Cinema se despede de Bernardet, professor, ator, ensaísta e crítico ferino de “filmes funerários” e da fuga de temas como “Militares, Mídia e Poder Econômico”

Foto © Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano

O cinema brasileiro e, em especial, duas universidades (UnB e USP) acordaram na manhã desse sábado, 12 de julho, com a notícia da morte do professor, ator, ensaísta, roteirista, cineasta e crítico ferino de “filmes funerários”. E, também, de documentaristas incapazes, segundo ele, de enfrentar temas relevantes como as Forças Armadas, a Mídia e os Empresários. Ou seja, o poder militar, o econômico e o dos grandes veículos de comunicação.

O cineasta e pensador belgo-franco-brasileiro Jean-Claude Bernardet, diretor de “São Paulo, Sinfonia e Cacofonia” e “Sobre Anos 60”, morreu em São Paulo, sua cidade adotiva, onde viveu 75 de seus 88 anos. Sofreu um AVC, foi socorrido no Hospital Samaritano, mas não resistiu. Será velado, na tarde desse domingo, na Cinemateca Brasileira. Depois seu corpo será cremado.

O intelectual francês, nascido por acaso na Bélgica, chegou ao Brasil na adolescência. Logo enturmou-se no grupo de Paulo Emilio Salles Gomes, na emergente Cinemateca Brasileira. Alguns anos mais tarde, em companhia emiliana, foi trabalhar na efervescente UnB (Universidade de Brasília), então um projeto utópico, concebido por Darcy Ribeiro.

O jornalista e professor Pompeu de Souza, ao criar a Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, quis consolidar, dentro dela, um curso superior de Cinema. Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emilio e o casal Lucila Ribeiro e Jean-Claude Bernardet foram convidados a ajudar na implantação da nova escola. Mas veio a Crise de 1965 e 200 professores, entre eles, Oscar Niemeyer, pediram demissão coletiva. Bernardet entendeu o gesto como equivocado. Mas foi voto vencido. A história lhe deu razão.

Naquele período, quando Brasília foi seu território experimental e temporário, ele escreveu, com Joaquim Pedro de Andrade, o roteiro do média-metragem “Brasília, Contradições de uma Cidade Nova”. Depois, escreveria roteiros com (ou para) outros realizadores, em especial, Luiz Sérgio Person (“O Caso dos Irmãos Naves” e o inacabado “A Hora dos Ruminantes”). Mais tarde, estabeleceria sólida parceria com Tata Amaral. Criou, em 2006, com alunos da USP e amigos, o Nudrama (Núcleo de Dramaturgia da Universidade de São Paulo) e colaborou com roteiros dos jovens que estavam mudando a “cara” do cinema paulistano. Entre eles, Fernando Bonassi, Francisco César Filho, Roberto Moreira, Kiko Goiffman e Cristiano Burlan.

Ao aposentar-se de suas tarefas como professor da USP e enfrentar grave enfermidade nos olhos, Bernardet passou a dedicar-se a outra de suas paixões: atuar. E a codirigir filmes como “#eagoraoque” (longa-metragem), e os curtas “Cama Vazia” e “A Última Valsa”.

O respeitado (e iconoclasta) professor da USP, que publicou mais de 20 livros (ensaísticos e ficcionais) – dois deles, incontornáveis: “Brasil em Tempo de Cinema” e “Cineastas e Imagens do Povo” – sofria por não poder mais ler e escrever. Era irreversível o avanço dos problemas oftalmológicos. Mesmo assim, continuou a escrever pequenos (e instigantes) textos em seu blog. E seguia vendo filmes. Especialmente, os brasileiros e de expressão francesa, suas línguas maternas. Pois já não conseguia ler legendas.

Sua “natureza do escorpião”, por sorte, não permitia que Bernardet se calasse. Continuava, com seu atrevimento permanente, expressando suas ideias, doesse a quem doesse.

Bernardet enfrentou a Aids e a venceu. Outras doenças chegaram para atormentar seus dias. Nos curtas “Cama Vazia” e A Última Valsa”, que realizou em parceria com Fábio Rogério, vociferou contra a “mercantilização da finitude existencial”, empreendida pela indústria farmacêutica, interessada em manter doentes em aparelhos sofisticados, consumindo diárias em hospitais caríssimos e remédios igualmente custosos. A revista Piauí publicou, com destaque, texto de grande beleza e coragem de Bernardet sobre o assunto.

O professor-cineasta-ator, que nunca perdeu o sotaque e fazia questão de carregar no erres franceses, deixa uma filha, Lygia, fruto de sua união com a pesquisadora Lucila Ribeiro Bernardet (1935-1993).

