Onoda, que viveu 10 mil noites na selva, fascinou Herzog e Harari

Por Maria do Rosário Caetano

O alemão Werner Herzog sempre amou personagens que viveram vidas extraordinárias. Vidas desmedidas, limítrofes, à beira do fantástico. Foi assim com seres que transcriou em seus muitos filmes (mais de 70 longas), de “Aguirre” a “FitzCarraldo”, de Timothy Treadwell, o Homem-Urso, a ele mesmo, um cineasta bávaro, que agora em setembro fará 80 anos.

Werner Stipetic, que escolheu Herzog (duque em alemão) como sobrenome artístico, foi capaz de sair de sua Alemanha natal, a pé, em pleno inverno, até Paris, em ato sacrificial destinado a salvar a vida de sua conterrânea Lotte “A Tela Demoníaca” Eisner (1896-1983). Seu testemunho foi narrado no livro “Conquista do Inútil”. O cineasta filmou também seu “Melhor Inimigo”, o desmedido ator Klaus Kinski. E a vida de um brutal traficante de escravos, o brasileiro Francisco Manoel da Silva, conhecido como “Cobra Verde”.

Nada mais natural, portanto, que ele voltasse seu interesse a um japonês deveras estranho, fanático, portanto, nada ordinário: o militar Hiroo Onoda, tenente do Exército Imperial do Japão, que foi lutar, durante a Segunda Guerra Mundial, nas Filipinas, e a quem coube patrulhar, com seus subordinados, a ilha de Lubang.

A Guerra acabou em 1945 e o eixo nazi-fascista (Alemanha-Japão-Itália) foi derrotado. Não para o Tenente Onoda, que continuou cumprindo seu dever. E o fez por 29 anos, ou “10 Mil Noites”, como detalha o filme “Onoda”, de Arthur Harari, cuja esteia acontece no dia 25 deste mês de agosto.

Herzog conta no livro “Crepúsculo do Mundo” (Todavia, 2022) que estava no Japão, em 1997, para dirigir a ópera “Chüshingura”, do compositor Shigeaki Saegusa. Certo dia, o artista japonês convidou o hóspede alemão para audiência sonhada por qualquer mortal. Um encontro cujo interlocutor seria ninguém mais, ninguém menos que o imperador da nação japonesa. Saegusa quase teve um mal súbito quando Herzog-san declinou do convite.

“Pelo amor de Deus” – ponderou o bávaro –, “não tenho a menor ideia do que fazer na companhia do Imperador, seria apenas uma troca de formalidades”. O grupo oriental ficou atônito. Herzog-san sabia que tinha cometido “gafe tão terrível, tão burra”, que até hoje, assim como ocorrera com sua esposa Lena, tem “vontade de afundar no chão”. Parecia – pressentiu – “que o Japão inteiro parara de respirar”. Até que “uma voz invadiu aquele silêncio: com quem, afinal, senão o Imperador, eu gostaria de me encontrar no Japão?”

Sem pestanejar, Herzog-san respondeu: “Onoda”. Uma semana depois ele encontrava o tenente resgatado da selva, depois de dez mil noites, e recebido com honras militares em seu país. Hiroo Onoda (1922-2014) viveria por longos 91 anos. Parte deles, a partir de 1975, radicado no Brasil, onde criaria gado no Mato Grosso, seria condecorado por militares e ganharia título de Cidadão Honorário.

Em seu livro, Herzog não busca as motivações do jovem Onoda para passar quase 30 anos na selva filipina. Tudo começa no dia 20 de fevereiro de 1974, quando Norio Suzuki, um jovem japonês, encontrou o arredio conterrâneo em Lubang. E tudo fez para conquistar sua confiança e, se possível, retirá-lo daquela complexa, alucinante até, aventura bélica que já durara dez mil noites. Em apenas 94 páginas, escritas com o estilo elegante de Herzog, conheceremos parte da história do tenente que fez da honra ao Imperador e a seu mestre (um militarista de linha dura, Major Yoshimi Taniguchi) sua razão de ser. Onoda era um jovem de 22 anos, quando concluiu seu treinamento de guerrilha em unidade da Escola Militar Nakano, em Futamata.

