Petrônio e as criaturas

“O Silêncio da Noite é que Tem Sido Testemunha das minhas Amarguras”. Este é o longo, e poético, nome do segundo longa documental (o primeiro solo) do cineasta e músico pernambucano, Petrônio Lorena, de 43 anos. O filme estreia nesta quinta-feira, dia 15, em diversas cidades brasileiras. Em São Paulo, poderá ser visto no Cine Belas Artes.

Petrônio, nascido no sertão do Pajeú, formou-se em Radialismo e dividiu-se logo entre o cinema e a música. Dirigiu, com o parceiro Tiago Scorsa, os curtas “Santa Helena em os Phantasmas da Botija” (2004), “O Som da Luz do Trovão” (2005) e o longa “O Gigantesco Imã” (2014), os dois últimos sobre um engenhoso inventor pernambucano (Evangelista Ignácio, o Vanja). Depois, com Sérgio Oliveira, realizou “Faço de Mim o que Quero”, um divertido mergulho nas sonoridades e sofrências do cancioneiro brega. Empreendeu, até agora, uma única incursão solo pela ficção – o curta “Calma Monga, Calma!” (2011) – mas já prepara longa ficcional que recriará “Noite na Taverna”, do poeta romântico Álvares de Azevedo.

Como dá para ver pelos nomes e personagens dos seis filmes que Petrônio Lorena assina sozinho ou com parceiros, ele gosta de gente que foge ao lugar comum. Daqueles que sonham com fantasmas, boticas de ouro, invenções inusitadas e circos de horrores.

Paralelo ao trabalho no cinema, o pernambucano atua no coletivo musical “Petrônio e as Criaturas”, dedicado ao rock psicodélico. Em breve, as criaturas petronildas lançarão novo CD de nome revelador: “Troglodita”. Boa parte das letras, avisa o cineasta-compositor, “traz nossa indignação com o retrocesso político e mental que vivemos no Brasil, em que falas e atitudes fascistas voltam à tona”.

Ano passado, Petrônio Lorena foi um dos integrantes do grupo que se retirou da mostra competitiva do Cine PE, festival de cinema de Pernambuco, em protesto contra os rumos tomados pela curadoria. Ele e seis diretores de curta-metragem assinaram manifesto que denunciou guinada do evento para o colo das “forças golpistas”. O documento serviu para justificar a retirada coletiva. Seu filme de nome quilométrico foi o único longa a abrir mão da disputa pelos prêmios Calunga. Justo num festival sediado em seu Estado natal.

Petrônio não se arrependeu de seu ato artístico-político e seguiu em frente. Agora, vê seu filme chegar aos cinemas de São Paulo, Recife, João Pessoa, Curitiba, Rio Branco, São Luís, Vitória e Maceió. Em Goiânia, a estreia acontecerá dia 29 de março.

“O Silêncio da Noite é que Tem Sido Testemunha das minhas Amarguras” resultou em documentário original, criativo e cativante. Com ótima fotografia do cearense Roberto Iuri, o filme mergulha no universo da poesia popular pernambucana (São José do Egito) e paraibana (Prata e Ouro Velho). Ou seja, nos dois Estados que fertilizaram o imaginário do escritor Ariano Suassuna, admirador fiel de cantadores, glosadores e repentistas.

O filme mantém sintonia fina com os novos tempos ao abrir espaço significativo para cantadoras repentistas. Elas chegam para enriquecer um território hegemonicamente dominado pelos homens. Duas mulheres, em especial, brilham na narrativa. Uma delas, a poeta-glosadora Severina Branca, é dona do longo verso que dá título ao documentário. O público vai se divertir com a irreverência desta coroa que consome altas doses etílicas e enche a tela com seu jeito abusado. A outra voz feminina é a da poeta Graça Nascimento, dona de versos desabridos e que causa frisson ao declamar “Rolando em rolas” (sim, o órgão sexual masculino).

Quem acompanha os filmes de Petrônio (e parceiros) reconhece neles, além de criatividade inquieta, um gosto refinado pelas imagens, nunca banais, sempre delirantes e rebeldes.

Em seu primeiro longa solo, o cineasta fez questão de legendar a fala dos poetas populares (muitos se expressam em registro muito singular). Com as legendas, podemos fruir integralmente os ótimos depoimentos e, também, os versos-glosas e vibrantes improvisos. O filme é potente e sintético em seus 79 minutos de duração. E, o que é melhor, constrói, em sua parte final, ponte entre a poesia popular nordestina e a poesia erudita (ou culta). Tira os cantadores do gueto folclórico e estabelece diálogo com poetas como Augusto dos Anjos (“Budismo Moderno”) e Fernando Pessoa.

Petrônio Lorena conversou com a Revista de CINEMA sobre seu primeiro longa-metragem solo, sobre a força da poesia popular em São José do Egito e a importância da cantadora Severina Branca.

Petrônio Lorena

Revista de CINEMA – O que o motivou a realizar “O Silêncio da Noite é que Tem Sido Testemunha das minhas Amarguras”? Você conhecia aqueles personagens? 

