Festival de Gramado celebra Marcélia Cartaxo, “A Natureza das Coisas Invisíveis” e seis novos curtas-metragens

Foto: Marcélia Cartaxo com o Troféu Oscarito © Edison Vara/Ag.Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

A quarta noite da mostra competitiva do Festival de Gramado somou longa ficcional vindo de Brasília (o delicado “A Natureza das Coisas Invisíveis”) a seis curtas-metragens e emocionante tributo à atriz Márcelia Cartaxo. A protagonista de “A Hora da Estrela” e “Pacarrete” recebeu o prestigiado Troféu Oscarito por sua trajetória artística, que soma quatro décadas.

A atriz paraibana vai acrescentar o elegante troféu, tributo à memória do comediante Oscarito, a seu Urso de Prata, ganho em Berlim, a quatro Candangos, dois Kikitos e ao Prêmio Grande Otelo, da Academia Brasileira de Cinema.

Gramado instituiu, duas décadas atrás, esse prêmio, o Oscarito, que, involuntária e jocosamente, dialoga com o Oscar de Hollywood. Ao recebê-lo das mãos da atriz Isabela Fillardis, Marcélia externou sua emoção e agradeceu o reconhecimento. Resumiu sua trajetória e lembrou momentos difíceis. Sem esquecer os êxitos e alegrias.

Na tarde que antecedeu a premiação-tributo, a atriz paraibana manteve longa conversa com a imprensa. À Revista de CINEMA ela contou que vivera muitos “momentos de rejeição e desesperança”. Por ser nordestina e fugir do padrão de beleza tornado hegemônico, passou longos anos, depois do Urso de Prata, fazendo testes, cujas respostas eram negativas. Quando recebia um sim, era sinal de que lhe caberia “papel de empregada doméstica, sem história pregressa, sem família e com poucas falas”. Só queriam — desabafou — “que eu varesse o chão e servisse café aos protagonistas e a seus convidados”.

O reconhecimento, em Berlim, pela lispectoriana Macabeia de “A Hora da Estrela”, aconteceu em fevereiro de 1986. A atriz, ao regressar à sua Cajazeiras natal, num pequeno avião, foi recebida com flores e muita festa. Só não esperava enfrentar a barra pesada que a esperava no Rio de Janeiro. Ao invés de boas oportunidades na TV, cinema e teatro, encontrou recusas. “Ela foi muito infeliz no Rio”, relembra o conterrâneo e amigo Bertrand Lira. “Por isso, regressou à Paraíba”.

Quinze anos depois, Marcélia viveria o que considera um divisor de águas em sua carreira: “fui convidada pelo cineasta (cearense-argelino) Karim Aïnouz para interpretar a prostituta Laurita, em ‘Madame Satã’, lançado em 2002. “Que maravilha! Karim me oferecia uma prostituta, uma personagem que me permitiria extravasar emoções e vida”. Dali em diante — entende a atriz— “fui revalorizada e convidada para muitos filmes”. Outro marco em sua carreira foi a recriação da obstinada bailarina cearense Pacarrete. O filme de Allan Deberton causou furor, venceu Gramado e somou dúzias de prêmios em muitos festivais e paradeiros. E, claro, demorados aplausos a seu desempenho.

Nesse exato momento, Marcélia Cartaxo soma dias de glória. Agora, de posse do Troféu Oscarito, ela segue para Tocantins, onde irá protagonizar o longa “De Dora e de Dores”. Na TV, participa da novela-série “Guerreiros do Sol” (disponível na Globoplay) e já gravou a segunda temporada de “Cangaço Novo”. Tem convite para o novo filme de Sérgio Machado e terá sua história contada em cinebiografia ficcional escrita e dirigida por Allan “Pacarrete” Deberton. E tem mais: emprestará seu nome ao único cinema de Cajazeiras (a inauguração depende de espaço na agenda da atriz) e participa do esforço de divulgação de “A Praia do Fim do Mundo”, de Petrus Cariry, no qual desempenha importante papel. Já vai longe o tempo de dores e rejeições.

FINITUDE E LUTO

O longa-metragem brasiliense “A Natureza das Coisas Invisíveis”, da estreante Rafaela Camelo, vem fazendo significativa carreira nos festivais. Tudo começou no segmento ‘Generation’ do Festival de Berlim. E prosseguiu nos festivais de Guadalajara, no México, Cartagena, na Colômbia, e Seattle, nos EUA. Gramado é a primeira vitrine brasileira do filme. Mês que vem, ele será exibido na noite de encerramento do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que comemora 60 anos de sua criação (1965-2025).

