Miúcha e Elton Medeiros destacam-se no festival digital de documentários e séries do Canal Curta!
Foto: “Miúcha – A Voz da Bossa Nova”, de Liliane Mutti
Por Maria do Rosário Caetano
“Miúcha – A Voz da Bossa Nova”, de Liliane Mutti, brasileira radicada em Paris, e “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad, não figuram na lista dos favoritos do público da terceira edição do Claro Festival Curta! Documentários, mas merecem urgente conferência.
Até a próxima terça-feira, 15 de julho, estes filmes estarão disponibilizados no espaço digital, ao lado de dezenas de longas e séries documentais. Basta sintonizar, gratuitamente, sua TV ou computador no endereço festivalcurtadocs.org.br.
O cardápio é dos mais ricos. Há filmes sobre a escritora e agitadora cultural Heloisa Buarque de Hollanda (“O Nascimento de H. Teixeira”, de Roberta Canuto), Jards Macalé (“Macaléa”, de Rejane Ziles), Clarice Niskier (por Renata Paschoal) e Brizola (por Marcos Azambuja). E mais: documentários sobre o grupo Uakti e sobre Santos Dumont (ambas de Eder Santos), a última criação de Helena Solberg (“Um Filme para Beatrice”), o longa Hermeto Pascoal (“O Menino d’Olho d’Água”, de Lírio Ferreira e Carolina Sá). E, não se pode esquecer, uma produção gaúcha, “Arte da Diplomacia”, de Zeca Brito, que chama atenção pela novidade temática (e pelos novos personagens que mobiliza), a exposição de arte moderna brasileira realizada em Londres, em 1945, para arrecadar fundos para os Aliados que combatiam os nazistas.
No terreno das séries há realizações do crítico de cinema e DJ Marcelo Janot (“Na Trilha do Som”), de Carla Laudari sobre a escritora Zélia Gattai (“Memórias e Saudades”), de Rodrigo Grota (“Mulheres Libertárias e Inspiradoras”), de Letícia Simões e Hilton Lacerda (“Caixa Postal”, que traz a correspondência, entre outros, de escritores como Lygia Fagundes Telles e Drummond, Graciliano Ramos e Dalcídio Jurandir e Vinicius de Moraes e Chico Buarque).
Há, também, filmes e séries sobre temas afro-brasileiros, como “Saberes Quilombolas”, de Plínio Gomes e Bruno Saphira. O cardápio é imenso (ver matérias publicadas pela Revista de CINEMA). Todos os filmes e séries estão submetidos a júri oficial, que conta com presenças ilustres, como Suely Carneiro e Marieta Severo. E a júri popular.
Liliane Mutti realizou “Miúcha – A Voz da Bossa Nova” em parceria com Daniel Zarvos. Se ela não contasse com apoio europeu, não teria chegado a resultado tão poderoso.
O que a dupla Mutti-Zarvos desencavou sobre o casal Heloisa Buarque de Hollanda, a Miúcha (1937-2018), e João Gilberto (1931-2019), e sobre a difusão da Bossa Nova no mundo há de deixar o espectador não-iniciado boquiaberto.
As imagens do casamento de Miúcha e João, em 1965, parecem feitas ontem, de tão belas, coloridas e preservadas. Idem para entrevista de jornalista brasileira com a dupla, nos EUA, quando Bebel Gilberto, hoje com 59 anos, não chegara aos dois. Sem jogo de cintura, a entrevistadora se perde frente ao “laconismo eloquente” de João e à rebeldia da pequenina Bebel.
As imagens idílicas de João beijando a jovem esposa num parque novaiorquino também são encantadoras. Mas nada surpreende mais que a sequência na qual o astro francês Sacha Distel (1933-2004) canta um standart da Bossa Nova e bota lindas francesinhas (as distel-letes) a dançar os supostos “passos bossanovistas”.
O material é de tamanha beleza e “saúde visual” que chegamos a ter inveja de norte-americanos e europeus no item preservação de acervos. São, ainda, apaixonantes as imagens de “Copacabana Palace” (Steno, 1962), produção italiana, vista em sequência protagonizada por João Gilberto e Tom Jobim, lindos e ao sol, com Luiz Bonfá ao fundo. E lindas ‘ragazze’ bronzeadas circundando o trio.
O cinema, aliás, tem espaço nobre no filme. Lembremos que Miúcha trabalhou com Nelson Pereira dos Santos em documentários por ele dedicados a Sérgio Buarque de Hollanda e a Antonio Brasileiro – o magnífico “A Música Segundo Tom Jobim”.