Petrônio Lorena – Minha motivação é antiga. Vem do meu convívio com a poesia em São José do Egito. Nasci em Serra Talhada, que fica a 136 km de São José. Em 1995, fui participar de um do Festival de Música do Pajeú e fiquei encantado com a poesia que rolava 24 horas seguidas. Aquele convívio me instigou e me transformou um bocado. Fiquei querendo voltar a São José para beber da verve poética e trabalhar aquele universo de alguma forma. Ao começar minhas primeiras experiências com vídeo e ao realizar meus primeiros curtas, escutei o disco “Curvas”, de Zeto, poeta, compositor e declamador que viveu muitos anos em São José. Na faixa 15 do disco, Zeto declama os versos que ele fez sobre o mote “O Silêncio da Noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras”. Aquilo ficou na minha cabeça por anos enquanto eu fazia outros filmes. Em 2010, decidi fazer um longa documental sobre o sentimento do poeta, tendo a realidade de São José do Egito e região como cenário. Senti que poderia partir de Severina Branca, porque ela faz o elo entre os poetas falecidos, que se tornaram imortais na região, e os vivos, que declamam os antigos e fazem ferver a verve nova. Coincidentemente, Severina Branca mora na fronteira entre PE e PB, numa região em que o fluxo de poetas é muito grande. Muitos passam pela casa dela. Essa relação dela com o presente e o passado, com a memória de versos imortais na região e de versos novos que surgem de repente, me estimulou para fazer o filme. 

Revista de CINEMA – Pernambuco e Paraíba são os Estados onde estão os principais cantadores e repentistas do país? Ou você os escolheu por facilidades de produção?

Petrônio Lorena – A escolha da fronteira PE e PB se deu porque na região pernambucana do Pajeú e sua vizinha,
 
o Cariri paraibano, se localiza um grande fluxo de poetas com uma grande variedade de gêneros 

de cantoria de improviso, que se desenvolveu ali em maior quantidade do que em qualquer outro 

lugar do Brasil. É onde habitam as lembranças dos grandes vates do passado, uma cultura de 
quase 300 anos de poesia ou mais, numa terra em que o respeito aos falecidos e a saudades são
 
motivos de inspiração poética.

Revista de CINEMA – Mulheres se destacam no seu filme. Severina Branca o inspirou até na escolha do título. Desde o início, você planejava mostrar a presença feminina neste universo tão masculino?

Petrônio Lorena – Realmente, o universo poético do repente é predominantemente masculino. Mas ainda é possível encontrar nomes como Mocinha de Passira, Minervina Ferreira e Maria Soledade na cantoria feminina. Nas regiões do Pajeú e Cariri, encontram-se também muitas mulheres sonetistas, declamadoras, que sempre escrevem sextilhas estimuladas pelos acontecimentos do cotidiano ou que fazem sonetos para dedicar ao filho aniversariante. A presença feminina na poesia nessas regiões se fez notar. Na segunda metade do século XX, além de Severina Branca, destacava-se na poesia do Pajeú, nomes como Rafaelzinha, Beatriz Passos, Helena Marinho, Das Neves Marinho, Graça Nascimento, entre outras. Atualmente, você pode encontrar uma geração mais nova e muito ativa. Desde o início, a figura rebelde e autêntica de Severina Branca me tocou. Num sertão machista, católico e coronelista do final da década de 50 do século passado, ela, uma adolescente prostituta, se assumia também como poetisa. No entanto, eu não quis fazer um filme sobre uma única pessoa, mas sim sobre a poesia, seus vates eternos e o sentimento poético que reside no Pajeú e no Cariri, apresentando pessoas de várias gerações que se destacam na história da literatura local e que estão vivas na memória de todos os habitantes da região.

Revista de CINEMA – Seu filme nada tem de passadista. Nem de ranço folclórico. Você aproxima os versos de seus cantadores aos dos poetas cultos. Que ideias lhe serviram de fios condutores na construção desta narrativa? Ou você filma sem muito preparo prévio?

Petrônio Lorena – Muito se fala sobre poesia culta e popular. Para os amantes da poesia não existe essa distinção. Nas rodas de conversas em São José do Egito ou na Prata, você escuta poemas de vates locais, mas também ouve Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Giuseppe Ghiaroni, Baudelaire, Rimbaud, José Régio, Vinícius de Moraes, Bocage e uma infinidade de poetas de diversos lugares em épocas diferentes. Esse lado informal e presente 24 horas ininterruptas por dia me levou a tecer uma narrativa mais leve para o filme, com várias respirações musicais e um conteúdo poético que oscila entre a história, o lado existencial do poeta, com doses de introspecção, humor e alegria. Eu filmei quase sempre em fins de semana para buscar o momento mais relaxado dos poetas, as suas farras e festas, desde a manhã até entrar na noite. Na noite, busquei uma atmosfera psicodélica da poesia com a utilização de projeções de imagens abstratas e das fotos dos grandes vates da região sobre as paredes de Prata, Ouro Velho e São José do Egito.

Revista de CINEMA – Este é seu primeiro longa-metragem solo. É assim que você prosseguirá ou a dupla com Tiago Scorza pode ser retomada?

Petrônio Lorena – Tiago e eu fizemos uma trilogia: “Santa Helena em os Phantasmas da Botija”, “O Som da Luz do 
Trovão” e “O Gigantesco Imã”. A qualquer momento, pode surgir uma ideia nova. Meu próximo 
filme é um documentário chamado “O Pássaro Preto”, que será rodado em 2018. Tenho um 
projeto de longa ficcional baseado livremente no romance “Noite na Taverna”, de Álvarez de 
Azevedo, com direção minha, mas com roteiro feito em parceria com o cineasta Antônio Carrilho 
(“O Homem da Mata”).

 

Por Maria do Rosário Caetano

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