Para compor sua trama, Rafaela passou por vários laboratórios de roteiro e contou com a colaboração de Juliana Rojas, diretora, roteirista e cultora do cinema de horror. Mas “A Natureza das Coisas Invisíveis” não mergulha no gênero. No máximo impregna a narrativa de elementos sobrenaturais ou inusitados (como uma porca, vista pela protagonista, uma menina de 10 anos. Ela traz imensa cicatriz no peito. Fruto de transplante do coração).

A inquieta Glória (Laura Brandão), a menina de 10 anos, passa seus dias num hospital, onde sua mãe (interpretada por Larissa Mauro) trabalha como enfermeira. Convive com doentes, conversa com eles, descobre lugares onde estão esquecidos pertences dos que morreram, se entedia. Até conhecer Sofia (Serena), menina de sua idade, que chega ao hospital com sua Bisa (Aline Marta Maia), necessitada de atendimento emergencial. A velha senhora corre risco de morte. Enquanto aguarda a chegada de sua mãe, Simone (Camila Márdila), Sofia fará amizade com Glória.

As duas meninas acreditam que a piora na saúde da Bisa é causada pela internação hospitalar. Ficarão muito felizes quando a paciente for levada para seu sítio, nos arredores goianos de Brasília. Lá poderão conviver com a Bisa, com duas mães e com rezadeiras, que entoarão seus cânticos e prepararão unguentos para curar males ou prantear a morte.

Equipe de “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

No debate do filme, Rafaela Camelo citou sua principal fonte de diálogo: “o cinema asiático, em especial ‘As Coisas Simples da Vida’ (“Yi Yi”, de Edward Yang, Taiwan, 2000)”. Apaixonada pelo filme produzido na China insular, a brasiliense, formada pela UnB, construiu uma família de afetos, centralizada em mulheres (crianças, mães e avós-bisavós).

Os homens aparecem em papéis coadjuvantes, mas sem caricaturas. “As mulheres são a razão de ser do filme” — ponderou Rafaela, pois “são elas que cuidam dos outros”, já que os homens nunca o fazem.

O filme, de narrativa lacunar, dá aos espectadores a missão de ir montando essa história de crianças curiosas, mães solos que carregam, sem desesperar-se, o zelo pelos parentes, e rezadeiras que ajudam a curar feridas físicas e espirituais.

O elenco, por inteiro (incluindo as duas meninas), imprime sensibilidade e delicadeza a cada gesto, os diálogos são singelos, a sintonia entre atores experientes (caso de Larissa, Márdila e Marta Maia) e atores não-profissionais é orgânica. Os veteranos João Antônio e Chico Santana, em participações especiais, enchem a tela. O primeiro imprime afeto e humor ao seu vovô hospitalizado. O segundo, companheiro da Biza, canta (dubla) sucesso de Fernando Mendes em imagem onírica e pastoral.

O filme traz subtexto identitário, mas o faz sem pregação didática. Tudo é colocado de forma sutil. Com espaço para que os espectadores participem da construção da narrativa, dando asas à própria imaginação. A fotografia, da hispano-americana Francisca Sáenz Arguto, é de beleza singular. “A Natureza das Coisas Invisíveis” nasceu de parceria de produção entre o Brasil e o Chile.

CURTAS DE TEMÁTICAS NEGRAS

Depois da exibição de “Coisas Invisíveis”, o público (o Palácio dos Festivais tem estado lotado, todos os dias) assistiu a mais seis curtas da competição brasileira.

A maratona começou com o gaúcho “Aconteceu à Luz da Lua”, de Cryston Afronário, e prosseguiu com o paulista “FrutaFizz”, de Kauan Okuma Bueno, o carioca “Samba Infinito”, de Leonardo Martinelli, o alagoano “O Mapa em que Estão meus Pés”, de Luciano Pedro Jr, o baiano “Na Volta Eu te Encontro”, de Urânia Munzanzu, e mais um carioca, “Réquiem para Moïse”, de Caio Brido e Susanna Lira.

Cryston Afronário, portalegrense nascido e criado no Morro da Cruz, constrói, com “Aconteceu à Luz da Lua”, um registro de espaços e vidas negras, ausentes da iconografia da grande capital sulista. Ele imprime em suas imagens a dor causada à sua comunidade pelo assassinato de dois jovens. Onze personagens (um deles interpretado pelo próprio Afronásio) são vistos ao longo de 19 minutos. Maior destaque é dado a Wellington, de 18 anos, que estuda com afinco para o vestibular.