No filme de Mutti e Zarvos, veremos imagens de “Rio 40 Graus” e “Rio Zona Norte”, ambos de NPS, de “Orfeu do Carnaval” (Marcel Camus, 1959), “Weekend em Paris” (Jean Mazon, 1962), “Ting Toung” (Lelouch, 1962), “Les Veuves de 15 Ans” (Jean Rouch, 1965), “Carnet Brésiliens” (Pierre Kast, 1966), “Réponse de Femmes: Notre Corps, Notre Sexe” (Agnès Varda, 1975), “A Lira do Delírio” (WLJr, 1978). Enfim, o que não falta a “Miúcha – A Voz da Bossa Nova” é imagem de arquivo. E arquivos bem conservados, desses que enchem os olhos.
Pondere-se que as imagens de altíssima qualidade técnica estão na primeira e mais longa parte do filme: aquela que vai do início do namoro da jovem Miúcha, que estudava Artes em Paris, com o já famoso João Gilberto. O encontro se dá em solo francês. Ele saía de um casamento com Astrud Gilbert (1940-2023), mãe de seu primeiro filho, João Marcelo.
A jovem Buarque de Hollanda, que falava francês e inglês, se preparava para ser artista plástica. Mas sonhava ser cantora. Para ela, os pais, Dona Amélia e Sérgio Buarque, esperavam um bom casamento. Quando a notícia de que estava apaixonada por João chegou aos ouvidos paternos, o clima ficou tenso. Foi preciso que o cantor pedisse ajuda a Jorge Amado, baiano como ele.
Amigo de Sérgio Buarque, Jorge escreveu bilhete amoroso e aliciador, defendendo o rapaz de Juazeiro, que tinha lá suas esquisitices, mas era um grande coração, um baiano maravilhoso. Veremos o texto, preservado pela Fundação Casa de Jorge Amado, na íntegra, no documentário miuchiano.
Matrimônio oficiado, o casal vai viver em Nova York, depois no México. Os primeiros anos foram razoavelmente calmos. E Bebel nasceu em 1966. Mas depois a barra foi pesando. João, perfeccionista obsessivo, só pensava em aperfeiçoar seu violão e seu canto. Ensaiava, ensaiava. Nunca estava satisfeito.
Miúcha tocava seu violão e planejava gravar um disco. O marido, porém, chegou a trancar o instrumento para que ela não o utilizasse em ensaios na madrugada. A barra pesava a cada novo ano. Mesmo assim, viveram juntos (com separações espaçadas) até que Miúcha regressasse, de vez, ao Brasil, com Bebel, em meados da década de 1970.
Ela deixou sua voz gravada no elepê “Stan Getz – The Best of Two Worlds Featuring João Gilberto”. Cantou lindamente “Chovendo na Roseira”, em inglês, e outros números. Inclusive “Isaura”, em português, com o marido João.
Miúcha até aparece na capa do disco, ladeando Stan Getz e seu saxofone. Do outro lado, está João e seu inseparável violão. O nome dela não aparece na capa, nem nos créditos do disco. O caso mais escandaloso de apagamento de nome feminino na história da Bossa Nova em sua aventura norte-americana.
O filme de recorte feminino-feminista de Liliane Mutti (e Zarvos) assume o lado de Miúcha desde o título. É exagero dizer que a cantora é “A Voz da Bossa Nova”. Justiça seja feita: ela é uma das vozes do movimento. Assim como Sylvinha Telles, Nara Leão (também anfitriã dos primeiros bossa-novistas), Astrud Gilberto e Wanda Sá.
A elegância amorosa de Miúcha encontrará, pois, em Mutti, uma diretora que promoverá a reparação da trajetória dessa artista que viveu à sombra de João Gilberto, nos EUA e no México, e só pôde dedicar-se à música, para valer, quando regressou ao Brasil e, aqui, gravou 13 discos. Alguns, solo, outros, coletivos (dois deles com Tom Jobim).
Uma artista-mulher que dirá, no documentário conduzido por sua voz, com sincero orgulho, que teve o prazer de viver juntinho dos três maiores nomes da Bossa Nova (João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim).
O filme estrutura-se com o poderoso arquivo que Mutti conseguiu trazer à luz (para nosso desespero, os materiais brasileiros são de qualidade nunca mais que razoáveis). Além dos arquivos, muitos bem editados (por Daniela Ramalho e Isabel Castro), ouviremos a voz de Silvia Buarque, que lê as cartas enviadas pela tia de Paris, de NY e Ciudad de México, e veremos as aquarelas da artista plástica que estudou na França. E que trilharia dois caminhos (o do canto e o das artes visuais). Algumas de suas aquarelas dão origem a ótimas cenas animadas.
Um registro final e algumas perguntas: por que esse filme continua inédito nas telas brasileiras? Que forças impedem que ele chegue aos cinemas, ao horário nobre das TVs, ao streaming? O filme, que consumiu tantos anos de trabalho, é de 2022. Passou pelo Festival do Rio, pelo In-Edit etc.
