Militância e polêmicas da Placar, revista que provocou o fim da Loteria da Zebrinha, são lembradas em filme com testemunhos de seus engajados artífices

Por Maria do Rosário Caetano

Por que assistir ao longa documental “Placar – A Revista Militante”, de Ricardo Correa e Sérgio Xavier, estreia desta quinta-feira, 14 de agosto, se ele tem formato televisivo, fotografia pouco elaborada e soma dezenas de cabeças-falantes?

Porque o filme é cheio de vida, energia e traz depoimentos (ou melhor, testemunhos) curiosos e reveladores. Podia ser mais polêmico? Sim. A presença do contraditório lhe faria bem. Por sorte, seu ritmo — apesar da narrativa durar longos 101 minutos — não desanda. É sedutor e vertiginoso.

Um jornalista, Juca Kfouri, que editou a publicação em suas fases mais vibrantes, galvaniza as atenções. Junto com o fotógrafo Ronaldo Kotscho se responsabilizará pela melhor sequência do filme – a que narra a construção de reportagem, apurada ao longo de um ano (algo impensável hoje em dia), sobre a “Máfia da Loteria Esportiva”.

Em dupla com o repórter Sérgio Martins — saberemos —, Kotscho conseguiu desvendar as mutretas dos que compravam resultados para conquistar os gordos prêmios da Loteria Esportiva. Aquela que deixou saudade por causa da Zebrinha, que, no Fantástico, o Show da Vida mobilizava o país ao anunciar resultados inesperados. Hilária Zebrinha.

O impacto das revelações da Placar foi tão grande, que o jogo lotérico e a Zebrinha sumiram do mapa. O futebol, a maior das paixões dos brasileiros, sofreu forte abalo.

Nessa terça-feira, 12 de agosto, Juca Kfouri e o ex-jogador Casagrande têm encontro marcado com o público para pré-estreia, seguida de debate, de “Placar – A Revista Militante” (no CineSesc, às 20h). Sandro Macedo, o colunista mais bem-humorado do segmento jornalístico dedicado ao futebol, vai moderar a conversa. O debate seria, claro, bem mais vibrante se Mauro Beting se sentasse à mesa. Afinal, é dele a colocação mais incisiva do documentário.

O filho de Joelmir Beting, leitor da Placar desde a adolescência, detecta certo messianismo nos repórteres e editores da revista. Para ele, o time jornalístico se sentia dono da verdade. Era tomado por verdadeiro “fervor justiceiro” (expressão do próprio Juca Kfouri). Martelava uma pauta (ou causa) até convencer o leitor.

“Me irritava muito” — diz Beting —  “o desprezo deles pelo Módulo Amarelo (quando escreviam sobre a Copa União). Eles falavam de um jeito…, se não fossem eles, não tinha mais bola, não tinha mais futebol! Professores e Deus: a Placar falou, tá falado! Então, foda-se. Se a Placar encasquetasse (garantiria que) o Brasil não ganhou o Tri de 70, porque vivíamos numa ditadura. O Brasil não ganhou o Tri (daí) então o Brasil tem quatro títulos mundiais e o Médici tem 1. O cartório é a CBF, o cartório é a Federação Estadual. O cartório não é a Placar”. Um das raras dissonâncias críticas numa narrativa deliciosa, mas centrada no culto à revista e a seus artífices.

Os créditos de “Placar – A Revista Militante” trazem subdivisões inusuais no cinema (diretor de conteúdo, por exemplo). Sua sinopse é das mais promissoras: um documentário que registra a trajetória de revista esportiva, que ousou ir além das quatro linhas do campo. Uma publicação que, sob o pretexto de falar de futebol, denunciou a censura, revelou a face política do esporte e deu voz a jogadores”. E mais: “escancarou os bastidores do esporte como palco de lutas políticas”.

O filme abordará, com razoável material de arquivo, momentos especiais da trajetória da Placar e da História brasileira. Da Era Pelé (atleta que ganha espaço nobre) até a Era Ronaldão, passando por Sócrates (outra estrela do filme), Casagrande (com presença excessiva, até narcísica), Afonsinho, Zico, Falcão, Mário Sérgio e Edmundo, o Animal.

Tudo começa no nascimento da publicação bancada pela poderosa Editora Abril (hoje, a revista tem outro dono, segue impressa em papel e com versão digital). O momento da criação não podia ser mais oportuno (o alvorecer da década de 1970), já que o futebol brasileiro encantava o mundo com a Seleção de Pelé-Tostão-Jairzinho (e tantos outros).

Depois, a narrativa se entregará ao registro da Democracia Corinthiana (Sócrates-Casagrande-Vladimir) e aos tempos do movimento das Diretas, Já! Neste segmento, nos divertiremos com fato fugaz e curioso. Pelé, que filmava num morro carioca, o longa ficcional “Pedro Mico” (1984), adaptação de Ipojuca Pontes para peça homônima de Antônio Callado, foi convencido pela lábia de Ronaldo Kotscho a vestir a camisa amarela das Diretas, Já! Vestiu, sem muita convicção. Mas vestiu. Virou capa da Placar.

Aí começa a militância da revista por mais uma causa recorrente: a moralização do futebol brasileiro. Como a Aliança Renovadora Nacional, partido de sustentação da ditadura militar previa “um time no Nacional, onde a Arena vai mal”, a equipe da Placar resolveu estimular a criação do Grupo dos 13, tropa de elite do futebol brasileiro. Nascia a Copa União.

