Um painel árido do fervor religioso
Bruno Sáfadi estruturou “Éden” a partir de contrastes. O filme, que ganhou o prêmio de melhor longa-metragem ibero-americano no Festival Internacional de Cinema do Uruguai e foi exibido recentemente no Festival de Gramado, tem como tema a religião e via crucis de uma mulher atormentada. Para começar, a protagonista Karine vive longe do paraíso anunciado no título. Grávida, perdeu o marido em meio à violência na Baixada Fluminense. É levada para o ambiente opressivo de uma igreja evangélica, onde passa a conviver com o inflamado e ambíguo pastor Naldo. Lá, se vê diante da mulher, Vânia, também grávida, do homem que matou seu marido. Há outros elementos no filme que apontam para um jogo de oposições. “Karine é dona de uma loja de piscinas e está grávida. Há, portanto, elementos líquidos numa história ambientada num lugar árido, desértico”, diz Sáfadi, referindo-se a São João de Meriti, região que abriga o bairro de Jardim Éden.
Ao decidir localizar sua história na Baixada – região visitada apenas ocasionalmente pelo cinema brasileiro, a exemplo de filmes como “O Homem da Capa Preta” (1986) e “O Homem do Ano” (2003) –, o carioca Bruno Sáfadi traz à tona um panorama marcado por cruzada religiosa messiânica e por tensões sociais latentes. O olhar que lança, contudo, não é propriamente realista. “A igreja é colocada no filme num plano paralelo ao real. Não por acaso, não há interferência do barulho dos carros passando pela avenida”, destaca. Além disso, uma atmosfera de pesadelo – potencializada pelo trabalho de som, a cargo de Edson Secco – atravessa a jornada de Karine, remetendo ao cinema de Roman Polanski. Sáfadi confirma a influência, especialmente nos casos de “Repulsa ao Sexo” (1965) e “O Bebê de Rosemary” (1968).
Na abordagem do universo religioso, o diretor também tangencia o real sem, porém, “se limitar” a essa instância. Há uma cena emblemática, na qual o pastor pede a Karine e a Vânia que representem o sofrimento diante da câmera. “Quase toda religião investe em imagem e representação. Aquele pastor valoriza a representação, nem que seja para contar uma história verdadeira. É como se ele fosse um diretor. Hoje em dia, as igrejas propagandeiam suas mensagens por meio de CDs, DVDs, outdoors. Somos massacrados por publicidade religiosa”, frisa Bruno Sáfadi. Mas, para além da conexão com a contemporaneidade, a sequência suscita reflexão acerca do registro interpretativo – e o minucioso trabalho dos atores, com destaque para os protagonistas interpretados por Leandra Leal (melhor atriz no Festival do Rio de 2012 e no Festival de Gramado 2013) e João Miguel, é um elemento fundamental em “Éden”.
Atores e diretor se inspiram em clássicos do cinema
O próprio Sáfadi se encarregou dos atores, sem recorrer à figura do coach. “Eu vinha conversando com eles há bastante tempo. Ensaiei antes do início das filmagens que, devido a limitações orçamentárias, aconteceu durante apenas duas semanas. Falei com João Miguel sobre o trabalho de Orson Welles como ator, particularmente, em ‘Othello’ (1952). A cada novo filme, Welles alterava o formato do nariz. Sugeri isso ao João, que colocou uma prótese. A forma do rosto dele mudou e a respiração, também. Gerou uma voz diferente. Leandra teve contato com doulas (profissionais que auxiliam as mulheres nos partos) e focamos na questão do luto extremo de uma personagem fragilizada pela condição da gravidez e pela perda do marido em circunstância trágica”, explica Sáfadi.
Como se pode perceber, “Éden” se impõe como um filme de construção refinada, no que se refere à partitura sonora e aos desempenhos dos atores. Vale mencionar os movimentos de câmera construídos. Em algumas passagens, Bruno Sáfadi registra os personagens em close e, aos poucos, se distancia deles, descortinando um painel. “Priorizei o plano geométrico, ritmado, que abre sem maiores tremores”, diz Sáfadi, sobre a fotografia de Lula Carvalho. Muitas referências – além dos citados Welles e Polanski – atravessam “Éden”. “(Carl T.) Dreyer e (Robert) Bresson foram importantes nesse filme. O tema da maternidade me remeteu a ‘Uma Mulher É uma Mulher’ (1961), de (Jean-Luc) Godard”, enumera Sáfadi, que aproveita para citar “Independência” (2009), do diretor filipino Raya Martin.
Homenagem ao cinema dos anos 70
Já Julio Bressane e Rogério Sganzerla, cineastas marcantes nos filmes anteriores de Sáfadi, aparecem menos nas imagens de “Éden”. “Talvez haja um pouco de Bressane nos planos longos”, pondera o diretor de “Meu Nome É Dindi (2007)”, protagonizado por Djin Sganzerla (filha de Rogério Sganzerla e Helena Ignez), e do documentário “Belair” (2009), assinado em parceria com Noa Bressane, que resgata a produtora de Bressane e Sganzerla, fundada em 1970. Vale lembrar que Sáfadi foi assistente de direção de Bressane em “Filme de Amor” (2004) e “Cleópatra” (2007). Entretanto, se os emblemáticos representantes do Cinema Marginal não nortearam os rumos de “Éden”, voltarão com força nos próximos longas de Sáfadi, que, estimulado pela Belair (que concretizou filmes em pouquíssimo tempo), realizou, em parceria com Ricardo Pretti, três produções em apenas duas semanas.
Trata-se do projeto “Operação Sônia Silk”, título que faz referência à personagem de “Copacabana mon Amour” (1970), de Sganzerla, interpretada por Helena Ignez. O projeto reúne três filmes – “O Uivo da Gaita”, dirigido por Sáfadi, “O Rio nos Pertence”, a cargo de Pretti, e “Meta Mancia” (título provisório), assinado pelos dois – que trazem os mesmos atores, Leandra Leal, Mariana Ximenes e Jiddu Pinheiro, e equipe técnica, Ivo Lopes Araújo (fotografia) e Luísa Horta (diretora de arte). Zelito Vianna aproximou o Canal Brasil, que destinou uma verba de R$ 120 mil empregada nos três longas da empreitada. “O projeto nasceu de uma vontade de criar um diálogo com a Belair. Como seria criar uma Belair atualmente? Como se faz três filmes em duas semanas?”, indaga.
Os dois primeiros estão prontos e contaram com o Fundo Hubert Bals, de Roterdã, que garante distribuição na Holanda, na Bélgica e em Luxemburgo. “O Uivo da Gaita” contou ainda com o patrocínio da Secretaria de Estado do Rio, que destinou R$ 200 mil para a finalização. Nesse filme, Sáfadi aborda o relacionamento entre duas mulheres – uma delas, casada, que, de início, tenta viver com o marido e a namorada. Em “O Rio nos Pertence”, Pretti fecha o foco em torno de uma personagem que volta ao Rio de Janeiro depois de dez anos fora do Brasil e trava um reencontro com o passado em meio a uma onda sinistra de suicídios pela cidade. E, em “Meta Mancia”, Bruno Sáfadi e Ricardo Pretti não só dirigem como atuam em histórias de amor com duas mulheres. Como se não bastasse, Sáfadi tem mais um projeto, centrado no mito de Lilith. “O projeto foi selecionado para o laboratório de roteiro Binger Filmlab e, a partir de outubro, passarei cinco meses na Holanda”, anuncia.
Por Daniel Schenker