A ordem básica da instituição, radical e nacionalista, seguia o Protocolo Senjinkun, que consistia em “não se render nunca”. Ou seja: morrer lutando ou cometer suicídio (vide os kamikazes que entregaram suas vidas em combates aéreos no Pacífico). O jovem Onoda desembarcou em Lubang, no final de 1944, sob juramento: “não entregar sua vida voluntariamente, sob nenhuma circunstância”.

O livro de Herzog e o filme de Arthur Harari, cujo roteiro (escrito com Vincent Poumiro) foi premiado com o Cesar, o Oscar francês, se complementam. O alemão escreve sobre o Onoda que conheceu e que narrou suas próprias memórias na selva (publicadas em 1974) em “Sem Rendição: Minha Guerra de 30 Anos).

Harari e Poumiro leram vários livros, incluindo o de Onoda. Depois pensaram em adaptar o livro-reportagem “Onoda: Seul en Guerre dans la Jungle – 1944-1974” (“Sozinho na Guerra Dentro da Selva”). Acabaram resolvendo criar, juntos, trama ficcional inspirada em fatos reais.

Receberam muitos elogios e algumas críticas. Duas delas merecem ser lembradas: os filipinos não têm voz no épico franco-nipônico e as brutalidades cometidas por Onoda e seus comandados foram além de roubos e uma ou outra morte quando tentavam encontrar comida. O fanático japonês teria cometido atos bárbaros (o corpo de um camponês filipino foi encontrado num lugar e sua cabeça, decepada, mais adiante).

O que o filme tem de melhor, além de sua atmosfera reflexiva, é o empenho em desvendar a estrutura da Escola Militar Nakano. Lá se formavam quadros dominados por princípios belicistas, fechados a qualquer contradição, de sentimento patriótico-nacionalista extremado e fidelidade canina aos superiores e ao Imperador. Tanto que, quando deixou a selva, quase três décadas depois de nela adentrar, Onoda foi recebido em seu país natal como herói por militares e seguidores de extrema-direita.

“Onoda, Dez Mil Noites na Selva” nos ajuda a entender por quê um homem, jovem militar, seguiu de forma tão absurda a ordem de jamais render-se. Quem esculpira aquele pensamento capaz de justificar vida de tamanhos e tão extremos sacrifícios materiais? Dez mil dias e noites de fome, frio, roupas em molambo, necessidade de roubar animais para alimentar-se a si e seus poucos comandados?

“Um filme de guerra sem guerra”. Assim se pode definir “Onoda”. Afinal, o que presenciamos é um drama, com algo de suspense, sobre um fanático que constrói uma realidade paranóica e nela se escora. Os aviões norte-americanos que sobrevoam a região rumo à Guerra da Coreia (1950-1953) são tomados como prova de que a Segunda Guerra continua. Os jornais trazem notícias reais sobre o fim do conflito, mas são tidos como portadores de “fake news” para desmobilizar o pequeno grupo de guerrilheiros a serviço do Imperador. Enfim, tudo que não se encaixa na narrativa de Onoda é definido como ardil dos inimigos do Exército japonês.

Ler o livro de Herzog e ver o filme de Hiraro constitui ótimo programa. Vale recordar, ainda, que Herzog amou figuras nada ordinárias, nascidas no Brasil (em carne e osso, ou no imaginário indígena). Caso de Garrincha, Glauber Rocha, Grande Otelo, Milton Nascimento, José Lewgoy e Macunaíma.

Em 2012, o bávaro fez mais uma visita ao Brasil (elas foram muitas). Ele filmou “FitzCarraldo” na Amazônia (no Teatro Amazonas, inclusive, com Claudia Cardinali e Klaus Kinski), dirigiu montagem cênica produzida por Lucélia Santos, etc. e etc.

Na viagem de dez anos atrás, quando contava quase 70 anos, Herzog participou do III Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, promovido pela revista Cult e pelo Sesc. A todos encantou ao narrar suas aventuras cinematográficas e literárias e responder, com imenso interesse, às perguntas do público.

