“Cazuza: Boas Novas” desenha retrato afetivo do autor de “Brasil”, “Ideologia” e “Pro Dia Nascer Feliz”
Foto © Miriam Prado
Por Maria do Rosário Caetano
Nilo Romero e Roberto Moret fizeram a coisa certa ao construir a narrativa que dá sustentação ao documentário “Cazuza: Boas Novas”, estreia dessa quinta-feira, 17 de julho, nos cinemas brasileiros. Mesmo quem assistiu aos ficcionais “Cazuza, o Tempo Não Para”, de Sandra Werneck e Walter Carvalho (3 milhões de espectadores em 2004), e ao recente “Homem com H”, de Esmir Filho (640 mil), há de deparar-se com envolventes e corajosas surpresas.
Muito se reclamou da ausência de Ney Matogrosso na ficção de Werneck e Carvalho, protagonizada por Daniel Oliveira. Na cinebiografia do famoso “seco & molhado”, Esmir deu grande destaque ao relacionamento entre os dois artistas. Romero e Moret voltam ao tema com duas entradas de Ney, ambas muito substantivas.
Primeiro, ele relembra o relacionamento amoroso que o uniu a Cazuza por intensos três meses. Depois, a amizade que manteriam até o fim da (breve) vida do roqueiro. O destaque desloca-se, então, para a parceria artística, já que Ney Matogrosso dirigiu um dos mais importantes shows de Cazuza, quando este já se encontrava debilitado pela Aids. E quis iluminá-lo de forma que as luzes formassem “uma cruz branca” às costas do artista.
O público conhecerá muito sobre os três anos (1987, quando recebeu o trágico diagnóstico, até sua morte, em julho de 1990) durante os quais Cazuza sofreu longas internações, criou novas canções (com múltiplos parceiros), fez shows e gravou três discos.
Tamanha produtividade tornou-se possível, porque ele contou com a força dos amigos e dos pais, Lucinha e João Araújo. As vozes que se somam no documentário conviveram com o artista nos tempos de alegria e, principalmente, nos momentos mais difíceis.
Os músicos que tocaram com Cazuza se lembrarão de momento terríveis. Aqueles em que o artista “desmaiava, tinha delírios ou xingava o público”. Mas não haverá sentimento piedoso, lacrimoso, em nenhum momento da narrativa. Fora o diretor-roteirista, que não contém o choro em instante fugaz, todos os testemunhos dados ao filme são serenos, amorosos, mas nunca piegas.
O terceiro momento a chamar atenção do público tem a ver com apelativa reportagem de capa da revista Veja, publicada em abril de 1989. Lucinha Araújo, mãe de dedicação integral ao filho, conta que eles estavam na Serra Fluminense. Cazuza, muito ansioso, contava as horas para ver a revista impressa. Tanto que mandaram buscar um exemplar no Rio.
Quando a publicação chegou às mãos dele, veio a decepção. O título na capa já anunciava a que vinha: “Cazuza – Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. No texto interno, de oito-páginas-sem-assinatura, o sensacionalismo e o moralismo se somavam de forma assertiva: a obra musical do jovem artista (então com 31 anos, recém completados) não sobreviveria ao fim prematuro e trágico.
A entrevista que embasaria a matéria fôra feita pela repórter Ângela Abreu, da Sucursal do Rio. Mas o texto foi reescrito por redatores no tom exigido pelo editor Alessandro Porro (1930-2003). Frejat, em seu testemunho sobre aquele momento, lembrará que a repórter se demitiria da publicação da então poderosa Editora Abril. Já fragilizado pela doença (ele morreria 15 meses depois), Cazuza seria internado. A TV Cultura faria substantiva matéria sobre o mal estar causado pelo sensacionalismo da publicação paulistana. A reportagem ganhará destaque no filme.
