Olhar de Cinema consagra circuito cinéfilo curitibano e “Cais”, documentário baiano, com a rara “tríplice coroa”
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba (PR)
“Cais” (foto), de Safira Moreira, longa documental baiano, conquistou a tríplice coroa (melhor filme segundo o júri oficial, o público e a crítica) na décima-quarta edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, que, por nove dias, movimentou seis salas de cinema, exibiu 91 filmes e causou sensação com Retrospectiva Agnès Varda e avant-première do aliciante e performático “Tardes de Solidão”, de Albert Serra, espanhol nascido na Catalunha.
Em sua noite inaugural, o Olhar lotou a Ópera de Arame, com “Cloud – Nuvem da Vingança”, do japonês Kiyoshi Kurosawa. Para o encerramento, convocou a prata-da-casa – o longa “Verde Oliva”, de Wellington Sari. Este filme, um thriller curitibano, presta tributo a Brian De Palma, um dos ídolos do realizador paranaense. Sobre o cineasta norte-americano, Sari escreveu sua dissertação de mestrado, já devidamente impressa em livro (“Brian De Palma – A Opacidade Mascarada”).
A sessão de “Verde Oliva” deveria ocorrer apenas no Cine MON (Museu Oscar Nimeyer), um dos cartões postais da capital paranaense, cujo símbolo é o mesmo do festival – um imenso olho. Mas a procura pelo thriller de Sari estimulou de tal forma a cinefilia curitibana, que os 345 assentos do MON foram insuficientes. O jeito foi abrir sessões extras no Cine Passeio (salas Luz e Ritz, com 88 lugares cada uma) e na Cinemateca de Curitiba (110 lugares). O que demonstra, de forma efusiva, que o filme ultrapassou o círculo de “parentes e amigos” da produtora O Quadro, da qual Wellington Sari é sócio-fundador.
O Paraná se fez representar nessa décima-quarta edição do Olhar de Cinema por quatro longas-metragens. Para a competição principal, o escolhido foi “Torniquete”, de Ana Catarina Lugarini, com Marieta Severo no elenco. A ele somaram-se “Notas Sobre um Desterro”, de Gustavo Castro (na Mirada Paranaense), “Nem Toda História de Amor Acaba em Morte”, de Bruno Costa (Sessão Especial), e o convidado da noite de encerramento (“Verde Oliva”).
Se a produção estadual continuar nesse ritmo, em breve, o comando do Olhar de Cinema terá que criar competição estadual espelhada nos modelos do Gauchão rio-grandense, que o Festival Gramado abriga há quase três décadas; da Mostra Brasília, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro; do Olhar do Ceará (no Cine Ceará), da Mostra Baiana (do Festival Coisa de Cinema) e da Mostra Sob o Céu do Nordeste (Festival Aruanda de João Pessoa).
O Olhar curitibano só faz crescer a cada nova edição. Suas sessões inaugurais, realizadas nos últimos três anos na Ópera de Arame (com “Casa Izabel”, de Gil Baroni, “Retrato de um Certo Oriente”, de Marcelo Gomes, e, esse ano, com “Cloud”) transformaram-se em acontecimento dos mais concorridos. O abandono dos cinemas de shoppings, substituídos por espaços culturais, como o MON, o Cine Passeio, a Cinemateca, o Teatro da Vila e o Cine Guarani, só fez ampliar o charme do Olhar. E contribuiu – neste festival tão “cabeçudo” quanto o de Tiradentes — com estímulo a um saudável clima de sociabilidade e badalação.
A festa cinematográfica conquistou a cidade e passou a difundir, em bloco, alguns de seus mais charmosos cartões postais. Empresas privadas (de celulares, bebidas, pipoca gourmet etc.) passaram a associar suas marcas ao Festival Internacional de Cinema de Curitiba. A capital, de 1,7 milhão de habitantes, expõe seu orgulho ao receber os que a visitam, seja em sua imensa Ópera de Arame (com capacidade para 1.572 espectadores), seja no MON, lembrado como “o maior museu da América do Sul” (suas dimensões são mesmo avantajadas e Oscar Niemeyer caprichou ao desenhá-lo).