Um fato me intrigava, naquela ocasião. Em livro que dedicou ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade (“A Revolução Intimista”, Coleção Perfis do Rio, 1996), a pesquisadora e professora da UFRJ, Ivana Bentes, contou, respaldada em depoimento do fotógrafo Mário Carneiro, que Herzog, ao deparar-se com o diretor de “Macunaíma”, ajoelhou-se aos pés dele e agradeceu pelo filme, que assistira e que o encantara. A ponto de dele tirar o subtítulo de “O Enigma de Kaspar Hauser”: Cada Um por si e Deus Contra Todos.

Em resenha do livro de Ivana Bentes (Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 14/03/1997), o montador, cineasta e pesquisador Eduardo Escorel fez restrições a relatos do livro no que dizia respeito à relação Herzog-Joaquim Pedro. Viu neles exageros retóricos do fotógrafo de tantos filmes do autor de “O Padre e a Moça”.

Resolvi, então, endereçar a Werner Herzog, naquele final de manhã de 2012, perguntas que elucidassem as relações dele com o cinema brasileiro. Afinal, além de “Macunaíma”, de trabalhos com Grande Otelo, José Lewgoy e Milton Nascimento (atores que dirigira em seus filmes “FitzCarraldo” e/ou “Cobra Verde”), sabia-se (pouco) de sua convivência com Glauber Rocha e de seu vivo interesse pelo Cinema Novo. E mais: ele seria fã de Garrincha, o astro do outrora poderoso Botafogo de Futebol e Regatas.

Eis, pois, as três perguntas dirigidas ao incansável diretor bávaro. E suas respostas esclarecedoras.

É verdade que deu a “O Enigma de Kaspar Hauser” (1972) o subtítulo de “Cada Um por si e Deus Contra Todos” por causa do filme “Macunaíma”?

Herzog – Sim. Escrevi o roteiro do filme em quatro ou cinco dias e não havia um título. Cansado de tanto escrever, resolvi sair para tomar uma cerveja e ver um filme. Acabei vendo “Macunaíma”, do Joaquim Pedro. Fiquei louco pelo Grande Otelo e mais louco ainda por uma frase que ouvi num certo ponto do filme: “Cada um por si e Deus Contra Todos”. Congelei na cadeira. Isto que acabei de ouvir é tão lindo que não consigo acreditar. Aí está o título do meu filme. Só que, depois, trocando ideias com várias pessoas, ninguém guardava a frase. Quando eu pedia para que a repetissem, diziam “Cada um por Deus, Todos pelo Homem”. Ou “Cada Homem por Deus”. Nunca acertavam. Então acabei optando por “O Enigma de Kaspar Hauser – Cada Um por si e Deus Contra Todos”. Mas, tão importante quanto o subtítulo foi a descoberta de Grande Otelo. Que ator maravilhoso. Nove anos depois eu estava com ele na Amazônia, filmando “FitzCarraldo”. Tomei estas duas riquezas de “Macunaíma”. Não tenho vergonha de assumir, como um pirata, esta troca.

E Glauber Rocha? Você conhece os filmes dele?

Herzog – Conheço muitos dos filmes dele e tive o prazer de conviver com ele, durante um mês, em Berkeley, na Califórnia. Éramos cineastas-convidados da Pacific Film Archive, uma cinemateca muito importante. Como eu não tinha hotel para me hospedar em San Francisco, a Cinemateca do Pacific me ofereceu um quarto ao lado do de Glauber. Me lembro que, em 1975, quando chegou a hora de Glauber, que era bastante desorganizado, regressar ao Brasil, a saída dele nos impressionou a todos, pois tinha milhares de papéis que não cabiam nas malas e iam se espalhando por todos os lados. Glauber morreu jovem, mas os filmes dele são eternos. Para mim, ele é alma do Brasil, assim como Garrincha. Glauber é a alma intelectual e visionária e Garrincha é a alma alegre na tragédia deste país.

Você, que escalou dois moçambicanos-brasileiros para o elenco de “Aguirre” (Ruy Guerra e Ruy Pollanah) e filmou “FitzCarraldo”, com Lewgoy, Otelo e Milton, conhece o cinema brasileiro contemporâneo?

