo. Guerda, a amiga de Kai, vai em busca dele para tentar salvá-lo.
. Domingo, dia 18, às 15h00: Sessão de curtas: “A Jibóia e o Vigia”, de Anton Diakov (Rússia, 2015, 15 minutos): Uma história sobre o cotidiano inusitado de dois personagens aparentemente incompatíveis: o vigia de um zoológico e uma jibóia. O estranho casal, em busca de seu sonho, encontra-se em situações difíceis, mas, no final, superando tudo, são recompensados pela amizade . “Ele Não Pode Viver Sem Cosmos”, de Konstantin Bronzit (Rússia, 2019, 16 minutos) – Uma história de uma mãe e seu filho, de amor e o destino dos seres humanos. “Kóstia”, de Anton Diakov (Rússia, 2014, 5 minutos): O esqueleto Kóstia nasce em um cemitério. Criança feliz, ela caminha por uma metrópole moderna, rumo a um futuro desconhecido e belo. “Onde Morrem os Cães”, de Svetlana Filippova (Rússia, 2011, 12 minutos): Um homem cresce e deixa a sua casa. Durante toda a sua vida, ele quer regressar ao lar, em busca do seu passado. Mas coisas se passam e ele não pode mudá-las: sua mãe envelhece, a casa fica meio destruída e o seu cachorro morre. Acontecimentos inevitáveis aos quais estamos todos destinados. “Os Navios dos Tempos Passados”, de Georgi Bogusslavski (Rússia, 2014, 15 minutos): O último dia de um capitão no seu navio. Após ser demitido, ele permanece em uma ilha minúscula, onde existe apenas um farol. Navegando pelas águas do tempo, a animação comprova que a morte não é o fim da viagem.
Mostra Amor ao Cinema
Data: de 7 a 21 de maio
Local: CineSesc e Sesc Digital (confira a programação, se presencial e digital, no site do Sesc)
Sessões presenciais: CineSesc – Rua Augusta, 2075 – Cerqueira César, São Paulo (ingressos a R$10,00)
Sessões online: Sesc Digital – site ou aplicativo, disponível para download nas lojas Google Playe App Store
Inscrições para as oficinas e cursos: as inscrições para os cursos e oficinas tanto online quanto presencial acontecem no site de inscrições de cursos do Sesc São Paulo. As vagas são limitadas e dedicadas maiores de 16 anos.