O jovem realizador gaúcho participa do Festival de Gramado com dois filmes — este “Aconteceu à Luz da lua”, na competição nacional, e outro (“E Depois de Fevereiro”) no Gauchão. Estas estreias indicam que ele tem o firme propósito de colocar a gente preta do Rio Grande do Sul nas telas. Aguardemos seu amadurecimento como realizador.

“FrutaFizz” é uma comédia contida, que se segura no talento de seu protagonista, o mineiro Renato Novaes, integrante da linha de frente da Filmes de Plástico, de Contagem. O filme, uma produção paulista, mostra dois empregados de uma transportadora que empreendem viagem ao interior. Um deles, Mauro (Novaes) relembra memórias afetivas de sua cidade natal com o colega. Reconhece na cidade onde chegaram o seu berço. Mas será mesmo que aquela cidade é sua Gonçalves originária?

Detalhe importante: a fotografia do filme traz a assinatura do veterano Rodolfo Sanchez, argentino radicado no Brasil, parceiro de Héctor Babenco, Ana Carolina e, principalmente, de Ugo Giorgetti.

O cineasta Leonardo Martinelli já triunfou em Gramado com seu curta mais famoso, “Fantasma Neon”. O filme, selecionado para 400 festivais brasileiros e internacionais, ganhou o Leopardo de Ouro em Locarno, na Suíça. E transformou-se na força originária de seu primeiro longa, que está no quarto tratamento de roteiro (mas conta, até agora, com apenas 20% do orçamento necessário).

Enquanto a versão longa de “Fantasma Neon” não chega, Leonardo segue fazendo curtas. “Pássaro Memória” tornou-se o segundo título de “trilogia involuntária”, agora completada com “Samba Infinito”. Os três filmes têm pontos em comum: suas estruturas sedimentam-se no gênero musical (desta vez, ambientado nos festejos do Carnaval) e têm o centro histórico do Rio de Janeiro como cenário. O diretor não esconde sua paixão pelas formas de ocupação dos espaços públicos da sua cidade natal.

Em “Samba Infinito”, um gari (Alexandre Amador) encontra um menino, com asas de anjo (Miguel Leonardo), perdido em pleno Carnaval. Decide ajudá-lo. Acabará conhecendo lugares de imensa beleza na parte antiga da cidade, como o Gabinete Português de Leitura, onde um sábio (Gilberto Gil) lhe ofertará um presente. A mãe da menino (Camila Pitanga), vestida de dourado, continuará procurando seu anjinho perdido.

O alagoano Pedro Jr dirigiu e fotografou ensaio poético de enigmático nome: “O Mapa em que Estão meus Pés”. Ele evoca memórias do avô, que sonhou plantar seu coração em sua cidade natal, da qual vivia distante. No filme, de menos de 14 minutos, vemos no mangará (que os mineiros chamam de “umbigo da bananeira”, e os alagoanos de “coração”) simbolizar o órgão que, por crença popular, canaliza nossos afetos.

O baiano “Na Volta Eu te Encontro” venceu, semanas atrás, o Festival de Cinema de Vitória. De narrativa livre e híbrida (documentário com vigorosa inserção ficcional), ele evoca a apropriação, pelos homens do povo da Bahia, da festa cívica do 2 de Julho. Nesta data, em 1823, os baianos derrotaram os portugueses que se negavam a deixar o solo brasileiro. A diretora Urânia Munzanzu constrói um filme de pouco mais de 13 minutos, pleno de energia e vibração. E com solo memorável de dois atores (Nitorê Akadã e Diego Teixeira). A dupla a todos seduz com suas falas curtas, ritmadas e de graça ímpar.

“Réquiem para Möse” relembra episódio que chocou o país: um congolês, o Moïse do título, recebeu asilo no Brasil. Ele e seus amigos, também congoleses, se adaptavam às características do novo país. Até que Moïse foi brutalmente assassinado, a pauladas desferidas com taco de beisebol, por donos de quiosque de famosa e turística praia carioca. Esse caso de racismo brutal deixou atordoados os familiares e amigos do congolês. E mostrou a discriminação praticada por brasileiros que se julgam no direito de humilhar (e até matar) refugiados (de pele preta) vindos do continente africano.

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