Voltemos, pois, à noite de encerramento e entrega de prêmios. O documentário baiano “Cais” merecia a tríplice coroa?
Sim e não. Sim, por suas qualidades poéticas. O filme é amoroso e muito bonito. Sua narrativa se constroi com o passeio, pelas águas do Rio Paraguaçu, de sua diretora-personagem (Safira Moreira) com o filho Amani, ainda bebê, no colo. Temas como a maternidade, a memória e a ancestralidade afloram em imagens de ofícios artesanais (como o fabrico do dendê, da farinha ou de joias). E nos testemunhos de mulheres e homens dedicados ao Jerê e a outros rituais afro-brasileiros. Sem esquecer a sabedoria de Tinganá Santana e Mateus Aleluia, este o criador dos Ticoãs, que divide sua vida entre Cachoeira, no Recôncavo Baiano, e Angola, na África.
Não, porque a “tríplice coroa” dá a entender que “Cais” era infinitamente melhor que seus concorrentes. E não era. Tanto que não houve unanimidade no júri oficial, que reuniu o cineasta Pedro Freire (“Malu”), a atriz Bruna Linzmeyer, a alemã Barbara Wurm (colaboradora dos festivais de Leipzig e Oberhausen), a brasileira Ana Souza, da equipe do Sundance Festival, nos EUA, e o historiador e produtor audiovisual paraense Rodrigo Antônio.
Dos oito concorrentes, cinco foram laureados (o que demonstra relativa pulverização). Três (o paranaense “Torniquete”, o baiano “Gloria & Liberdade” e o carioca “Paraíso”) não receberam nenhum dos oito troféus Olhar.
Fora a consagração de “Cais” (que do júri oficial só recebeu um prêmio, o principal), houve dois troféus importantes para “Explode São Paulo, Gil”, de Ana Clara Escobar, escolhida como a melhor diretora, e sua protagonista, a faxineira-cantora Gildeane Leonina, a Gil, pela melhor atuação (ou performance). O Olhar premia atores em uma única categoria, sem a divisão de protagonistas e coadjuvantes. E a escolha pode ser destinada a intérpretes transsexuais, femininos ou masculinos.
Ao longa queer goiano “Apenas Coisas Boas”, de Daniel Nolasco, o júri atribuiu três prêmios – melhor roteiro (do próprio Nolasco), direção de arte e som.
O vigoroso “Aurora”, do recifense-francês João Vieira Torres, só recebeu um troféu – o de melhor fotografia para Camila de Freitas e Wilssa Esser. O filme merecia mais, muito mais.
“A Voz de Deus”, do uspiano Miguel Antunes Ramos — documentário como “Cais”, “Explode São Paulo” e “Aurora” — recebeu um prêmio técnico – o de melhor montagem (para Yuri Amaral).
O júri internacional, composto pelos cineastas Fernanda Lomba e Tomás Osten, e pela hispânico-holandesa Mercedes Martinez, da equipe do Festival de Roterdã, elegeram o documentário belgo-congolês “A Árvore da Autenticidade”, de Sammy Baloji, como o melhor filme (entre os seis concorrentes). Ambientado em floresta tropical africana, o longa-metragem, ancorado em textos (orais e escritos) muito longos, revela o peso do passado colonial e seus vínculos indissociáveis com as mudanças climáticas contemporâneas. A justa causa defendida por Baloji parece ter falado mais alto que o projeto estético do filme.
O júri atribuiu Prêmio Especial a “Ariel”, de Lois Patiño, ficção hispano-lusitana, ambientada em ilha portuguesa impregnada pelo universo fabular de “A Tempestade”, de William Shakespeare.