Herzog – Não costumo mais ver muitos filmes. Só uns dois ou três por ano. Ano passado (2011), vi vinte longas-metragens, porque integrei o júri do Festival de Berlim. Como jurado, fui obrigado a ver todos os concorrentes (risos). De filmes brasileiros recentes, vi um de Walter Salles. Creio que, graças às facilidades das novas tecnologias, uma nova geração está se firmando no Brasil. Quando comecei, filmar era muito complicado. As câmaras eram inacessíveis, o celuloide caro e os laboratórios caríssimos. Hoje, os que querem fazer cinema podem recorrer a ferramentas simples, câmara digitais muito baratas, pode editar o material no laptop. É possível fazer um filme com US$10 mil. O importante é querer trabalhar e fazê-lo onde há vida pulsando. E há que andar a pé. Andar muito. Este é conselho que lhes dou. Eu abri o cadeado (de uma sala da Universidade de Munique) e roubei a câmara. Com ela fiz meus onze primeiros filmes. Então, só posso lhes ensinar a assaltar e a falsificar documentos. Quando estava na Amazônia peruana e tinha que subir com o navio rio acima, indo atrás num barco a motor, deparei-me várias vezes com acampamentos militares. Eles sempre tentavam me impedir de trabalhar. Um coronel, que guardava a selva com seus soldados, mandou que atirassem em mim. Exigiu que eu apresentasse licenças de filmagem. Sabe o que eu fiz? Regressei a Lima e falsifiquei documentos. Forjei papeis que, em nome da Chancelaria, da Secretaria de Estado e do presidente Belaunde me autorizavam a filmar. Copiei as assinaturas deles com muito zelo e enchi os documentos de carimbos. Nos papeis havia frase em alemão que dizia mais ou menos assim: “quem quiser comprar uma câmara…”. Os que me paravam, ao me ver de volta, olhavam aquelas assinaturas, aqueles carimbos e aqueles escritos, inclusive em alemão, e diziam “pode passar”.

 

Crepúsculo do Mundo
Livro de Werner Herzog, narrado com liberdade ficcional, sobre o Tenente Hiroo Onoda, que ele encontrou no Japão e com quem conversou longamente em 1997. Editora Todavia, São Paulo, 94 páginas, R$54,00.

Onoda, 10 Mil Noites na Selva
França, Japão, Alemanha, Bélgica, Itália, Cambodja, 167 minutos, 2021
Direção de Arthur Hariri. Drama de guerra com Endô Yûya, Tsuda Kanji, Nakano Taiga, Matsuura Yûya, Chiba Tetsuya, Kato Shinsuke. Da seleção oficial de Cannes (filme de abertura da Mostra Un Cértain Régard), Prêmio Cesar de melhor roteiro original, melhor filme internacional da Mostra SP 2021. Estreia em 25 de agosto.

One thought on “Onoda, que viveu 10 mil noites na selva, fascinou Herzog e Harari

  • 23 de agosto de 2022 em 15:34
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    Olá, Rô:

    Eu estava em Nova York em 1975 quando no Festival Internacional de Cinema do Lincoln Center passou “O enigma de Kaspar House” com a frase do filme de Joaquim Pedro dita quando Paulo José sai do pau arara que os trouxe até o Rio e grita para os irmãos: Vam’embora minha gente e diz “Agora, é cada um por si e Deus contra todos”. O próprio Herzog estava presente nesta sessão e eu o abordei depois do debate que a encerrou, debate em que o título não havia despertado atenção. Quando me apresentei e, depois de elogiar o filme, disse que era brasileiro e quiz uma confirmação se a frase havia sido inspirada pelo filme do Joaquim, ele emocionado me abraçou e disse “que filme maravilhoso”. “Sim, veio dele e só não é o único título do meu filme porque o produtor não aceitou e me obrigou a alterá-lo, tornando esta frase o subtítulo.” Foi uma conversa muito agradável. Claro que ao longo dos anos, como todos nós cinéfilos, acompanhei os filmes dele. Bj, Rô.

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