“Cazuza: Boas Novas” nasceu do desejo de Nilo Romero, um dos integrantes da banda do roqueiro carioca, de reviver aqueles anos difíceis, mas produtivos do amigo. Ele contava com sua memória e com a fértil ajuda de muitos colegas de ofício. E sabia da existência de registros domésticos de muitos encontros sociais (como o casamento do “barão vermelho” George Israel) e até da íntegra de um dos mais importantes shows de Cazuza. A qualidade de tais registros, claro, deixa a desejar. O suporte parece ser o VHS, que se popularizou na década de 1980. Por sorte, os testemunhos (nunca depoimentos professorais ou explicativos) são registrados como se tivessem sido feitos com semelhante pegada doméstica.
Não foram utilizados enquadramentos formais, nem a excelência do 16 milímetros (ou 35), capazes de dar solenidade e alta definição ao tempo presente. Claro que as imagens de nossos dias são melhores, mas não a ponto de somar o precário com o muito elaborado.
A montagem (da craque Jordana Berg, colaboradora de Eduardo Coutinho) é cadenciada e precisa. A hora e meia (exatos 91 minutos) de narrativa flui como um rio tranquilo (ou convulsivo, como haveria de preferir Cazuza). Os testemunhos, frutos de conversas serenas, são bons, alguns ótimos. Leo Jaime, Frejat, Christiaan Oyens, Flávio Colker, João Rebouças e Ney Matogrosso brilham. Lucinha Araújo, a mãe, é uma força da natureza. Protetora, mas ao mesmo tempo sincera, ela contará que, ao saber que o filho cuspira na bandeira brasileira ao cantar “Brasil” (“mostre tua cara/quero ver quem paga/prá gente ficar assim”), retrucou: “ele não faria isso!”. Cazuza a desmentiria: “Cuspi sim e duas vezes”.
Nilo Romero, além de músico da banda de Cazuza, é um dos três autores da famosa “Brasil” (tema da novela “Vale Tudo”), junto com George Israel e o próprio Cazuza. Integrava o grupo instrumental que o acompanhou no famoso show do Canecão (o da cuspida). Nilo foi, também, o diretor musical do derradeiro show de amigo e parceiro (“O Tempo Não Para”, origem de disco ao vivo).
O último álbum de Cazuza gravado em estúdio fôra “Burguesia”. Seu produtor, João Rebouças, lembrará a urgência do artista para registrar as faixas do disco, que ele recebia já na hora de gravar. Gravava. E pronto. Era inútil dizer que não estava bom, que podiam regravar, fazer melhor. O cantor dizia que ficaria daquele jeito mesmo. Estava no fim as suas forças.
Sobre o parceiro de Nilo na direção do filme, Roberto Moret, vale lembrar que ele trabalha, há 15 anos, com audiovisual (nas funções de roteirista, produtor e, agora, diretor). A união dos dois foi muito produtiva, pois “Cazuza: Boas Novas” é um filme que chegou para enriquecer os dois sucessos de bilheteria que o antecederam (“O Tempo Não Para” e “Homem com H”).
Quem revisitar as duas obras ficcionais e for ao cinema assistir ao longa documental de Nilo e Roberto, terá farta matéria-prima para concluir que o veredito dos redatores-e-do-editor da Veja oitentista estavam redondamente enganados. “Eles passaram, eu (Cazuza) passarinho!”, diria Mario Quintana.
E música é o que não faltará ao documentário. Estão em sua trilha sonora os maiores sucessos da breve carreira de Cazuza. Além de “Brasil” e “Ideologia”, quase vinte outras (destaque para “Faz Parte do meu Show”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “O Tempo Não Para”, “Todo Amor que Houver nessa Vida” e “Codinome Beija Flor”). E a que dá nome ao filme – “Boas Novas”.
Brasil, 2025, 91 minutos
Direção: Nilo Romero e Roberto Moret
Roteiro: Nilo Romero
Fotografia: Felipe Julian
Montagem: Jordana Berg
Pesquisa: Beatriz Sokolik e Natália Amarante Furtado
Testemunhos: Roberto Frejat, George Israel, Leo Jaime, Ney Matogrosso, Lucinha Araújo, Arthur Dapieve, Gilberto Gil, Flora Gil, Flávio Colker, Marcos Bonisson, João Rebouças, Christiaan Oyens, Márcia Alvares, Nilo Romero
Produção: 5e60 Conteúdo e Canal Curta!
Distribuição: Kajá Filmes