Entre os concorrentes da mostra Novos Olhares, vocacionada a filmes que “flertam com o risco, a invenção e caminhos desconhecidos em seu uso da linguagem cinematográfica”, o escolhido foi o brasileiro “Voz Zov Vzo”, de Yhuri Cruz.
Primeiro longa-metragem de Yhuri, “Vzo” acompanha Lucca, jovem trans da periferia de São Paulo, que viaja até Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina), em busca do pai que nunca conheceu.
Dois dos curtas-metragens premiados têm ligações acadêmicas com a Unila (Universidade da Integração Latino-Americana), sediada em Foz do Iguaçu e criada pelo MEC de Fernando Haddad (Governo Lula) para reunir estudantes das Américas Hispânica e Lusitana. “Fronteiriza”, de Rosa Caldeira e Nay Mendl, ganhou o Troféu Olhar de melhor curta-metragem. E a Crítica (Júri Abraccine) escolheu “Ontem Lembrei de Minha Mãe”, de Leandro Afonso.
Confira os vencedores:
Competição Brasileira (longas)
. “CAIS” (Bahia), de Safira Moreira – melhor filme pelo Júri Oficial, Público e Crítica (Abraccine). Prêmio Canal Like
. “EXPLODE SÃO PAULO, GIL” (São Paulo), de Maria Clara Escobar – melhor direção e melhor performance (Gildeane Leonina, a Gil)
. “APENAS COISAS BOAS” (Goiás), de Daniel Nolasco – melhor roteiro (Daniel Nolasco), direção de arte (Marcus Takatsuka) e som (Guinle Martins, Jesse Marmo, Naja Sodré e Nolasco)
. “AURORA”, de João Vieira Torres (Bahia, Paris) – melhor fotografia (Camila de Freitas e Wilssa Esser)
. “A VOZ DE DEUS” (São Paulo), de Miguel Antunes Ramos – melhor montagem (Yuri Amaral)
. “VOZ ZOV VZO”, de Yhuri Cruz (Rio de Janeiro) – melhor filme da mostra Novos Olhares (filmes experimentais-ousados)
Competição Brasileira (curtas)
. “FRONTERIZA”, de Rosa Caldeira e Nay Mendl (SP-Paraná-Unila, Universidade da Integração Latino-Americana) – melhor curta-metragem
. “AMERICANA”, de Agarb Braga (Pará)- Prêmio Especial do Júri
. “GIRASSOIS”, de Jéssica Kinhares e Miguel Chaves (Rio de Janeiro) – Prêmio Canal Brasil e Prêmio do Público
. “INTERIOR, DIA”, de Luciano Carneiro e Paulo Abrão: Prêmio AVEC (Associação de Cinema e Vídeo do Paraná) – melhor curta paranaense
. “ENTRE SINAIS E MARÉS”, de João Gabriel Ferreira e João Gabriel Kowalski (Paraná) – Menção honrosa do Prêmio AVEC
. “ONTEM LEMBREI DE MINHA MÃE”, de Leandro Afonso (Paraná-Unila, Universidade da Integração Latino-Americana) – Prêmio da Crítica (Abraccine)
. “SECO”, de Stefano Volpi – Prêmio Aquisição Cardume de Curtas. O Cardume premiou, também, “Americana”, de Agarb Braga, e “Maira Porongyta – O Aviso do Céu”, de Kujaesage Kaiabi
Competição Internacional (longas)
. “A ÁRVORE DA AUTENTICIDADE”, de Sammy Baloji (Bélgica-Congo): melhor filme
. “ARIEL”, de Lois Patiño (Espanha-Portugal) – Prêmio Especial do Júri
Competição Internacional (curtas)
. “CONSEGUIMOS FAZER UM FILME”, de Tota Alves (Portugal) – melhor curta
. “O REINADO DE ANTOINE”, de José Luis Jiménez Gómez (República Dominicana) – menção honrosa
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