PROVOCAÇÕES DE BERNARDET

. DOCUMENTÁRIOS QUE EVITAM TEMAS ESSENCIAIS (Forças Armadas, Mídia e Poder Econômico) – Depois de assistir ao documentário “Memórias do Saque” (Fernando Solanas, 2004), Bernardet afirmou, em palestras e entrevistas, que “os documentaristas brasileiros não se atreviam a realizar filmes como “Memorias del Saqueo”, pois não costumam enfrentar temas espinhosos. Em especial, o poder das instituições financeiras e da mídia (impressa e eletrônica) no processo político-econômico-social brasileiro. Da mesma forma que não se dispunham a abordar o papel (as intervenções) das Forças Armadas na nossa história política”.

. “FILMES FUNERÁRIOS” (intervenção de Bernardet em debate no Festival Aruanda, em João Pessoa, na PB) – Essa onda de cinebiografias ficcionais e documentais que se multiplica pelo país está gerando ‘filmes funerários’. Conheci fatos da vida pessoal do cineasta Roberto Santos (1928-1987), de quem fui amigo pessoal. Quando assisti ao documentário de Amílcar Claro (“Roberto”, 1994), tive que dizer ao realizador que ele fugira das “zonas de sombra” do biografado. Que eram muitas. No Brasil, documentários e ficções sobre os mais diversos personagens costumam, em maioria, evitar tais ‘zonas de sombra’. Por isso, estamos criando um gênero — o de “filmes funerários”.

. A PRECARIEDADE CRIATIVA DE “ARUANDA” (no Festival Aruanda, em João Pessoa) – Quando Linduarte Noronha nos mostrou “Aruanda” (1960), em São Paulo, ele fez ressalvas à qualidade técnica do filme e se desculpou por tais insuficiências. Prometeu que o próximo filme seria melhor. Foi justamente essa precariedade que os comentaristas do Sul valorizaram. Era ela que expressava a pobreza da região e se harmonizava com os camponeses filmados, era ela a expressão e a força de um novo cinema possível. As ‘insuficiências’ artísticas, a pobreza da produção e sua origem nordestina permitiram que “Aruanda” se tornasse o receptáculo de um projeto nascente, de anseios e aspirações de uma nova geração de cineastas, liderada por Glauber Rocha.

BERNARDET NO CINEMA

Jean-Claude Bernardet (Charleroi, Bélgica, 02/08/1936 – São Paulo, 12/07/2025)

COMO DIRETOR:

1971 – “Eterna Esperança: sem Pressa, sem Pausas, som as Estrelas”, parceria com João Batista de Andrade
1994 – “São Paulo: Sinfonia e Cacofonia”
1999 – “Sobre os Anos 60”
2022 – “#eagoraoque”, parceria com Rubens Rewald
2023 – “Cama Vazia”, com Fábio Rogerio
2024 – “A Última Valsa”, com Fábio Rogério

COMO ROTEIRISTA:

. “Brasília, Contradições de uma Cidade Nova”, de Joaquim Pedro de Andrade
. “O Caso dos Irmãos Naves”, de Luiz Sérgio Person
. “Um Céu de Estrelas”, de Tata Amaral
. “Através da Janela”, Tata Amaral
. “Hoje”, Tata Amaral

COMO ATOR:

. “Ladrões de Cinema”, de Fernando Côni Campos
. “P.S. – Post Scriptum”, de Romain Lesage
. “Disaster Movie”, de Wilson Barros
. “A Cor dos Pássaros”, de Herbert Brodl
. “Antes do Fim”, Cristiano Burlan
. “Pingo d’Água”, de Taciano Valério
. “FilmeFobia”, de Kiko Goifman
. “Fome”, de Cristiano Burlan
. “A Navalha do Avô”, de Pedro Jorge
. “Disseram que Eu Voltei Americanizada”, de Vitor Ângelo
. “Agreste”, de Dellani Lima
. “Copo Vazio”, de Dellani Lima
. “Orgia – o Homem que Deu Cria”, de João Silvério Trevisan

COMO PERSONAGEM:

. “A Destruição de Bernardet”, de Claudia Priscilla e Pedro Marques
.“Crítica em Movimento”, de Kiko Mollica

COMO ENTREVISTADO (principais):

. “Os Ruminantes”, de Tarsila Araújo e Marcelo Mello
. “Crítica”, de Luiz Alberto Cassol (série)
. “Candango, Memórias do Festival”, de Lino Meirelles
. “Plano B”, de Getsemane Silva
. “Person”, de Marina Person
. “Utopia de Distopia”, de Jorge Bodanzky

PRINCIPAIS LIVROS:

1967 – “Brasil em Tempo de Cinema”
1979 – “Cinema Brasileiro: Proposta para Uma História”
1980 – “O que É Cinema”
1982 – “Piranhas no Mar de Rosas”
1983 – “O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira – ou Repercussões em Caixa de Eco Ideológica” (em parceria com Maria Rita Galvão)
1985 – “Cineasta e Imagens do Povo”
1991 – “O Vôo dos Anjos: Bressane, Sganzerla”
1995 – “Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro”
2018 – “O Autor no Cinema”

(*) Bernardet escreveu, também, livros ficcionais e estudou a experiência do Contestado (“A Guerra Camponesa do Contestado”, 1979).

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