A poderosa Confederação Brasileira de Futebol, sempre em sintonia fina com os governos militares, chegara a colocar 96 times na disputa. A Placar entrou de cabeça no campeonato paralelo ao da CBF, criou a Taça das Bolinhas e deu apoio total à Copa União. O país teve, naquele ano, dois vencedores: o Sport, do Recife, na competição oficial. E o Flamengo, pela Copa União.

Como “Placar – A Revista Militante” é também um filme sobre os procedimentos (e bastidores) da imprensa, suas grandezas e, às vezes, promiscuidades, chegaremos à maior das campanhas da equipe da publicação paulistana. Aquela que se deu pelo desbaratamento da Máfia da Loteria Esportiva (um dos momentos nobres do filme). Ele será relembrado com devoção por Kotscho — em nome dele e do parceiro Sergio Martins —, pois, por um ano, a dupla perseguiu pistas no Rio, na Bahia, onde fosse necessário. Enfrentou situações de perigo, teve gravador confiscado etc. etc. Mas encontrou as provas necessárias.

Virá, depois, a fase “Futebol, Sexo e Rock’n Roll”, simbolizada na famosa capa dedicada a Edmundo, um dos atletas mais midiáticos da imprensa brasileira. Engambelado pelo fotógrafo Bob Wolfenson, ele acabou posando como um animal carente, abraçado a um ursinho de pelúcia. A foto ilustraria capa que garantia: “O Animal precisa de carinho”. O jogador faria até papel de roqueiro em sacudido anúncio que propagava a nova fase da revista.

Na percepção dos leitores-raiz, havia excesso de celebridades, sexo e rock’n roll nas páginas da revista. E pouco futebol. A ponto de um leitor, descontente com a onipresença de boleiros-celebridades, reclamar, mais tarde, com Juca Kfouri. Este admirador entendia que, desde a saída dele, Juca, a publicação perdera o rumo.

O próprio Juca assumirá, no documentário, a paternidade da fase pop ao confessar ter sido ele mesmo, o idealizador da tal mudança de rumo. Editor, também, da fogosa Playboy, o jornalista entendia que futebol, sexo e rock’n roll compunham trinca de grande apelo popular naquele momento. E imprimiu essa pegada à revista que não cativou os torcedores mais sérios.

Num trecho do filme, as mulheres entram em campo como tema e problema. O documentário cede a palavra à única voz feminina (a repórter Marta Esteves) possível entre os varões assinalados. A Placar era um reduto de machos, que abriam espaço nobre para jogadores que seduziam milhares de leitores e milhões de espectadores (na TV e no rádio).

As mulheres apareciam na Placar como musas de corpos esculturais. As fotos mostravam suas “derrières”, enfeitadas por minúsculos biquínis. Alguns jornalistas até farão autocrítica. PVC, porém, fugirá do anacronismo. Lembrará que aquela postura editorial se passara em determinado tempo histórico. E que tudo mudara com os novos tempos.

Marta, dando uma de Leila Diniz, posará na praia, com barriga de gravidez avançada, bloquinho na mão, entrevistando Edmundo (sempre ele). As fotografias da Placar eram um caso à parte. Os repórteres também eram fotografados com suas fontes. Muitas imagens eram produzidas em estúdio. Outras engendradas pelos fotógrafos, caso de Pelé, no morro carioca, com a amarelinha das Diretas, Já!. Ronaldão apareceria, em seus momentos de glória, com cédula de dólar projetada sobre seu rosto.

O “fervor justiceiro” da revista se faria sentir, em moldes avantajados, na defesa do médico Osmar Oliveira (ele detectara doping no exame da urina de Mário Sérgio, para desgosto dos cartolas palmeirenses). O assunto rendeu e Mário Sérgio, que morreria aos 56 anos, no acidente que vitimou a Chape (Associação Chapecoense de Futebol) catarinense, formaria, junto com Leão, a dupla (involuntária) que mais questionou-peitou o projeto editorial da publicação boleira.

Quem gosta de futebol vai gostar do documentário de Ricardo e Sérgio. Quem não gosta, não se arrependerá se pagar o ingresso na bilheteria. Afinal, “Placar – A Revista Militante” não mostra jogos (tudo indica que a produção não teria bala na agulha para pagar as fortunas cobradas pelos clubes e seus atletas). E, mesmo na busca de imagens, o filme é modesto. Foca nas páginas editadas da revista e em fotos do acervo da Placar.

Só Pelé, o atleta do século XX, aparece em imagens (de arquivo) poucos conhecidas. Vemos o veterano jogador fazendo poses para a câmara (em movimento) de alguém encarregado de registrar o que ele mais sabia – que o futebol é a maior paixão dos brasileiros. O mineiro de Três Corações, que sempre sonhou ser ator (e o foi, embora um canastrão distante da genialidade dos gramados), gostava da câmara. E ela gostava dele.

 

Placar – A Revista Militante
Brasil, 2025, 101 minutos
Direção geral e edição: Ricardo Corrêa
Direção e textos: Sergio Xavier Filho
Direção de conteúdos: Alfredo Ogawa
Fotografia e assistência de direção: Alexandre Battibugli
Testemunhos: Juca Kfouri, Casagrande, Zico, Afonsinho, Falcão, Ronaldo Kotscho, Mauro Beting, Celso Unzelti, Carlos Maranhão, Fábio Altman, Marta Esteves, PVC, Arnaldo Ribeiro, Celso Nucci, Marcelo Duarte, Gian Oddi
Distribuição: Kajá Filmes

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