Nós, que reclamamos tanto de não dispormos de um poderoso longa-metragem sobre a trajetória de João Gilberto (e que nos entristecemos a cada briga por sua herança), dificilmente assistiremos a filme semelhante a esse realizado por Mutti e Zarvos, no qual ele aparece tão bem. Sim, João transformou a vida de Miúcha, no final dos anos 1960 e começo dos 70, num inferno. Mas ela jamais falará mal dele. Contará, nas entrelinhas, que passou por momentos realmente muito difíceis. Para, em seguida, assegurar que a vida dos dois se tornou melhor depois da separação. Foram amigos até a morte dela, em 2018, aos 81 anos. Ele morreria sete meses depois, aos 88, em 2019.

A outra joia do festival do canal Curta!, no campo musical, é “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”. Trata-se de projeto modesto, que deve ter mobilizado um décimo do orçamento de “Miúcha – A Voz da Bossa Nova”. Afinal, o diretor Pedro Murad lança mão de dois recursos – ambos singelos. Primeiro, coloca o derradeiro parceiro de Elton Medeiros (1930-2019), Vidal de Assis, de 40 anos, a conversar com o coautor de “O Sol Nascerá”. Sim Elton compôs essa peça de fina ourivesaria com Cartola. A dupla fez também “Peito Vazio”, “Injúria”, “Sofreguidão”…
O segundo recurso — registro em cor de vidas suburbanas, dedicadas a pequenos ofícios — evoca imagens alusivas ao universo sonoro das canções que Elton Medeiros fez solitariamente ou com parceiros. Como Zé Ketti (“Mascarada”), Hermínio Bello de Carvalho (a magnífica “Pressentimento”), Paulinho da Viola (“Onde a Dor Não Tem Razão”, “Vida”, “Ame”), Vergueiro e Feithal (“Mais Feliz”), Salgado Maranhão (“Recato”), Bolacha (“Maioria Sem Nenhum”), Vidal Assis (“Dança do Tempo”).
No melhor momento do filme, Elton, tido como irascível e teimoso, dirige tais atributos a Cartola. Diz que o autor de “As Rosas Não Falam” não aceitava efetuar as mudanças sugeridas enquanto compunham juntos. Era tão teimoso, que ao gravar o fruto da parceria, o fazia do jeito dele. “Mas eu também gravava do meu jeito”. Portanto, constatamos felizes tratar-se de relação em que, como diz o dito popular, o sujo falava do mal lavado. Dois compositores geniais com suas idiossincrasias.
Os irmãos Moreira Salles dedicaram um filme a Chico Buarque no qual evocaram o “País da Delicadeza Perdida” (o Brasil, claro). Pois é esse mesmo Brasil que choca Elton Medeiros. Ele gosta de lembrar de tempos passados, de gafieiras povoadas por mulheres educadas e cheirosas, que dançavam maravilhosamente bem; a calma do subúrbio; uma Portela de sambas enredos memoráveis (“ninguém reunia seis pessoas para compor um samba!”). Cego, sonha em recuperar a visão. Fala de amores findos e de encontros misteriosos. Nunca expõe o nome de uma companheira. Tudo é alusivo e gentil.
O grande compositor, nascido no subúrbio carioca, evoca o ZiCartola, os encontros com Clementina de Jesus (que “nasceu e morreu pobre” e a quem dedicou uma composição “Clementina Cadê Você”) e com Paulinho da Viola, um dos parceiros no show de antologia “Rosa de Ouro”, engendrado por Hermínio Bello de Carvalho.
Elton “Pressentimento” Medeiros faz muita falta. Partiu aos 89 anos. Este filme, que também passou pelo Festival do Rio e pelo In-Edit, nos permite reencontro dos mais sensíveis e delicados com sua rica herança artística. Uma viagem que dura envolventes 95 minutos.
OS MAIS VISTOS do FEST CURTA!
Mostra “Produção Canal Curta!”:
. “Na Trilha do Som”, série de Marcelo Janot, que documenta a trajetória e o processo criativo de compositores de trilhas sonoras brasileiras
. “O Nascimento de H. Teixeira”, documentário de Roberta Canuto, sobre a vida e a obra da intelectual Heloísa Teixeira, que morreu em março último
. “Brasil Visual”, série de Rosa Melo sobre produções artísticas contemporâneas que expandem o campo da arte e a fronteira do visível
Mostra “Outras Janelas”:
. “Macaléia”, documentário de Rejane Zilles, sobre a amizade criativa de Hélio Oiticica e Jards Macalé
. “Primo da Cruz”, documentário de Alexis Zelensky sobre a trajetória deste pintor singular, ao mesmo tempo em que revela os mecanismos do racismo e da exclusão social no Brasil
. “Saberes Quilombolas”, documentário de Plínio Gomes e Bruno Saphira, sobre as relações entre o trabalho e as expressões culturais de três comunidades quilombolas de Santo Amaro da Purificação, na Bahia.